domingo, julho 01, 2007

(...) 'Aussi à cause du LSD propulseur, quel bonheur!!!'



Hoje, em plena era da omnipresença informacional na web, quando galáxias de dados atravessam o cyberspace em infinitesimais nanosegundos, permanecer incógnito é um privilégio ou maldição cada vez mais improvável: tudo é pesquisado, analisado, dissecado, reprocessado, baixado e difundido em progressão geométrica pelas ansiosas e sedentas infovias, de modo que desvelar à plebe ignara (cof, cof, cof...) algo que miraculosamente ‘inda esteja restrito aos happy few (cof, cof, cof... - II), é, pois, mister dos mais alvissareiros... e improváveis também!

Isto posto, falemos um pouco d’uma das raríssimas bandas importantes do underground d’outrora que ainda permanece, em ambos os lados do Atlântico, quase que inteiramente desconhecida.

Muito mais um coletivo anarco-lisérgico-musical de hippies parisienses, espécie de feérico circo em combustão espontânea, do que propriamente uma banda de rock no sentido estrito do termo, o Crium Delirium foi um desses inusitados fenômenos que só poderiam mesmo ter emergido das espirais alucinógenas de purple haze no final dos anos 60.

O núcleo inicial dessa excêntrica comuna forma-se em 1968, nos arrabaldes de Paris, em torno de Jacques Pasquier (futuro manager e 'agitador cultural' da patota) e dos irmãos Thierry e Lionel Magal; em 1970, empreendem uma ambiciosa viagem ao Oriente (Índia, Nepal, Tibet), onde, d'entre várias atividades de cunho 'psicodélico-recreativo', comparecem às aulas de Pandit Prân Nath, mestre do canto Kirina, (norte da Índia), e travam contato com outra trupe de lunáticos, os norte-americanos da Hog Farm. De volta à França em 1971, participam das MJC (Les Maisons des Jeunes et de la Culture), série de eventos multimídia organizada pelo mitológico Giorgio Gomelski, dublê de produtor, empresário e trambiqueiro internacional, que trabalhou com bandas como Soft Machine, Gong e Magma; assim sendo, nossos heróis palmilham todo o país, ao lado das figuras citadas e de vários outros grupos (Zao, Mahjun, Brigitte Fontaine, Franck Wright, etc.), acumulando grande milhagem de palco e de tretas com a polícia, em virtude de rompantes anarquistas, posse de drogas e otras cositas más. Não obstante, cansados do excesso de burocratismo embutido na dinâmica das MCJ, passam a tocar gratuitamente, consoante seus ideais libertários, em festas de agremiações de extrema-esquerda como a LCR (Ligue Communiste Révolutionnaire); em grandes festivais autogestionários, como o realizado em Biévres, sul de Paris, em junho de 1973, onde tocam ao lado do Gong para mais de 50.000 pessoas; e em turnês-relâmpago pela África, sobretudo no Marrocos.

Em função de seu ethos atavicamente errático, o Crium Delirium jamais assinou um contrato formal com qualquer gravadora, de que modo que nenhum material oficial foi lançado durante sua carreira (1968 - 1976); não obstante, em 1993, o selo francês Legend Music editou o disco Power to the Carottes: Concerts 1972 1975 , que recolhe gravações ao vivo registradas em França e no norte da África no decorrer do período supracitado.

Antes de mais nada, é mister sublinhar que, em termos artísticos, não se pode dizer que o grupo seja particularmente excepcional; tratam-se, ademais, de registros via de regra tecnicamente precários, levados a efeito com recursos modestos. Como, então, explicar o charme desleixado, a cativante aisance, a descompromissada joie de vivre que emana dessas faixas? A meu juízo, por sintetizarem de forma emblemática o universo estético e espiritual da contracultura psicodélica; vale também destacar a variedade musical apresentada pela banda, um vero smorgasbord sônico: destarte, se as quatro pièces de résistance do álbum (Shilum Baba, Villes Champignons, Roanne Gig, Peanuts Butter) são workouts improvisatórios em compasso de space rock jazzístico à la Gong, temos também uma atmosférica cançoneta de inequívoca ressonância nipônica (Quand Vient Le Soir); guitarrismos hendrixianos tingidos de heavy psychedelia ao estilo Hawkwind (Montlery Guitare); folk psicoativo de derivação eletrônica (Ouverture Lutins); rock'n'roll sacana e debochado (Les Road-Managers, com a impagável passagem C'est nous les 'road-managers' / On sèment les 'flips', on créé la terreur / Aussi à cause du LSD propulseur / Quel bonheur!!!); alucinógenas deambulações freeform (Stone à Rouler); breves exercícios ambient (Boite à Musique, Antibes); assemblage eletroacústica (Radiom); etno-tribalismos de sabor maghrébien (Night in Tabarka); e até mesmo uma caótica intro, digna de mestre Kawabata e seu patafísico esquadrão de propagadores de rumori apocalípticos (Aventures Chez L'OM).

Enfim, meus diletos confrades: malgrado não se destaque, quiçá, conforme salientei antes, pela excelência num plano estritamente musical, o Crium Delirium conjura, com rara felicidade, o vertiginoso zeitgeist de uma época onde o espírito de aventura sonora e existencial parecia ilimitado, espraiando-se infrene por policromáticas nebulosas de radiações oníricas.



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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Notas de reflexão crítica VI - ouvir música: um 'ritual' em extinção?

Alphonse van Worden - 1750 AD




- Antes de avançar no tema propriamente dito desta breve nota, ó insignes confrades, devo à partida fazer duas observações preliminares:

1) Obviamente não estou aqui a referir-me ao ato de ouvir música lato sensu, mas sim numa acepção stricto sensu, isto é, o ato de ouvir música isolado de qualquer outra atividade, seja navegar pela internet, fazer ginástica, conversar, trabalhar, etc.

2) Malgrado haja um fortíssimo componente geracional embutido, não creio que a questão que abordarei diga respeito tão somente aos jovens; tenho certeza, por exemplo, de que uma parcela significativa de nossos leitores, os mais jovens também incluídos, aprecia imenso escutar música stricto sensu.

- Isto posto, creio que a maioria de vós concordará que o ato de ouvir música como 'ritual' autossuficiente, que se basta a si mesmo, tragicamente está em extinção. No bojo da 'geração mp3 / iPod', escutar música é cada vez uma atividade acessória, secundária, caudatária de alguma outra lide, tal como as que acima mencionei: o sujeito hodiernamente trabalha E ouve música; navega pela internet E ouve música; exercita-se E ouve música, etc. Assim sendo, ouvir música como imersão total num universo estético/ conceitual paralelo, regido por parâmetros únicos, de todo distintos de nossos estados de consciência mais prosaicos, torna-se um prazer mais e mais restrito a um punhado de melômanos em extinção, verdadeiros dinossauros na era do automatismo psíquico.

- Seria possível aventar toda sorte de causas para o fenômeno supracitado, que podem ir desde razões de cunho pragmático-ideológico (a restrição do tempo disponível para hábitos que são fim e ao cabo 'improdutivos' para a mentalidade mercantilista que impera em nossa época); operacional (a praticidade de se escutar arquivos em mp3 no computador); e até mesmo psicológico (o crescente déficit de atenção que afeta as novas gerações, facto diagnosticado por recentes estudos médicos, que atestam o aumento do índice de neonatos hiperativos a cada década). Tais considerações por si só já constituíram food for thought para muitos debates, mas gostaria também de enveredar aqui por reflexões de outro jaez, a saber: uma transformação tão radical na 'fenomenologia' do escutar música provocará (ou mesmo já estaria a provocar) profundas metamorfoses na própria ontologia da criação musical? N'outros termos, desta feita de ordem econômica: tamanha alteração no hábito de consumir música modificará de forma sensível o ato de produzir música?

- Por fim, gostaria de abordar uma questão de índole decerto subsidiária, no quadro do tópico em pauta, mas de todo modo relevante. Muito embora o processo que descrevi certamente reverbere a situação analisada por autores da kulturkritik frankfurtiana como Adorno e Benjamin, há a meu ver uma distinção crucial entre eles: se a reprodução fonomecânica facultou, é verdade, que o 'ritual' de ouvir música fosse transplantado da esfera pública para o âmbito privado, bem como perdesse sua aura de experiência única, irredutível à repetição, ela não impediu, contudo, que o ouvinte 'mergulhasse' na obra; muito pelo contrário, potencializou à enésima potência tal possibilidade, tendo em vista ter permitido que pudéssemos escutar uma mesma peça musical quantas vezes quiséssemos. A dinâmica a que aludi, por seu turno, se estabelece exatamente na contramão de tal processo, pois representa a transformação do ato de ouvir música em complemento agradável de atividades tidas como práticas ou úteis; ademais, sempre entrevi uma contradição flagrante na crítica cultural frankfurtiana: a invenção da imprensa, que entre outras coisas facultou a criação do conceito humboldtiano de universidade, sem o qual o próprio Adorno sequer teria sido possível, é também um processo de reprodução técnica, que consoante tal perspectiva fatalmente também subtrairia a 'aura' da transmissão do conhecimento como ritual exclusivista restrito ao mestre e discípulos, ou então a nobreza estética do livro artesanal, pejado de iluminuras; destarte, a cultura permaneceria como apanágio da aristocracia, e Adorno, homem egresso da pequena burguesia, a ela jamais teria tido acesso.


*publicado também em http://www.oboletim.com.br/2019/01/28/ouvir-musica-um-ritual-em-extincao/

sexta-feira, junho 15, 2007

VITÓRIA!!!

Alphonse van Worden - 1750 AD  


Ó precolendos, ínclitos confrades, áticos e egrégios irmãos d'armas! Assomam-me aos olhos copiosas lágrimas do mais garrido júbilo! Os indômitos mavortes da Resistência Islâmica, sob os miríficos auspícios do celestino AMIR UL-MOMINEEM, ingente Sustentador de Mundos e inefável Senescal da Guerra Cósmica, são agora senhores absolutos nas sacrossantas planitiae de Gaza, esmagando a soez e fedífraga hidra do Fatah! Allahu Akbar...Allahu Akbar...Allahu Akbar!!! Viva a gloriosa Resistência Islâmica Antiimperialista!!! Morte ao moloch sionista e seus seqüazes!!!

sexta-feira, junho 01, 2007

A propósito da perspectiva intencionalista em Michael Tye

Alphonse van Worden - 1750 AD 




Em seu livro Ten Problems of Consciousness: A Representational Theory of the Phenomenal Mind (MIT Press, 1995), Michael Tye procura levar a cabo uma formulação abrangente da perspectiva intencionalista, isto é, da concepção que entende que as qualidades fenomênicas da experiência sensorial são esgotadas por seu conteúdo representacional. Tye desenvolve seu intencionalismo a partir da consideração e da resolução de dez problemas filosóficos, e de um conjunto de paradoxos da consciência fenomenal a eles relacionados. Os dez problemas abordados pelo autor são os seguintes: 1 - O problema da propriedade: se sensações como a dor são físicas, por que minha dor não pode ser sentida por outros indivíduos? Por que razão, ao contrário de outros objetos físicos, como uma cadeira ou um rochedo, não existe dor que não pertença a uma determinada criatura sensível? 2 - O problema da subjetividade perspectiva: por que a compreensão plena de certas experiências fenomênicas só pode ser alcançada com a efetiva experimentação de tais experiências? Pois se é, por exemplo, compreender a natureza de um elemento químico como o sal sem ser necessário experimentá-lo, a experiência de um ser humano comendo sal só pode ser integralmente compreendida por alguém que seja humano e que já tenha provado sal. 3 - O Problema do Mecanismo: de que modo transformações físicas no cérebro, de caráter objetivo, geram experiências e sentimentos subjetivos? 4 - O Problema da causação fenomênica: se existe uma explicação física, objetiva, completa da razão pela qual nossos corpos movimentam tal como de fato o fazem, então por que o modo como sentimos as coisas, a maneira como subjetivamente se apresentam, modificam nosso procedimento? 5 - O Problema do Super Blindsight: em que precisamente consiste a diferença entre um Super Blindsight, que é informado que certos estímulos estão presentes (na zona cega de seu campo visual), e um indivíduo com visão normal que experimenta tais estímulos? 6 - O Problema das Duplicatas: Poderiam existir dois seres cujos corpos fossem fisicamente idênticos, isomórficos, e que ainda assim apresentassem estados de consciência fenomicamente distintos? 7 - O Problema do Espectro Invertido: é possível a existência de um par de duplicatas microfísicas cujas experiências sejam fenomenicamente invertidas? Poderia haver, portanto, inversão fenomênica num contexto em que também exista duplicação microfísica? 8 - O problema da transparência: Por que motivos, quando tentamos nos ater aos aspectos intrínsecos de alguma experiência, tudo que encontramos são os aspectos daquilo a que a experiência se refere? 9. O problema da localização sentida e do vocabulário fenomenal: Quando sinto uma dor aguda em minha perna, o processo físico que constitui a dor é compreendido como um estado cerebral, e não um estado de minha perna, como já foi constatado por intermédio das dores fantasma experimentadas por indivíduos que tiveram membros amputados. E estados do cérebro não são em si mesmos agudos. Então quando sinto uma dor aguda em minha perna estarei sendo vítima de uma ilusão? Os termos na e aguda possuem significados diferentes dependendo do modo estão sendo empregados em contextos fenomenais? 10. O problema do membro extracorpóreo: Quando nossa perna está ferida, sentimos que a dor experimentada é uma dor associada à nossa perna, e não apenas uma dor numa perna qualquer. Algumas pessoas, contudo, passam por estados nos quais não mais sentem partes de seus corpos como pertencentes a si mesmo, mas como pertencentes a alguma outra pessoa ou a ninguém. Por que isso acontece? O conjunto de problemas acima descrito é um indício da abrangência deste livro, convertendo-o numa introdução extremamente útil ao estudo dos problemas metafísicos da Consciência em décadas recentes; todavia, dada a amplitude das questões abordadas pelo autor, minhas considerações irão se restringir, no âmbito deste trabalho, aos argumentos de Tye a favor da teoria intencionalista, objeto central de seu projeto. Antes de expor os argumentos que tencionam demonstrar o caráter intencional das experiências fenomenais, Tye procura formular uma noção de intencionalidade adequada aos processos sensoriais. E uma vez que seu principal objetivo é demonstrar como os processos da Consciência podem ser inteiramente físicos, sua concepção de intencionalidade precisa se enquadrar numa perspectiva fisicalista. Tye usa como exemplo a maneira como os círculos vistos no corte do tronco de uma árvore representam a idade em anos da árvore: se as condições fossem ideais então o número de círculos no tronco de uma árvore seria igual aos anos vividos pela árvore . Escreve o autor: “para cada estado S de um objeto x, dentro do conjunto relevante de estados alternativos de x, podemos definir o que o estado representa da seguinte maneira: S representa que P = df se condições ideais são obtidas, sendo S sinal de x se, e somente se, P e porque P” (pág. 101). Em resumo, podemos dizer que S representa aquilo que causalmente 'covaria' (do verbo covary, no original) em condições ótimas ou ideais. Essa definição nos convida imediatamente a questionar quais condições devem ser consideradas ideais. Tye nos diz que condições ideais são aquelas em que “... não há fatores deformadores, nem anomalias nem anormalidades...” (pág. 101) ; ou então, “no caso de criaturas biologicamente vivas, é natural supor que as condições ideais pertinentes são aquelas nas quais os mecanismos sensoriais estão desempenhando suas funções biológicas” (pág. 153). Partindo dessa concepção naturalizada de representação, Tye argumenta que todos os exemplos de consciência fenomenal são representativos. A estratégia argumentativa geral de Tye para dar conta de algumas sensações poderia ser resumida do seguinte modo: (a) fornecer uma descrição rudimentar do que seja experimentar aquela sensação, (b) demonstrar que há propriedades no mundo (o que inclui nossos corpos) nas quais nossas sensações covariam em condições ideais, e (c) demonstrar que a descrição dada em (a) contém o que está dado em (b). O autor aplica essa estratégia em todas as espécies de sensações fenomenais incluindo afterimages, dores, coceiras, formigamentos, sede, febre, pontadas de fome, orgasmos, emoções e estados de espírito tais como ansiedade e depressão. Essa estratégia é particularmente flagrante e convincente quando Tye trata de estados fenomenais tais como dores. O que significa ter uma dor no pé? É como experimentar algo de terrível acontecendo em seu pé. E, em condições normais, o que faz essa sensação causal covariar? Varia de acordo com danos ou perturbações ocorridos nos tecidos daquele órgão. Pontadas de dor representam perturbações leves, de curta duração; dores representam volumes dentro do corpo que possuem localizações e dimensões difusas, vagas; dores lancinantes representam um dano repentino em áreas bem definidas do corpo. De certa maneira, a estratégia de Tye parece ser especialmente eficaz na análise da dor já que o que a introspecção revela ser o porquê da dor se ajusta às nossas idéias sobre qual é a função biológica da dor. Para outros tipos de experiências, entretanto, o argumento de Tye se afigura tão convincente. Consideremos, por exemplo, seu intencionalismo de aplicado aos estados de espírito. Tais estados são descritos como estados corporais, apesar de o que representam ser “difícil de descrever” (pág. 129). O autor tampouco nos revela quais são os contextos intencionais da ansiedade ou da depressão, ou como podem covariar causalmente em condições ideais. Um aspecto problemático da exposição de Tye sobre o conteúdo intencional da experiência é a ausência de discussão sobre certos problemas que surgem quando são especificados quais são os conteúdos da experiência. Observemos a experiência fenomenal das pontadas de fome. Esses espasmos causalmente covariam com as contrações estomacais e, de acordo com Tye, é precisamente isso que essas sensações de pontadas representam. Mas por que não representam propriedades que também covariam causalmente com espasmos em condições ideais tais como, por exemplo, a falta de comida ou falta de açúcar no sangue? Tye não aborda tais questões. Questões similares podem surgir em conexão com os argumentos de Tye sobre as sensações que se relacionam ao orgasmo. Afirma o autor: “Nesse caso experimentamos as representações sensoriais de certas mudanças físicas na região genital. Essas mudanças ondulam rapidamente em sua intensidade. Além disso, são extremamente agradáveis. Trazem à tona uma reação imediata e altamente positiva” (pág.118). Podemos concluir, portanto, que o conteúdo intencional dos orgasmos – estados que covariam causalmente sob condições ideais - são mudanças físicas na região genital. Mas existem também outras coisas que podem causalmente covariar com os orgasmos em condições ideais – não seria absurdo, digamos, supor que a função biológica das experiências orgásticas é a de nos levar a gerar bebês. Mas será que isso significa que essas experiências representam bebês? Se a resposta a essa questão é sim, então a assim chamada transparência da experiência é questionável, desde que ao perscrutar a sensação experimentada num orgasmo, os bebês são a última, e não a primeira coisa que vêm à mente. Se todavia a resposta for não, seria relevante saber por que, dentre todas as coisas que num estado fenomenal causalmente covariam em condições ideais, apenas algumas delas são óbvias para nós, quando introspectivamente examinamos as qualidades intrínsecas da experiência. Tye não assegura apenas que todas as experiências fenomenais têm conteúdos intencionais – ele afirma que são essencialmente intencionais, quer dizer, que os acontecimentos cerebrais não seriam experiências fenomenais a não ser que tivessem conteúdos intencionais. Os argumentos apresentados em defesa da primeira proposição são bastante consistentes; já os apresentados para sustentar a segunda, nem tanto. Salientemos que quando, por exemplo, assevera que a dor é intencional, Tye demonstra apenas que a sensação da dor causalmente covaria com perturbações dos tecidos em condições ideais. Da mesma forma, em relação às pontadas de fome, escreve o autor: “a experiência das pontadas de fome rastreia contrações nas paredes do estômago, tudo estando bem (e conseqüentemente, em minha opinião, representa essas contrações)...” (pág.117). Tais observações ajudam a demonstrar que as experiências têm conteúdos intencionais. Elas, no entanto, pouco fazem para mostrar que é apenas em virtude de experiências serem selecionadas para covariar causalmente com alguma propriedade externa que um estado cerebral pode ser considerado uma experiência. Certamente, os círculos numa árvore podem representar os estágios de seu crescimento, sem que necessariamente uma parte da árvore não conte como um círculo a não ser que represente um estágio de crescimento. Por que não pensar, analogamente, que estados cerebrais podem dar lugar a sensações que tenham conteúdos intencionais sem que a presença conteúdos intencionais seja uma condição impositiva para dar lugar a sensações? De acordo com Tye, a razão pela qual devemos resistir a essa conclusão negativa é que ao fazê-lo estaríamos ignorando “a mais direta explicação para o fato que (...) todas as experiências e sensações têm conteúdos intencionais, da união das diferenças percebidas com as diferenças intencionais, e do fenômeno da transparência” (pág.136). Esses pontos não parecem ser, contudo, tão evidentes. Suponhamos, por exemplo, que todos os círculos da árvore covariem causalmente com os estágios do crescimento e que os representem. Concluiríamos então que a mais completa explicação de que os círculos da árvore possuem conteúdos intencionais envolve a certeza de que os círculos da árvore são essencialmente intencionais, isto é , que não seriam círculos genuínos a não ser que houvesse alguma coisa com a qual covariassem causalmente em condições ideais? Se os mistérios centrais da Consciência dizem respeito à compreensão de como tais fenômenos podem ser inteiramente físicos, invocar a intencionalidade pode significar o acréscimo de um mistério adicional. Entretanto, a despeito dos problemas que sua perspectiva intencionalista possa suscitar, o livro de Michael Tye oferece uma abordagem estimulante de uma das mais intrigantes áreas da filosofia da mente e da ciência cognitiva.

Flipper rules, OK!?





Os norte-americanos do Flipper não foram a primeira banda a levar a insuportabilidade latente no rock'n'roll desde os primórdios a seu state of the art; tampouco foram os que a tal mister imprimiram maior radicalismo. Podemos, todavia, afirmar que foram decerto os que lograram tal feito com menos recursos, bem como d'uma maneira inteiramente desprovida de qualquer pretensão ‘artística’(os avantêsmicos Electric Eeels, de Cleveland, poderiam ser citados como pioneiros, mas a meu ver seu protopunk ‘grandguignolesco’ envolvia, ainda que por vias transversas, uma certa dose de arrogância e pretensão). O facto é que entre 1979 e 1985 Bruce Lose (vocais, baixo), Will Shatter (baixo, vocais), Ted Falconi (guitarra elétrica) e Steve de Pace (bateria) subverteram completamente os postulados do punk hardcore norte-americano: num cenário onde a não raro improfícua busca pela maior velocidade era a grande meta, a banda deliberadamente desacelerou ao máximo sua música em compasso de mórbido pesadelo slowcore, soterrando-a sob toneladas de microfonia num charco de areia movediça formado por mastodônticos drones de baixo, assim forjando uma espécie de noise rock brutal, inclemente e hipnótico; para usar a irônica analogia de um crítico do NME, um “Black Sabbath para machos”, trocando afetação teatral por descargas concentradas de agressão serial. Não obstante, uma porção significativa de sua insuportabilidade advinha do caráter intratável de seus integrantes, que cultuavam um ethos existencial pejado de niilismo autodestrutivo numa relação simbiótica com o fascínio / repulsa da audiência. Flipper sempre jogou com extremos, com o irresistível impulso de 'desarrumar o arrumado', 'deixar o vagão correr solto', sempre encontrando mórbido prazer em violar todos os parâmetros do 'bom senso' estético, alojando-se com misantrópica disposição numa dimensão paralela violenta e inóspita, esfera de extravagante alienação voluntária e desorientação militante, encarnando destarte a 'grande recusa', para lançar mão aqui de um termo de Marcuse.

Fôssemos optar por um caminho racional, o álbum a ser resenhado seria o genial Generic Flipper (1982), onde o avassalador sludgecore noise rock dos caras encontra sua mais rigorosa e sólida manifestação; todavia, ao falar sobre um fenômeno como o Flipper, não há como adotar o caminho mais plausível sob hipótese alguma! Ademais, como não é difícil de se imaginar no âmbito da tortuosa lógica que rege all things Flipper, o contexto ideal para que o Théâtre de la Cruauté flipperiano pudesse florescer com maior impacto era o palco: nossos heróis já entravam em cena invariavelmente ‘chapados’ e agredindo a platéia; e para piorar as coisas (ou melhorar, who knows...), de propósito ralentavam o andamento de suas canções, irritando ao máximo uma platéia habituada ao esquema habitual do hardcore. Álbuns como Public Flipper Limited Live 1980 - 1985 (1986) e Blow’n Chunks (1984), que será o objeto desta nossa resenha, felizmente conseguem nos transmitir uma idéia do que foram tais rituais de caos sonoro e devastação existencial, no caso em tela registrado a 18/11/1983 no CBGB'S, um dos clubes mais mitológicos de Nova York.

Consta que no primeiro set da noite o Flipper apresentou-se ‘normalmente’, muito embora com uma agressividade e descaso pelo que estava sendo tocado ainda mais desafiadores que o habitual; brigas eclodiram na platéia, ofensas foram trocadas entre espectadores e membros do grupo, o que no entanto já era mais do que costumeiro em seus shows. Com o retorno para o segundo set (prática comum em concertos underground) horas mais tarde, entretanto, a coisa mudou de figura, assumindo contornos a um só tempo macabros e fascinantes: inacreditavelmente bêbados, drogadaços e exaustos, bem como tocando divinamente mal, os dementes arrojaram sobre a audiência uma espécie de jam atonal, caótica e informe, onde a muito custo poderiam ser identificados trechos de Ice Cold Beer, Love Canal, Sacrifice, Ha Ha Ha e quiçá da clássica Louie Louie, dos Kingsmen. A massa sonora tornava-se a cada minuto mais lenta, arrastada e catatônica (like a cassette player with dying batteries, na brilhante descrição d'uma testemunha), em níveis absurdos de distorção e barulho, e o grupo não parecia nada disposto a encerrá-la. O público, por seu turno, entre furioso e embevecido, esbravejava horrores, arrojando um maremoto de objetos sobre o palco, até que um punhado de punks mais indignados/alucinados decidiu descer o cacete na banda; com o pugilato rolando solto na ribalta e na platéia, poucos notaram que o baixista Will Shatter, por acaso recolhido a um canto, continuou despejando aterradores e ultra-saturados riffs de baixo. Quando a ‘tempestade’ amainou, com corpos a nocaute para todos os lados, alguém enfim notou a arrasadora performance de Shatter, e bradou: hey, folks, look at that fucking bastard up there!. Alguns então começaram a aplaudir, e logo o clube inteiro foi abaixo numa tonitruante salva de palmas, causando espanto ao próprio músico, que enfim despertou de sua trip particular.

Ódio, caos, aventura, risco, anarquia, imprevisibilidade, loucura, agressão, epifania, êxtase: eis, meus caros confrades, a vera e incandescente matéria em que se forja a essência maior do rock'n'roll, ilustrada à perfeição pelo Flipper; ou, como nos diz o lapidar slogan da formação californiana: Flipper suffered for their music - now it's you turn.





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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

segunda-feira, maio 14, 2007

In Memoriam III

Alphonse van Worden - 1750 AD















Ó insigne corifeu mujahid Dadullah Lang, belígero e pugnaz mavorte do deífico AMIR UL-MOMINEEM, que para ti se descerrem as fádicas sendas da Arcana Coelestia!!!


segunda-feira, maio 07, 2007

We know you got SOUL...



























A trajetória de um fã de música nunca é um movimento retilíneo e uniforme; trata-se, ao contrário, de um percurso pejado de descontinuidades, lacunas que, na medida do possível, vamos sanando ao longo dos anos. No meu caso, um desses hiatos era, até bem pouco tempo atrás, a mais lendária formação southern, The Allman Brothers Band; e se muito tempo levei para descobri-los, pouquíssimo tempo foi necessário para que eu fosse irremediavelmente arrebatado pela música desses fantásticos 'caipiras': trata-se, sem qualquer sombra de dúvida, d'uma TREMENDA banda de rock'n'roll, caracterizada por uma sonoridade inconfundível, que se propaga tanto por meio de titânicos workouts de blues rock estratosférico, epopéias sônicas reverberando através do espaço-tempo from Jupiter and beyond the Infinite, quanto por intermédio da lapidar concisão de canções atemporais.

Tendo em vista o facto de estarmos a falar sobre uma banda célebre, que carece de maiores considerações introdutórias e/ou históricas, passemos logo d'uma vez à matéria central desta resenha: o extraordinário At Fillmore East, se calhar um dos 5 melhores discos ao vivo em toda a história do rock, incontrastável obra-prima de nossos amigos, retratando-os em seu melhor habitat.

Gravado nos dias 12 e 13 de março de 1971, numa tradicional casa de espetáculos em NY, At Fillmore East se inicia com dois emblemáticos standards do blues, Statesboro Blues e Done Somebody Wrong, canções executadas exaustivamente à época por dezenas de bandas. Assim sendo, qual seria o diferencial que o ABB aporta para tais peças? Uma execução simplesmente irretocável, tanto em termos de feeling quanto no que se refere à destreza instrumental, transfigurando à perfeição o que se espera de uma blues song.

Na terceira faixa, a também clássica Stormy Monday, a excelência musical da banda começa a tingir-se de contornos de genialidade: o que nas mãos de músicos comuns é apenas mais um standard de blues, com a ABB se converte numa onírica saga de guitarras ecoantes e camadas de órgão elétrico projetando-se suavemente na atmosfera, em texturas sonoras sobremaneira sofisticadas e envolventes. Na faixa seguinte, a trovejante You Don't Love Me, a coisa já envereda pelo terreno sobrenatural: o interplay entre as guitarras de Duane Allman e Dickey Betts atinge níveis quase telepáticos de organicidade e interação, com solos sucessivos entrelaçando-se sem esforço aparente, como se obedecessem a um encadeamento lógico e natural. Duane Allman, em particular, revela-se um MONSTRO SAGRADO nas seis cordas, exibindo completo domínio do idioma de seu instrumento em assombrosas seqüências de sustains atmosféricos e slides lancinantes, fúlgidas cascatas de sons em mandalas abstratas de êxtase; escutem, por exemplo, a rutilante passagem entre 13:00 / 16:00. Merece também preito de admiração a estupenda seção rítmica formada por Barry Oakley, 'Jaimoe' Johnson e Butch Trucks, poderosa locomotiva a propelir adiante a traummaschine musical de Duane, Gregg e Dickey.

A seguir, como interlúdio antes da blitzkrieg sônica dos números finais, vem a relativamente breve Hot 'Lanta, onde a banda nitidamente ganha momentum para o que virá a seguir, mas ainda demonstra sua inigualável capacidade instrumental.

Encerrando os trabalhos, temos as antológicas In Memory of Elizabeth Reed e Whipping Post. A primeira delas, assinada por Betts, é um dos instrumentais mais emocionantes que já escutei em qualquer gênero, um verdadeiro monumento de feeling textural, senso de proporção melódica e elegância estrutural; é sobretudo o verdadeiro zênite da banda em termos de fluidez e finesse, tangenciando horizontes sonoros dignos de um John Coltrane ou de um Miles Davis em suas melhores fases.

Maravilha urdida por Gregg Allman, Whipping Post, por fim, talvez seja a supina consumação, o tributo definitivo to all things Allman: um vibrante rhythm and blues desdobrando-se em inauditas paisagens de transcendência aural, locus privilegiado para o ataque combinado das guitarras de Duane e Dickey explodir em miríades e miríades de solos supersônicos, enquanto Gregg Allman preenche os vazios intersticiais com as texturas policromáticas de seu órgão elétrico e as imprecações de seus vocais tonitruantes, ao passo que a seção rítmica providencia uma ancoragem a um só tempo exuberante e metronômica. Mais uma vez, o interplay alcançado pelo ABB desafia descrições fáceis, atingindo planos de expressividade artística e deslumbramento estético raramente igualados antes ou depois no âmbito do rock'n'roll.

Enfim, excelsos confrades: IMPRESCINDÍVEL.





















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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Breve comentário sobre a disjuntiva 'administração pública' x 'política'

Alphonse van Worden - 1750 AD



O contencioso radica, creio, na reiterada mixórdia que amiúde ocorre entre os conceitos de 'administração pública, de um lado, e 'política', de outro:

A 'administração pública' é um espaço de decisão pautado pela escolha racional do caminho, perspectiva ou solução mais eficaz disponível no momento; é, destarte, um domínio onde impera a ação determinada por coordenadas empíricas, isto é, pelas limitações, estruturais e conjunturais, impostas por um dado contexto.

A 'política', por seu turno, é uma esfera de atuação determinada por imperativos essencialmente ideológicos, em outras palavras, pelo desejo que se converte em esforço coletivo; assim sendo, independe de quaisquer injunções ditadas pela razão.

Uma instância concreta do que acabo de expor pode ser constatada ao examinarmos o que ocorre hodiernamente na Venezuela: em termos de 'administração pública', o governo do presidente Hugo Chávez adota, como deve ser, uma perspectiva balizada por critérios de ação racionais, de modo que, por exemplo, as exportações de petróleo para os EUA prosseguem em seu curso normal; por outro lado, no que tange à esfera 'política', Chávez pode dar livre curso a seu desiderato ideológico, conclamando o continente ao enfrentamento antiimperialista.

Claro está que a situação ideal surge quando se torna possível uma convergência, tanto de propósitos quanto operacional, entre as duas esferas; ou, em outras palavras, quando a 'administração pública' corresponde aos anseios da ideologia e a 'política' pode pautar-se pela razão sem trair os ideais que acalenta; desafortunadamente, contudo, isto sói acontecer mui raramente na História.

segunda-feira, abril 09, 2007

Notas de reflexão crítica V - Nietzsche e a perversão irracionalista




- A estetização sem limites formula-se como descompromisso total em relação à realidade concreta, ignorando as particularidades sociais, culturais, econômicas e políticas de um dado contexto em seu processo histórico.

- A estetização exacerbada da política conduz inelutavelmente ao mais radical autoritarismo, uma vez que ignora a diferença e o contraditório, quando não tenciona pura e simplesmente suprimi-los.

- O Nacional-Socialismo é o fruto mais rematado da supracitada dinâmica (cf. A Arquitetura da Destruição)

- O ideal estético, quando lastreado por manifestações concretas, pode funcionar como hipótese de reforma da realidade; todavia, quando desligado de qualquer injunção pragmática ou âncora material, converte-se em fantasia caprichosa de imprevisíveis conseqüências, mormente na esfera política.

- Consoante o dinamarquês Kierkegaard, há três vias para a existência humana: a via moral, a via estética e a via espiritual; em última instância, salienta o autor dinamarquês, todas conduziriam ao desespero. A princípio, o ideal estético procede em busca do bom, do belo e do verdadeiro, mas como não há termo final para esses talantes, em função da inexistência de parâmetros objetivos que os norteiem, essa busca leva à fome insaciável pelo absoluto. Eis, então, o ‘ovo da serpente’: tal desmesura, que ignora por completo a singularidade humana, é terreno fértil para toda sorte de fundamentalismos políticos e religiosos, que se nutrem precisamente do anseio desesperado pela totalidade que tudo poderia explicar e solucionar.

- Portanto, a 'fome do absoluto' nietzscheana, em seu âmbito filosófico, nos leva à estetização radical da realidade, processo que forçosamente irá redundar em retumbante sentido de fracasso e enorme frustração, feita a constatação óbvia e inescapável de que o Real não pode ser moldado livremente a partir de nossa subjetividade; no plano político, por um lado, a saída para tal impasse é o advento de regimes totalitários, os quais acalentam a ilusão de que a realidade possa ser formatada à imagem e semelhança de uma dada visão de mundo; na esfera existencial, por outro, a patente negação empírica do desejo infrene de transformação nos remete, em primeira instância, a uma ‘solução’ niilista, postulando a rejeição completa das possibilidades efetivas da ação humana, em conclusão de certo modo análoga às ficções budistas.

- Nietzsche, por seu turno, dá entretanto um passo além: do niilismo absoluto salta para a apologética do engajamento existencial, filosófico e político, mesmo que a priori desprovido de qualquer possibilidade de êxito. O indivíduo passa a agir sem qualquer estribo em convicções sólidas, mas tão somente movido por um fascínio mórbido e oligofrênico pela afirmação irresponsável de sua própria 'vontade de potência'.



Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Capitalismo x Feudalismo na perspectiva kurziana

Alphonse van Worden - 1750 AD






O sociólogo e economista marxista alemão Robert Kurz, para além de suas controversas, malgrado percucientes análises a propósito da configuração atual do ‘sistema produtor de mercadorias’, tem sido particularmente útil no desmonte de certas ficções pseudo-revolucionárias, de origem mormente iluminista. Em seu livro Os Últimos Combates podemos encontrar, em diversos ensaios, referências positivas a respeito da sociedade feudal, não apenas no tocante ao processo de modernização que iria redundar, a partir dos séculos XVII e XVIII, na consolidação do capitalismo, mas até mesmo em relações a certos aspectos do próprio sistema capitalista.

Kurz salienta, com freqüência e sempre de modo enfático, que a vida dos camponeses, servos e artesãos medievais era, de uma maneira geral, mais livre e confortável que o padrão de vida do proletariado, e mesmo da classe média baixa, no século XIX e no início do século XX. No ensaio Escravos da luz sem misericórdia, por exemplo, o autor alemão, fazendo um cotejo entre a duração da jornada de trabalho na atualidade e no período medieval, nos diz ser possível constatar, por intermédio da consulta a documentos da época, "que a jornada de trabalho dos servos nas glebas 'devia durar da alvorada ao meio-dia'. Ou seja, a jornada de trabalho era mais reduzida do que hoje não apenas em termos absolutos, mas também relativos, por variar conforme a estação e ser menor no inverno que no verão" (pág.250); n'outra passagem do mesmo texto, escreve o seguinte: "Nos séculos XVIII e início do XIX, tanto o prolongamento absoluto quanto o relativo da jornada de trabalho, por meio da introdução da hora econômica abstrata, foram sentidos como uma tortura. Por muito tempo, houve uma luta desesperada contra o trabalho noturno ligado à industrialização. (...) Quando na Idade Média calhava de os artesãos trabalharem à noite por razões de prazo, cabiam-lhes lautos repastos e salários principescos. O trabalho noturno era uma rara exceção. E consta das grandes 'façanhas' do Capitalismo ter logrado converter o aguilhão tempo em regra geral da atividade humana"(pág.251). Na conclusão deste texto, Kurz faz uma severa crítica ao próprio pensamento marxista, que se converte em 'religião do trabalho': "O Marxismo, em contraste à sua própria pretensão social, foi um protagonista do 'trabalho abstrato', à medida que sucumbiu ao pensamento mecanicista do Iluminismo e a seu pérfido simbolismo da luz" (pág.253).

Observem agora este trecho do ensaio Gênese do Absolutismo do Mercado, onde Kurz analisa o impacto social das transformações ocorridas na fase inicial da implantação do sistema capitalista: "O absolutismo lançara então a primeira base do moderno modo de produção capitalista, ao dar sinal verde para que a economia monetária de mercado suprisse as demandas de seu gigantesco aparato militar e burocrático. A grande maioria das pessoas sentiu esse desenvolvimento como uma repressão insolente e francamente monstruosa. De fato, o antigo e 'simples' feudalismo sangrara apenas superficialmente os camponeses e artesãos da sociedade agrária, os quais reservavam uma pequena parcela de seus produtos aos senhores feudais ou lhes faziam certos trabalhos. Quanto ao resto, no entanto, o feudalismo os deixava em paz. Em seus campos e suas oficinas, eles podiam fazer o que bem entendessem. Além disso, eles dispunham de sua própria administração local" (pág.264). Afirmações como essas que citei não constituem exceções, repetindo-se em diferentes passagens do livro, sempre enfatizando a opressão social da modernidade capitalista frente a uma sociedade feudal onde havia mais liberdade e respeito pela dignidade humana.

Vale dizer que tal contexto de opressão já assumia contornos bem nítidos e inequívocos para muitos autores e pensadores do período em tela. Ao examinarmos a produção literária inglesa dos séculos XVIII e XIX, não é difícil encontrar numerosos testemunhos da brutalidade, sobretudo em termos de relações de trabalho e bem-estar social, que caracterizou a transição da economia feudal para o modo de produção capitalista; assim sendo, as páginas de autores tais como John Ruskin, William Blake, Charles Dickens, Thomas Carlyle, Robert Owen, William Morris estão pejadas de sentimentos de horror, consternação e indignação a propósito dos diversos efeitos dessa perversa dinâmica de transformação sistêmica; com efeito, as más condições de vida da classe trabalhadora não eram o único e, em alguns casos, tampouco mesmo o mais freqüente, alvo dessa rejeição quase generalizada: Ruskin, Blake e Morris, por exemplo, além de condenarem a iniqüidade da exploração econômica capitalista, também verberam contra o pragmatismo espiritual subjacente a tal visão de mundo, bem como chegam a antever, ainda que de forma vaga e intuitiva, que a dinâmica estruturante da ‘nova ordem’ fatalmente conduziria à absorção de toda a vida humana pela lógica fria e implacável da rentabilidade mercantil.

Como reflexão de índole mais analítica e sistemática a propósito do mesmo acervo de temas, lastreada, inclusive, por estatísticas e estudos disponíveis à época, temos o célebre volume A Situação das Classes Trabalhadoras na Inglaterra (1845), de lavra do filósofo alemão Friedrich Engels (1820 - 1895); nessa obra, que se reveste de grande importância tanto como testemunho histórico quanto como crítica social, o autor denuncia, nos termos mais candentes, toda a truculência com que vastos contingentes populacionais foram praticamente arrancados do campo e confinados nos arrabaldes das grandes cidades sem as mais elementares condições de moradia, higiene e espaço físico.

Por mais 'heterodoxa' que sua interpretação do marxismo possa parecer, trata-se, creio, d'uma lufada de ar fresco necessária no âmbito dessa corrente de pensamento, que não pode mais coadunar com a pregação renitente e equivocada da Idade Média como tétrica 'idade das trevas', mundo sombrio de opressão e ignorância.

quinta-feira, março 01, 2007

Notas de reflexão crítica IV - Duchamp, Warhol e o vazio da arte contemporânea

Alphonse van Worden - 1750 AD






- O anarquismo estético de Marcel Duchamp, assim como o terrorismo conceitual de figuras como Tristan Tzara e Marinetti, desempenhou uma saudável função dessacralizadora na época em apareceu, 'desarrumando o arrumado' e desafinando o coro dos contentes e satisfeitos à época com os classicismos de segunda mão herdados do século XIX. Isto posto, é mister concluir que o problema não radica tanto nos criadores de uma determinada perspectiva, mas sim no epigonismo estéril dos discípulos: destarte, tanto epígonos quanto exegetas extrapolaram os elementos circunstanciais, portanto temporal e espacialmente localizados, e que deram substância e pertinência a movimentos como o dadaísmo, transformando-os em balizamento e objetivo final para a arte como um todo. A conseqüência deste processo nefando é o elogio acrítico e alienante da desconstrução como nec plus ultra da excelência artística, até que nada mais reste senão terra arrasada para ser 'dessacralizada'.

- Malgrado tenha desempenhado um papel interessante à partida, Duchamp exerceu, ao fim e ao cabo, influência das mais nefandas no quadro da sensibilidade estética ocidental. Seu deletério legado é o grande responsável pelo esvaziamento progressivo da carga simbólica que sempre esteve embutida na obra de arte, isto é, da obra de arte como instância capaz de evocar toda sorte de associações e ressonâncias, tanto de cunho emocional quanto intelectual.

- Ao urdir objetos 'artísticos' destituídos de qualquer capacidade evocativa, cuja finalidade esgota-se em si mesmo, entidades unidimensionais em sua horizontalidade estéril e rasa, Duchamp indiretamente gestou Warhol, Beuys e todo o lixo tóxico de 'instalações' e 'propostas' que infestam as galerias no cenário hodierno. Podemos asseverar, pois, que o urinol de porcelana que o artista francês designa como Fontaine, enviando-o, em 1917, a uma exposição de artistas independentes, é o receptáculo simbólico perfeito para abrigar seu ominoso legado...

- Se antes tínhamos um Botticelli transfigurando o platonismo em celestial lux aeterna; um Brueghel convertendo o misticismo pietista em fantasmagoria pictórica; ou um Goya traduzindo a inteligência crítica iluminista em arte libertária, temos hoje, pós-Duchamp, uma espectral legião de espertalhões e/ou idiotas prepotentes reverberando acriticamente um constrangedor vazio de significados disfarçado de 'desconstrucionismo', 'pós-modernidade' ou quaisquer outras estultícias do mesmo jaez.

- Hoje vemos, por exemplo, manifestações de arte abstrata em qualquer canto, até mesmo em banheiros e salas de espera. Isto ocorre justamente pelo facto de que o que outrora foi transgressão, hoje se converteu em mero 'transgressismo', ou seja, foi perfeitamente diluído e absorvido pela mediocridade do gosto médio; desta maneira, poderíamos afirmar que o abstracionismo é atualmente o exato equivalente plástico da tal música 'brega-flashback-new-age-musak-dor-de-cotovelo'.

- Andy Warhol, um dos mais patéticos herdeiros de Duchamp, sob pretexto de ‘desmascarar’ a arte, mostrando-a como uma mercadoria a mais na nossa sociedade de consumo, tão somente mistificou hordas de basbaques pretensiosos e auferiu fortunas com sua 'transgressão' mercadológica ('merDAcológica' também!) e oportunista. Há que propugnar não um retorno esquemático ao passado, mas sim o advento de horizontes artísticos que voltem a valorizar a produção de sentido, a ampla capacidade de evocar universos significativos; uma arte, enfim, que não seja apenas mera masturbação autorreferencial ou expediente ladino para arrancar dinheiro de burgueses deslumbrados.

Heldon: un cauchemar des dimensions electroniques



Esta genial banda francesa apresenta, creio eu, uma das trajetórias mais instigantes na história do avant prog. Assim como ocorre no King Crimson (grande influência para a formação gaulesa que ora abordamos), o Heldon é, de facto, a encarnação das idéias musicais de um guitarrista, o francês Richard Pinhas, refletindo, pois, em suas diferentes fases e formações, as obsessões e interesses de seu mentor. Desse modo, em sua primeira fase entre 1974 e 1975, representada pelos álbuns Electronique Guérilla (1974), Heldon II: Allez Teia (1975) e It's Always Rock and Roll (1975), a banda se caracteriza por tapeçarias eletrônicas minimalistas e hipnóticas, no esteio do trabalho de Fripp/Eno em No Pussyfooting (1973), do seminal Kluster e dos primeiros discos do Tangerine Dream. Predominam, pois, guitarras 'tratadas' por uma infinidade de dispositivos eletrônicos, bem como por texturas ambient noise geradas a partir de moogs, mellotrons, sintetizadores VCS3 e ARP. Confesso não ter lá grande interesse por esses álbuns, que, malgrado muito bem realizados, soam-me um pouco tediosos. Em 1976, contudo, Pinhas opera uma guinada significativa, tornando o som de sua banda mais ameaçador, claustrofóbico e pesado. O primeiro exemplar dessa metamorfose é a monumental Perspective IV, épico que encerra Heldon IV: Agneta Nilsson, com a fuzilaria metronômica e marcial de Coco Roussell e o baixo ultra-saturado de Alain Bellaiche incrementando as modulações guitarrísticas urdidas por Pinhas. Não obstante, a transformação só se faria completa com o álbum em tela na presente resenha, o estraçalhante Heldon V: Un Rêve Sans Conséquence Spéciale, também lançado em 1976, onde temos uma espécie de zeuhl 'crimsoniano' eletrônico ultra-agressivo e alienígena, com a participação especialíssima de notórios 'magmóides' como Janick Top e François Auger, respectivamente no baixo e na bateria, fornecendo uma sólida base rítmica para Pinhas estremecer o Universo com sua guitarra pervertida por toda sorte de distorções eletrônicas. Uma atmosfera de ominosa paranóia industrialista permeia todo o disco, que se caracteriza por uma produção 'suja' e ruidosa, elevando à enésima potência o ethos agressivo das composições. Marie Virginie C, faixa de abertura, sem dúvida uma das peças mais emblemáticas em toda a trajetória da banda, estabelece a atmosfera que dominará o álbum: trata-se d'uma espécie de KC viciado em heroína, militando na polícia secreta de um Estado totalitário intergaláctico; Elephanta, por seu turno, é um caótico tiroteio percussivo, algo como Can running the voodoo down, demonstrando o extraordinário talento de François Auger nas baquetas; seguem-se dois espartanos exercícios de eletrônica minimal ao estilo da primeira fase de Pinhas (Perspective IV Ter Muco e MVC II), levados a efeito, não obstante, com muito mais punch e intensidade que outrora, o que os torna sobremaneira fascinantes; temos, por fim, em Toward the Red Line e Marie et Virginie Comp (versão ao vivo da faixa inicial), mais dois trovejantes maelstrons de eletricidade cyberpunk e percussões em maximum overdrive mode ON, coroando à perfeição um disco verdadeiramente memorável. A dinâmica consagrada em Heldon V prosseguiria nos álbuns seguintes, Heldon VI: Interface (1978) e Heldon VII: Stand By (1979), que expressam o estágio final de maturação do novo Heldon, onde o grupo trabalha de forma exemplar as sonoridades ambient da fase inicial, integrando-as organicamente ao contexto de uma sonoridade sombria e turbulenta. 

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 Ten. Giovanni Drogo 

 Forte Bastiani 

 Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Ditosos são os discípulos do MESTRE!!!




Ao impertérrito irmão Aristocrata:

Ó dileto confrade, alvíssaras! Meus olhos pejaram-se de copiosas lágrimas ao ler a sacratíssima exortação do MESTRE! Durante muitos lustros, oh ínclito irmão d'armas , perambulei pelo cinéreo orco de sombras da heresia e da perfídia, emanações luciferinas do hórrido coletivismo; mas hoje, em humilíma contrição, admito, recebo e exalto a verdade perene, o alpha e o omega da mirífica Filosofia, assim como o imorredouro lume da pureza d'alma, infinitamente presentes nos ensinamentos do MESTRE! Ó excelso Aristocrata, o século entregue está a toda sorte de taras, endrôminas e inauditas perversões; ditosos, portanto, os amparados pela supina âncora moral e filosófica do MESTRE, pois só Ele regenera, compreende, sublima e redime!


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Aos que não acatam os ditames do MESTRE:

Muares, onagros, ínvias crias do apedeutismo, arrependei-vos, pois o fim está próximo!!! Ajoelhai-vos e penitenciai-vos, o MESTRE observa!!! Criaturas mundanas, prostrai-vos diante da iridescente Revelação, pois a sabedoria do MESTRE transcende o infinito e, como uma bênção, vos é Revelada! MESTRE, ó REI dos REIS!!! Vossa Palavra não carece de compreensão, é auto-evidente, tal como a noite sucede o dia, e o dia antecede a noite! Deve ser contemplada e entoada como o Cântico dos Cânticos, o Livro dos Livros, até que vossos insondáveis desígnios penetrem, ó MESTRE, o ímpio coração da humanidade! MESTRE, purificai-nos, derramai sobre nossas ímpias cabeças vossa ciência celestina!!!

Velai e perseverai todos vós! Hosannah nas alturas!



Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Notas de reflexão crítica III - a propósito do pensamento político orwelliano

Alphonse van Worden - 1750 AD





- Se a disjuntiva Bola de Neve / Napoleão (Animal Farm - 1945) decerto passa por uma disputa de poder pelo controle do Estado, e se é igualmente certo que tal contenda se dá no seio de uma elite dirigente, é também mister frisar que ela envolve outras dimensões, quiçá mais importantes. Bola de Neve - que a meu ver não retrata apenas Trotsky, tal como se costuma interpretá-lo, mas sim una espécie de amálgama entre este e Lenin - é concebido como uma figura contraditória, ambígua (por exemplo, a autorização de rações extraordinárias de leite e maçãs para os porcos), mas, de todo modo, revolucionária e popular - a organização de comitês com o fito de melhorar as condições de vida na fazenda; o projeto do moinho de vento como instrumento capaz de reduzir a carga de trabalho dos animais. Napoleão, por seu turno, é uma entidade incontrastavelmente negativa, uma vez que desde o princípio demonstra-se preocupado tão somente em assegurar aos porcos o papel dirigente, bem como em exercer tal primado com extrema truculência e autoritarismo.

- Assim sendo, a perspectiva assumida por Orwell é sobremaneira mais sutil e matizada que uma rejeição tout court à revolução soviética: se Lenin e Trotsky (mesclados em Bola de Neve) inequivocamente compartilham da responsabilidade pela limitação da democracia na Rússia soviética, é da mesma maneira insofismável o facto de que são revolucionários e libertadores, uma vez que, de facto, derribaram uma autocracia milenar e instituíram um novo regime, que trouxe um novo horizonte, tanto em termos econômicos quanto na esfera sociocultural, para milhões de seres humanos; são, portanto, figuras cujo legado, ainda que não isento de sombras, não pode ser descartado, e em que períodos diferentes encarnaram / simbolizaram papéis distintos. Há também que sublinhar - e isto é deveras importante na caracterização de Orwell como autor, ao fim e ao cabo, progressista - que o escritor inglês não chancela a idéia de que Marx, assim como Stalin e (parcialmente) Lenin, tenha sido um coletivista oligárquico, o que está meridianamente evidenciado na ideologia revolucionária do venerando porco Major (que, como é evidente, simboliza Marx no arranjo estrutural do enredo).

- No que tange ao romance 1984 (1948), aí sim podemos falar numa rejeição mais cabal não apenas à deformação autoritária stalinista, mas à perspectiva bolchevique como um todo, mormente à noção leninista de um partido rigidamente disciplinado e centralizado, depositário último da consciência de classe proletária e instância dirigente do processo revolucionário. Orwell descria fortemente dessa idéia: Goldstein (Trotsky) é sem dúvidas um heróico adversário do Big Brother, mas inelutavelmente inserido nas tradições e dinâmicas do Partido e da New Speak. Subentende-se, portanto, que Trotsky e Stalin de facto fossem 'irmãos', essencialmente 'grandes irmãos', opostos tão somente em função de algumas distinções em sua abordagem do poder soviético. A esse respeito vale também recordar o livro The Managerial Revolution (1941) de James Burnham, uma vez que "Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico", o book within the book concebido por Orwell em 1984 para explicar os pressupostos políticos, econômicos, sociais, filosóficos, culturais e psicológicos que balizam os credos ideológicos dominantes nos três superestados – 'Ingsoc' (Oceania), ‘Neobolchevismo’ (Eurásia) e ‘Obliteração do Ego’ (Lestásia) - , é nitidamente uma brilhante paródia/homenagem à obra máxima de Burnham.

- Por seu turno, a revolta de W. Smith contra o sistema é amorfa, indistinta, ditada mais por uma malaise inconsciente, vagamente associada a questões psicológicas / fisiológicas, e decerto ligada a seu passado, sobretudo à sua infância, do que por uma crítica ideológico/pragmática ao regime do Ingsoc, o qual ele, aliás, não chegue a compreender por completo. Winston chega a entrever o alicerce estrutural, o alpha e o omega, o giroscópio conceitual onde se assentam o regime e a filosofia Ingsoc: o 'solipsismo coletivo' erigido pela doutrina do doublethink; não obstante, ele capta apenas os EFEITOS de tal dinâmica, mas não lhe percebe a lógica interna estruturante, ou seja, não compreende de que modo ela funciona e, o que é ainda mais importante, não desvela seus objetivos e desígnios últimos. Assim sendo, ele não consegue organizar-se psicologicamente de modo a viver sob a 'esquizofrenia organizada' que seria necessária a um enfrentamento / convivência eficaz com o Partido.

- É mister salientar, todavia, que o autor britânico continuou a isentar o marxismo de qualquer responsabilidade pelas atrocidades do totalitarismo soviético, não subscrevendo de forma alguma a hipótese de um 'pecado original' já embutido, mesmo que em caráter embrionário, no pensamento marxista.

- Há, por fim, que sublinhar a emblemática rejeição de Orwell a qualquer noção 'teleológica' de progresso. No incisivo ensaio Wells, Hitler and The World State (“Wells, Hitler e o Estado Mundial” - 1941), o autor inglês verbera, nos termos mais acerbos, contra o que denomina de ‘religião do progresso’, ou seja, a crença no progresso linear, contínuo e irreversível da humanidade, que estaria, portanto, ao fim e ao cabo ‘condenada’ a um êxito inelutável. Orwell desconfiava dessa visão de mundo, à qual atribuía um cariz sobremaneira arbitrário e irrealista, já que desconsidera a intermitente dinâmica de avanços e retrocessos da ação humana, bem como deposita no futuro esperanças exageradas, aspirações essas cuja viabilidade prática é de todo inverificável no presente.

terça-feira, janeiro 02, 2007

Sobre o Paradoxo de Russell

Alphonse van Worden - 1750 AD






O paradoxo em tela foi, por assim dizer, descoberto pelo ínclito lógico, matemático e filósofo inglês em 1901, quando este estava a preparar os textos que seriam reunidos em seu Principles of Mathematics (1903). Bertrand Russell considerava então a questão do 'Conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmos'. Tal conjunto parece ser um membro de si mesmo se e somente não for um membro de si mesmo. Alguns conjuntos tais como, por exemplo, o conjunto dos relógios de pulso, não são membros de si mesmo; outros conjuntos, tal como o conjunto de todos os 'não-relógios de pulso', são membros de si mesmos, uma vez que o conjunto não é um relógio. Muito bem: vamos chamar de S o 'Conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmos': se S não é membro de si mesmo, então, por definição, deverá ser membro de si mesmo; ou então, em outras palavras: há um conjunto S tal que, qualquer que seja x, x é um elemento desse conjunto se, e se somente se, x for um conjunto que não seja elemento de si mesmo.

O significado revolucionário do paradoxo pode ser avaliado ao constatarmos que, à luz dos princípios consagrados pela lógica aristotélica, todos os sistemas formais são passíveis de contradição lógica. Mais ainda: nenhuma prova matemática poderia ser digna de confiança se a chamada 'Teoria dos Conjuntos ingênua', subjacente a todo o arcabouço matemático, abriga uma contradição fundamental. Da mesma maneira: como assegurar a validade de um enunciado científico ou filosófico face à possibilidade de algo possa ser e não ser ao mesmo tempo?

Houve várias tentativas de resolução deste dilema, a começar pela Teoria dos Tipos Lógicos proposta por Russell e Whitehead nos Principia Mathematica (1910 / 1913), que institui uma hierarquia lógica de conjuntos: o primeiro tipo de conjunto seria formado pelos conjuntos integrados apenas por entes particulares; a seguir, procedemos para os conjuntos cujos membros são conjuntos do primeiro tipo, estabelecendo assim o segundo tipo de conjunto; então para os conjuntos cujos membros são conjuntos do segundo tipo, que formariam o terceiro tipo de conjunto, e assim sucessivamente. Destarte, ao lidarmos com afirmações do gênero do paradoxo de Epimênides ("todos os cretenses são mentirosos") ou, numa formulação mais simples, "eu estou mentindo", é preciso estabelecer em que contexto da hierarquia dos tipos lógicos tal assertiva está sendo proferida. Se Epimênides replicar, por exemplo, que está a afirmar uma proposição falsa do primeiro tipo, então tal enunciado, visto referir-se ao conjunto das proposições de primeiro tipo (que são os elementos constitutivos do segundo tipo lógico), será um enunciado de segundo tipo; logo, não é verdade que Epimênides está a sustentar uma proposição falsa do primeiro tipo, mas sim de segundo tipo; de todo modo nosso amigo segue sendo um mentiroso, tão somente operando uma clave acima em termos de hierarquia lógica. Da mesma maneira, se Epimênides alegar que estava a postular uma proposição falsa do tipo 500.000, esta seria um enunciado do tipo 500.001, de modo que ele ainda permaneceria um mentiroso; outrossim, desaparece o contra-argumento empregue para sustentar que ele ao mesmo tempo não é um mentiroso.

Vale dizer que a Teoria dos Tipos também fornece uma solução para outras indagações, tais como, por exemplo, a concernente à existência ou não de um número cardinal máximo; neste caso, a resposta dependerá inteiramente do fato de estarmos ou não nos referindo a um determinando tipo lógico. Dentro de qualquer tipo lógico, existe uma cardinalidade máxima, a saber, o número de objetos daquele tipo, mas sempre seremos capazes de obter um número maior rumando para o próximo tipo; não existe, portanto,no seio de um dado tipo lógico, nenhum número maior do que o que podemos obter mediante a proposição de tipos lógicos mais elevados.

Claro está que tudo isto se tornaria mais rigoroso e preciso mediante o emprego de formalismo lógico, com os quantificadores e operadores adequados.

Por fim, outras possibilidades de resposta ao dilema russelliano estão presentes nas lógicas trivalentes, concebidas mormente por autores da escola polonesa de Lvov e Varsóvia (Lukasiewicz, Lesniewski, Kotarbinski); nas hipóteses metamatemáticas de Alonzo Church; ou então na lógica paraconsistente de Da Costa e Jaskowski.

As mais belas mortes - V

Leonidas I (480 AC)

Malgrado tenha em prístinas centúrias ocorrido, o ático exício de Leonidas I, Rei de Esparta, e de seus insignes guerreiros, por ocasião da Batalha das Termópilas nas Guerras Persas, não poderia deixar de ser aqui mencionado.

No ano 480 AC, Leonidas entrincheirou-se com 300 espartanos, 700 tespianos e 400 tebanos em estreita passagem no desfiladeiro das Termópilas, a fim de deter o avanço do colossal exército do rei persa Xerxes I, cujo efetivo estimava-se em milhares de metuendos armígeros.

Com o fito de intimidar os impávidos helênicos, as hostes persas enviaram um mensageiro com os seguintes dizeres:

- Nossas espadas são tantas que cobrem o Sol!

Ao que Leonidas, altivo e irônico, redargüiu:

- Tanto melhor, combateremos à sombra!

Na seqüencia dos acontecimentos, Leonidas e seus mavortes bateram-se com notável denodo e galhardia, sacrificando suas excelsas vidas ao custo de milhares de baixas para o inimigo.



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D. Rodrigo de Bivar , dito El Cid Campeador (1040-1099)























Não poderia faltar, no esteio desta augusta série, uma menção a D. Rodrigo de Bivar (1040-1099), dito El Cid Campeador, impertérrito paladino da cristandade. A causa mortis que lhe coube - um flechaço no ventre - não foi assim das mais notáveis, admitamos, mas as circunstâncias em torno a seu falecimento de sobejo o são, merecendo portanto nosso preito de admiração.

Estava nosso fádico Mavorte castelhano em combate no cerco a Valencia, quando uma ominosa seta moura feriu-lhe de morte; cônscio de que o derradeiro instante estava próximo, El Cid ordenou a seus soldados que, fenecido, o atassem a Babieca (famígero corcel do senescal cristão), o escudo em guarda, a espada no outro braço para cima erguida. Na vigésima-quarta hora, El Cid emergiu à frente de seu exército, arremetendo contra as metuendas hostes sarracenas; estas, que julgavam morto o ínclito guerreiro, dispersaram-se com grande alvoroço, aos urros e uivos de pavor, propiciando às armas cristãs indelével triunfo!


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

domingo, dezembro 31, 2006

Epistolário Transfinito II (excertos...)

Alphonse van Worden - 1750 AD

















(...) hoje se encerra, ó prestante consenhor Drogo, epopéico annus mirabilis, que de infindas glórias os supinos armipotentes do Senhor cumulou! Nas donairosas colinas da aprazível Nação dos Cedros, mais um ingente triunfo obtiveram as precolendas legiões do Partido de Deus, ao passo que as do obnóxio Sion metuendas hostes, do oprobioso revés o vituperioso pó morderam; sob os auspícios da ínclita Persépolis, os excelsos guardiões do propugnáculo da refulgente fé de Shiat Ali, inamovíveis perseveraram na sempiterna alfétena contra as pertinazes endrôminas do soez SATÃ; por fim, nos ígneos páramos de Armaggedom, as horrípilas legiões da ínvia Besta sucumbem à megascópica coragem dos armígeros do deífico Sustentador de Mundos; destarte, ó insigne irmão d'armas, sob o rutilante fanal do CHRISTUS PANTOCRATOR e de علي بن أبي طالب - que tudo veem sem vistos serem -, viridente botaréu do Concento Universal fomos, somos e seremos, sempre a matar e a morrer resignados!

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(...) à diáfana luminescência dos fosfóricos arcobotantes do Bastiani, ó conspícuo mavorte van Worden, altaneira praça que per saecula saeculorum guardamos, até a de todos os tempos inexorável consumação, sob a égide do inaudito Senescal da Guerra Cósmica, ledos estivemos, estamos e estaremos; outrossim, augusto confrade, a famígera cavalleria tartárica, sempre a postos para as sacratíssimas lides do Celestino Prélio, jactante aguarda o divo chamamento do venerando Senhor de todas as Batalhas!


Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Apontamentos sobre o pensamento político católico I - a propósito de Gilbert Keith Chesterton e Hilaire Belloc

Alphonse van Worden - 1750 AD





























Tendo em vista o ominoso, malgrado inelutável, facto de que o vasto experimento político-econômico do socialismo fracassou rotundamente, gestando sociedades que em tudo vão de encontro ao ideário proposto à partida por Marx e Engels, bem como às metas advogadas pelas famígeras jornadas d’Outubro; bem como a também insofismável constatação de que o capitalismo liberal, hoje infrene a reinar por todos os quadrantes da Terra, é um sistema autofágico, a predar progressiva e continuamente suas próprias bases de sustentação estrutural, torna-se imperativa a necessidade de encontrarmos uma opção viável, ou seja, um modelo de organização capaz de, a um só tempo, promover justiça social e crescimento econômico, conciliando assim as principais linhas de fuga dos sistemas socialista e do capitalista.

Enfaticamente refratária tanto às assimetrias inerentes ao capitalismo quanto à hipertrofia estatal do socialismo, a doutrina social da Igreja tornar-se-ia fonte de inspiração, mormente através da célebre encíclica Rerum Novarum (Leão XIII - 1891), de uma das mais profícuas tentativas de estabelecer uma alternativa sólida ao dilema em tela: o ‘distributivismo’ (distributism), propugnado, sobretudo, pelos insignes escritores católicos Gilbert Keith Chesterton (1874 -1936) e Joseph Hilaire Pierre René Belloc (1870 - 1953), ambos britânicos, em volumes como What's Wrong with the World (Chesterton - 1910); The Servile State (Belloc - 1913); The Uses of Diversity (Chesterton - 1921); An Essay on The Restoration of Property (Belloc - 1936).

Em que consistiria, pois, o distributivismo? Basicamente no que já está embutido em seu nome, vale dizer, na máxima distribuição possível da propriedade por todos os homens; preconiza, destarte, que os meios de produção devem pertencer ao maior número de indivíduos possível, e não permanecer sob o controle d'uma minoria proprietária (tal como no capitalismo), ou então sob a égide de um estamento gerencial (conforme ocorre no socialismo).

A perspectiva distributivista alega que, no regime capitalista, a propriedade produtiva é, ao fim e ao cabo, apanágio de uma camada minoritária de cidadãos, que acabam por deter uma influência sobre o conjunto da sociedade muito maior do que o que seria de bom alvitre; e malgrado todos tenham, sob o ponto de vista do formalismo jurídico-institucional, direito à propriedade privada, na prática isto acaba por ser prerrogativa quase exclusiva de uma pequena minoria ou, tal como assevera célebre observação de Chesterton, "too much capitalism does not mean too many capitalists, but too few capitalists" (The Uses of Diversity); por outro lado, há no âmbito socialista a promessa, de jaez igualmente formal, de um regime coletivo de propriedade, onde todos teriam acesso, consoante sua necessidade, aos frutos do trabalho social; todavia, o que na prática se verifica é a concentração progressiva de todos os ativos econômicos nas mãos do Estado, com o poder real delegado a uma reduzida camada de planejadores e administradores. O pensamento distributivista acredita, portanto, que a atomização das diversas instâncias de propriedade produtiva entre os componentes da comunidade irá garantir um acesso mais equânime aos benefícios oriundos do trabalho; conclui-se, ainda, que quanto maior for a capilarização dos ativos econômicos, maior será não apenas a justiça social, mas também o incentivo para que todos se dediquem de bom grado às atividades produtivas, já que a comunidade perceberá de forma direta e inequívoca os maneios do trabalho.

Buscando um paradigma histórico para o estabelecimento d’uma sociedade genuinamente distributivista no mundo hodierno, Chesterton e Belloc remontam à Idade Média: em sua encomiástica concepção da civilização católica, defendem, com efeito, uma filosofia da História que celebra a Idade Média pela abolição da escravatura; pela ampla difusão da propriedade através do povo; por um significativo grau de liberdade individual; e também pelo florescimento do ensino, das artes, da filosofia e da literatura, que fez a Europa emergir do caos desencadeado pela queda do Império Romano do Ocidente; assim sendo, ambos se debruçam sobre a história do período, de modo a identificar seus traços mais emblemáticos; e uma das características a que nossos autores atribuem grande destaque é o facto de que as guildas (corporações de ofício) não raro limitavam a quantidade de propriedade de que cada um podia dispor (por exemplo, limitando o número de empregados), justamente com o fito de evitar a possibilidade de crescimento exagerado de um determinado empreendimento particular, em detrimento dos demais, que poderiam ir à garra. Tal como Aristóteles e o Doutor de Aquino assinalam, se a propriedade privada tem algum objetivo, este é o de assegurar que cada homem e sua família possam levar uma vida digna, servindo à sociedade com os frutos de seu labor; deste modo, se os negócios d’um indivíduo permitem-lhe sustentar condignamente sua família, que direito teria ele de o expandir, eventualmente privando outras pessoas dos instrumentos e recursos necessários ao arrimo de suas respectivas famílias? A consciência cristã medieval cria (e esta é, diga-se de passagem, uma das características axiais de seu ethos) que os indivíduos que se dedicavam à mesma actividade não eram rivais ou competidores, mas sim confrades empenhados de corpo e alma na egrégia lide de providenciar à comunidade bens e serviços necessários; outrossim, como irmãos agregavam-se em corporações, velando pelo bem-estar uns dos outros.

Numa sociedade distributivista, por conseguinte, as pessoas seriam capazes de organizar-se em regime de mutualismo, reunindo-se em cooperativas de produção, comércio e serviço, num sistema onde predominaria a solidariedade como princípio não apenas justo, mas racional e eficaz, de interação humana.

No que concerne à organização social, o distributivismo vê na família trinitária (um homem, uma mulher e uma criança) a unidade mais elementar, a pedra basilar na constituição d'uma sociedade harmoniosa; tal núcleo primordial funcionará como alicerce de unidades familiares mais amplas, multigeracionais e interligadas por laços de consangüinidade, que por sua vez desdobrar-se-ão em comunidades locais, regionais e nacionais, e por fim na ‘família’ humana como um todo. Desta maneira, o modelo de organização econômica proposto por Chesterton e Belloc florescerá a partir da família nuclear, não considerada como mônada estanque e impermeável, mas sim como unidade básica e interdependente da sociedade distributivista; tal concepção é, vale dizer, caudatária da noção de ‘subsidiariedade’ esposada pelo Papa Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno (1931), a qual advoga que qualquer atividade produtiva deve ser levada a efeito pela menor unidade possível, de modo a evitar a concentração do poder nas mãos de poucos agentes. Vê-se aqui, portanto, no seio da concepção distributivista, mais uma vez a racionalidade operacional caminhando de par em par com noções de justiça e virtude, pois é facto patente que unidades produtivas menores são em geral mais ágeis e eficazes que macroestruturas burocráticas, pouco importa se de natureza privada ou estatal.

O distributivismo não privilegia, em matéria de ordenamento político, nenhum dos modelos de constituição do Estado existentes, podendo em tese viger tanto sob regimes monárquicos quanto sob republicanos. É mister salientar, contudo, que a doutrina distributivista não se inclina para qualquer extremismo, rejeitando enfaticamente perspectivas de cunho coletivista ou individualista.

Por fim, há que sublinhar a índole em geral pacifista do pensamento distributivista. Chesterton e Belloc opunham-se ao imperialismo britânico, e ambos particularmente condenaram, nos termos mais acerbos, a segunda guerra contra os boers; não obstante, apoiaram o envolvimento de seu país na I Guerra Mundial, a qual encaravam como justa.

Isto posto, ó supinos confrades, cremos vos ter propiciado, nestes infaustos lustros onde todas as convicções se dissolvem num vórtice caótico de nefárias incertezas, importantes subsídios para a questão mais premente da centúria em que vivemos: a formulação d’uma alternativa concreta para o pesadelo do sistema capitalista.