sexta-feira, dezembro 14, 2018

Eis então que num sonho...






Tive hoje um sonho sobremaneira curioso.

Encontrava-me num espaço imenso, úmido e soturno, espécie de amálgama entre os Carceri d'Invezione de Piranesi e as secretarias do Tribunal de Kafka tal como representadas no filme de Orson Welles.


Havia à minha volta uma multidão de vampiros de aparência andrajosa, circulando para lá e para cá em pequenos grupos, murmurando com aspecto preocupado palavras incompreensíveis. Eis então que encontro meu amigo Gabriel Schmitt, com um ar entre assustado e aparvalhado. 


Pergunto-lhe:


- O que você está fazendo aqui? 

- Não sei... recebi uma carta dizendo que deveria estar aqui, sob pena de enfrentar as mais terríveis consequências, e então resolvi vir... mas não sei o motivo.
- Estranho... você não deveria estar aqui... foi algum erro da Organização... mas enfim, já que está aqui, fique calado, não diga uma só palavra. Essas pessoas que você está vendo, todas elas são projeções da minha imaginação, compreende? Só eu e você somos reais aqui... portanto, fique quieto. 
- Mas e você, o que está fazendo aqui? 
- É uma questão complicada, você não entenderia... digamos que se trata de uma disputa patrimonial... um contencioso sobre uma herança.

Nisso aparece Caronte, segurando uma tocha numa das mãos, e um astrolábio na outra. A entidade se dirige a mim:


- Magister, a audiência já vai começar. Acompanhe-me, por favor.


Gabriel, consternado, faz menção de se levantar do assento de pedra onde estava, e diz:


- E agora, o que é que eu faço?


Respondo-lhe:


- Bem... pode vir... mas lembre-se: não diga nem uma palavra sequer!


Infelizmente despertei neste momento.



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Ten. Giovanni Drogo


Forte Bastiani


Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

domingo, agosto 19, 2018

A propósito de Paul Valéry



Alphonse van Worden - 1750 AD


Inclitíssimos irmãos d’armas:

Tenciono hoje pôr à vossa disposição algumas reflexões a propósito de Paul Valéry, que indubitavelmente tem sido uma das referências intelectuais mais constantes e vitais ao longo de minha trajetória.

À moda dos Cahiers do primus inter pares das letras francesas, do incomparável mâitre à penser da literatura universal no século XX, tais reflexões assumirão um caráter essencialmente assistemático, fragmentário; não obstante, se do autor de Ébauche d’un serpent ainda posso (ainda que tão somente, claro está, em caráter de miserável simulacro) emular dos aforismas o estilo, decerto o refulgente descortino crítico de seu gênio é páramo que nem de muitíssimo longe poderia ter a esperança de vislumbrar.

Isto assente, às nossas lides procedamos.


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Valéry foi inelutavelmente uma das inteligências mais fulgurantes da cultura universal em todos os tempos, tendo se demonstrado capaz de articular exemplarmente as seis virtudes que reputo como cardeais no exercício da atividade intelectual: Criatividade / Rigor / Ousadia / Lucidez / Clareza / Profundidade. Trata-se d'um autor / pensador cujo talento multiforme e surpreendente se manifestou, sempre com rara consistência e beleza, nas mais diversas esferas do conhecimento e da arte. Há que frisar, sobretudo, que a trajetória intelectual de Valéry (obra poética inclusa) pode ser definida como uma ampla investigação, de cariz analítico, metódico e sistemático, dos processos operacionais da inteligência no âmbito da atividade criadora; com efeito, tal é a o alpha e o omega de sua obra, vale dizer, a tentativa de identificar uma 'atitude central' a coordenar todas as operações criadoras do intelecto. Tal perspectiva, creio, delineia horizontes de capital importância no bojo da epistemologia, cujo alcance e profundidade ainda estão a ser mapeados, sobretudo no espectro da vasta galáxia que são seus Cahiers.  É mister, outrossim, elencar os demais aspectos cruciais da epopeia valeryana: a autoconsciência progressiva no tocante aos procedimentos e recursos da linguagem, bem como a concentração deliberada nos métodos de composição; a valorização do ostinato rigore (d'après Poe e Mallarmé) como princípio criativo fundamental, em detrimento da inspiração e da espontaneidade, que Valéry em boa medida encara como quimeras românticas; a convicção de que a grande obra de arte não está propriamente no ‘produto acabado’ (quadros, poemas, esculturas etc.) em si, mas no próprio processo de criação, expressão privilegiada da inteligência.

Exemplo lapidar de toda essa refinada ars combinatoria é o célebre poema Le Cimetière marin, composição estruturada com elegância e precisão matemáticas em seus requintados arabescos verbais:


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Ao apreciarmos a ars poetica de Valéry, é possível constatar, pois, que o egrégio vate francês não está propriamente preocupado com o resultado final de seus poemas, mas sim em observar a dinâmica de sua inteligência criativa ao concebê-los. Para Valéry o labor poético é essencialmente uma operação do intelecto; a autoconsciência progressiva no tocante aos recursos e procedimentos da linguagem e a concentração deliberada nos métodos de composição são, destarte, muito mais importantes que elementos vagos como 'espontaneidade', 'inspiração' e 'intuição'. Acrescente-se ainda que não lhe importavam tanto os 'fins', mas sobretudo os 'meios'. Acreditava, pois, que um artista nunca termina efetivamente um trabalho, mas tão somente o 'abandona': o fundamental é o caminho, não o termo, a chegada; e é exatamente por isso que o autor de La jeune parque chega a afirmar que a grande obra de arte não está numa tela, numa escultura ou num poema consumados, mas sim no próprio processo de criação.


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Há uma observação de Valéry que a meu ver reverbera no plano literário a distinção essencial que há em filosofia entre 'analíticos' e 'continentais: a prosa, sobretudo a prosa de não ficção, deve 'terminar'  exatamente onde 'termina' a linguagem, ou seja, ela não deve dizer mais do que o plano semântico da linguagem lhe faculta; a poesia, por outro lado, deve 'COMEÇAR' onde 'termina' a linguagem, isto é, ela emerge justamente quando a linguagem já não mais consegue dar conta daquilo que queremos dizer. Sublinhe-se, ademais, que o aedo francês define poesia como "a permanente hesitação entre som e sentido", vale dizer, a oscilação perpétua entre o dizível e  o indizível, o tangível e o intangível.


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"M. Teste avait peut-être quarante ans. Sa parole était extraordinairement rapide, et sa voix sourde. Tout s’effaçait en lui, les yeux, les mains. Il avait pourtant les épaules militaires, et le pas d’une régularité qui étonnait. Quand il parlait, il ne levait jamais un bras ni un doigt : il avait tué la marionnette. Il ne souriait pas, ne disait ni bonjour ni bonsoir ; il semblait ne pas entendre le « Comment allez-vous ? »"


La Soirée avec monsieur Teste (originalmente publicado em 1896 / expandido na edição póstuma de 1946 com o acréscimo dos textos que formam o Cycle Teste), misto de romance 'abstrato' / ensaio analítico, sem dúvida constitui uma das obras mais singulares e fascinantes de Paul Valéry.

Trata-se d'uma reflexão sobre a dissociação progressiva entre a 'razão pura' e a sensibilidade no seio da personalidade do protagonista. Teste é obcecado pelo ostinato rigore da EXPRESSÃO, não só na esfera conceitual, verbal e formal, mas também no plano dos sentimentos, e até mesmo no âmbito dos mais prosaicos hábitos e ações do cotidiano. Cada pensamento, sentimento, vocábulo, ato ou gesto supérfluo é por ele rejeitado, o que ao fim e ao cabo terminará por levá-lo a 'inviabilizar' a própria VIDA, dimensão inexoravelmente entretecida nas ramagens do fortuito, do arbitrário e do fugaz.

Algo irônicos e melancólicos, os textos do 'Ciclo' talvez sejam uma espécie de originalíssima autobiografia espiritual do autor.


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A meu juízo a inteligência mais privilegiada já surgida em França, era Valéry era movido, conforme já salientei n'outras ocasiões, por uma busca metódica e sistemática pelo ostinato rigore em todos os campos da linguagem.

O autor de Regards sur le monde actuel chega a afirmar, em determinada passagem de seus Cahiers, que uma demonstração matemática ou uma proposição científica lhe proporcionava mais prazer estético que a leitura d'um romance; buscava, assim, lograr um grau máximo de precisão tanto no plano formal quanto na esfera semântica.

Em Sur Bossuet, magnífico ensaio a propósito do notável bispo e teólogo francês, Valéry sustenta que a prosa de Bossuet é de tal modo rigorosa, majestosa e severa que o facto de concordarmos ou não com as ideias advogadas pelo autor não tem a menor importância. E vai além, n'outra passagem dos Cahiers: dar ou não assentimento às concepções d'um pensador não é o que importa, mas sim verificar a solidez de sua 'engenharia textual', a consistência de sua 'arquitetura conceitual'.

E Valéry está certo. Sempre esteve. Sempre estará.


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Todo artista que atinge alguma consagração, isto é, algum nível de reconhecimento crítico, demonstra n'alguma medida deter autoconsciência a propósito dos recursos e procedimentos de que se serve para criar, dos métodos de composição e de suas possibilidades últimas enquanto criador. Paul Valéry talvez tenha sido o autor mais deliberadamente autoconsciente em toda a história da literatura, o que por si só ilustra o grau de excelência que logrou atingir.


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Num de seus magníficos escritos compilados nos volumes de Variété, Valéry declarou que se calhar seu desiderato supremo seria a criação d'uma 'Commedia da inteligência'. Dante escrevera a Divina; Balzac a Humana; Valéry, por seu turno, almejava a da abstração total. Analogamente, chega a afirmar que uma demonstração matemática proporcionava-lhe maior deleite e satisfação estética que a leitura d'um romance.  Por fim, na conferência De l’enseignement de la poétique au Collège de France, especulou sobre a possibilidade de uma história da literatura que não mencionasse autor algum, mas que, com efeito, fosse concebida como uma espécie de "História do Espírito Universal enquanto produtor e consumidor de literatura". Em suma: três exemplos que ilustram à perfeição a 'atitude central' tanto do ars poetica quanto do corpus teórico valeryanos, qual seja, um verdadeiro CULTO da inteligência, não só como uma espécie de apologética suprema da criação, mas inteligência como expressão por excelência da próprio BELO. 


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Em Quelques notes sur la technique littéraire (1889), Valéry afirma o seguinte:

"Tanto mais apreciaremos a arte de nosso tempo quanto mais misteriosa, restrita e inacessível ela for para as multidões. Pouco importa que resulte impermeável à maioria, que seja privilegio duma minoria, alcançável apenas por um punhado de eleitos, para quem é um reino divino do mais alto grau de esplendor e pureza."

Como de hábito está correto o grande luminar das letras francesas. Com efeito, é mister que a arte sempre seja apanágio exclusivo d'um cenáculo restrito, perspectiva que hoje, tendo em vista a hecatombe cultural de nossos tempos, precisaria ser advogada com maior veemência ainda. Lembremo-nos sempre: democratização (não só no plano das artes, mas também nas esferas do conhecimento em geral e da política) = vulgarização, diluição, abastardamento.




domingo, junho 03, 2018

Sinopse para uma possível continuação de A Clockwork Orange (1962 - livro / 1971 - filme)






Inglaterra, 1985.

Alex DeLarge aos 30 anos de idade. Após toda a experiência traumática com o tratamento Ludovico; a impiedosa vingança da sociedade após seu retorno; a tentativa de suicídio e anos de internação psiquiátrica etc., nosso protagonista resolve que o melhor a fazer seria adquirir uma base intelectual sólida. Não que tivesse a ilusão de que isto fosse dar algum sentido 'maior' a sua vida, muito menos justificá-la; pensa, não obstante, que talvez seja uma maneira de pô-la em perspectiva, de proporcionar foco e direção ao ódio profundo e inexorável que continua a devorar-lhe as entranhas. Assim sendo, solicita a seu grande fiador no seio do governo, o Min. do Interior, que lhe consiga uma bolsa de estudos em sociologia, filosofia, literatura ou psicologia n'alguma boa instituição de ensino no país. Acionando os canais competentes e submetendo Alex aos trâmites e exames acadêmicos necessários, o min. logra inscrevê-lo na prestigiada escola de ciência política da London School of Economics. A vida universitária de nosso herói decerto não seria das mais fáceis. A grade curricular não desperta maior interesse em Alex; em termos de convívio social, a fama pregressa e a postura altiva certamente não lhe granjeiam grande simpatia entre seus pares. Paulatinamente, contudo, Alex começa por vias transversas a descobrir o 'lado negro da força' de seu campo de estudos: aqui e ali, obras de autores como Carl Schmitt, Georges Sorel, Giovanni Gentile, Ernst Jünger, Francis Parker Yockey, Arthur Moeller van den Bruck, Julius Evola etc. começam a cair em suas mãos, além de textos de líderes políticos como Mussolini, Codreanu, Degrelle, Primo de Rivera, Hitler, Goebbels, Ramiro Ledesma Ramos etc. Outrossim descobre, para seu imenso deleite e fascínio, a figura de sir Oswald Mosley, que logo passa a encarar como modelo de conduta e 'patrono' político. 'Last but DEFINITELY not least', coroando esse processo de metanoia, o momento sublime e determinante para o eterno melômano que Alex sempre foi e sempre será: a descoberta do universo de Richard Wagner, com todas as óbvias e importantíssimas consequências que isso poderia ter para alguém como ele. É sem sombra dúvida como a explosão d'uma supernova no imo do espaço sideral: ora a revolta amorfa e caótica que nele sempre fervilhara tem nome, lógica, propósito.

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Inglaterra, 1995. 

Bom, sem mais delongas: Alex conclui seus estudos, obtendo o grau de mestre e por fim o de PHD. Como obviamente jamais se adaptaria ao meio acadêmico (e o novo governo estava determinado a extinguir sua pensão), passa a dar aulas particulares. Sempre carismático, sobremaneira envolvente e sedutor, ao longo d'alguns poucos anos arregimenta não um simples punhado de alunos, mas sim uma verdadeira legião de fervorosos discípulos.

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Inglaterra, ano 2002 em diante.

E assim o processo evolui de forma orgânica, como se correspondesse ao fluxo natural das coisas, a uma dinâmica praticamente inevitável: Alex converte-se em líder d'uma nova organização política, uma espécie de BUF (British Union of Fascists) da era do nacional-bolchevismo (pensei na designação WE LIVE! para o novo movimento). Em pouco tempo o movimento ganha surpreendentes força e notoriedade, alarmando o establishment político britânico e europeu. Surge então a figura do antagonista: Anthony Greenwall, líder do Labour Party. Intelectual progressista de esquerda (multiculturalista, globalista, europeísta, feminista, gayzista, pró-imigrantes, etc. etc. etc.) Greenwall tem também uma motivação pessoal para se opor ao novo líder: é sobrinho do escritor F. Alexander, uma das mais notórias vítimas de Alex e seus droogs nos áureos tempos da ultraviolência. A trama, enfim, se desenvolve como o titânico confronto ideológico, espiritual e psíquico entre Alex e Anthony, cujos desdobramentos obviamente exercerão decisiva influência sobre os destinos da Grã- Bretanha (e, ao fim e ao cabo, do planeta).

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros


quarta-feira, maio 02, 2018

A arte do futuro


Alphonse van Worden - 1750 AD

Em seu ensaio The Study of Mathematics (1919), Bertrand Russell afirmou o seguinte a propósito do elemento estético presente na matemática:

Mathematics, rightly viewed, possesses not only truth, but supreme beauty — a beauty cold and austere, like that of sculpture, without appeal to any part of our weaker nature, without the gorgeous trappings of painting or music, yet sublimely pure, and capable of a stern perfection such as only the greatest art can show. 

Mais ou menos à mesma época, o deífico Paul Valéry , num de seus magníficos escritos para a série Variété (ora não me recordo precisamente qual), declarou que se calhar seu desiderato supremo seria a criação d'uma 'Commedia da inteligência'. Dante escrevera a Divina, Balzac a Humana; Valéry, por seu turno, almejava a da abstração total. Analogamente, em determinada passagem de seus Cahiers, chega a afirmar que uma demonstração matemática proporcionava-lhe maior deleite e satisfação estética que a leitura d'um romance. Vale lembrar, outrossim, que o escritor francês especulou sobre a possibilidade de uma história da literatura que não mencionasse autor algum, mas que de facto fosse concebida como uma espécie de história do Espírito Universal enquanto produtor de literatura.

Pois bem: socorro-me das reflexões de dois gênios incontestáveis para porventura dar sustentação a uma aspiração sempre mais intensa em minh'alma. Com efeito, desejo cada vez mais uma arte olímpica, imaculada, impassível, glacial, hierática, sublime, mítica, irreal. Uma arte (também no plano literário, convém sublinhar) ao fim e ao cabo inumana, que não pareça brotar de qualquer criador individual, mas sim surgir como emanação involuntária do Cosmo ou inefável manifestação divina. Uma 'arte das esferas' que se propague lenta e indefinidamente por espaços infindos e silêncios eternos, curva assimptótica em direção ao Fogo Sagrado do Infinito. 

Em suma: ambiciono uma arte praticamente fora do tempo e do espaço, que já nasça clássica e universal, para todos e para ninguém. 





sexta-feira, março 30, 2018

Bauhaus: the Dark Side of the Goth Dub





Prezados confrades: sabem o momento exato em que o reggae deixa de ser reggae, libertando-se do primado da voz, dos sopros e d'outros instrumentos melódicos para se concentrar tão somente na hipnose gerada pela sagrada aliança baixo/bateria, multiplicada ad infinitum em progressão geométrica por sucessivos e cumulativos efeitos de eco, que ricocheteiam uns contra os outros em tonitruante crush collision , reverberam sobre si mesmos e voltam a reproduzir-se indefinidamente em crescente atmosfera de desorientação sônica, gerando novas galáxias turbilhonantes de hipnose rítmica? Trata-se, senhoras e senhores, do dub,um conjunto de técnicas de produção desenvolvidas pelos jamaicanos Lee Scratch Perry e King Tubby a partir de meados da década de 70,  e que desde então  exerceram grande influência sobre o que há de mais ousado na música contemporânea.

Pois bem: e o que isso teria a ver com o Bauhaus, célebre formação britânica atuante entre 1978 – 1983 (para não lembrarmos aqui – misericordiosamente, aliás – as tentativas de revival ocorridas em 1998 e 2008)? Muito mais do que a princípio se poderia pensar.  Pois se é verdade que o Bauhaus foi a banda mais emblemática do chamado goth rock, com seu arsenal de guitarras dissonantes, vozes espectrais, baixo saturado e percussões tribais, Peter Murphy e seus asseclas (Daniel Ash / David J. / Kevin Haskins) criaram uma espécie de trajetória paralela, um teatro de sombras onde os pesadelos expressionistas e inflexões bowieanas de suas composições mais notórias se entrelaçam às pajelanças dub.

Na verdade, o interesse do Bauhaus pelas fantasmagorias de Lee Perry & Cia. vem desde o começo:  já em seu single de estréia, “Bela Lugosi's Dead” (1979), que se tornaria a 'canção-assinatura' de todo o goth rock britânico,  é evidente o entrechoque entre hipnoses percussivas avant funk, sinistras radiações ambient e alucinações dub. Tais elementos eram compartilhados com outros grupos do cenário britânico de então (Pop Group, 23 Skidoo, Cabaret Voltaire, Foetus, Clock DVA, T.A.G.C., etc.), mas a abordagem de nossos amigos é decididamente singular: emanações sulfurosas de tribos africanas em mutação teutônica tocando covers de Can numa missa negra schizo jazz; tambores e sopros espectrais terçando vozes com found sounds alienígenas na floresta cibernética do apocalipse ambiental; África e Europa em transe eletromagnético, intercambiando idiomas secretos em multiformes rituais de hermetismo sônico. É mormente digna de nota a alternância entre dois paradigmas estilísticos: ritmos turbulentos e compassos fragmentários, de um lado; paisagens sonoras ominosas, atmosferas surreais e tramas circulares de ruídos aleatórios, de outro, ambos traduzindo à perfeição o cariz mais 'esotérico' e soturno do Bauhaus.

Assim sendo, em peças como "Terror Couple Kill Colonel", "Satori", "Earwax", "Poison Pen", “Departure”, “Party of the First Part”,  "In Fear of Dub", “Harry”, “1-2-3-4”, “Dave and Danny's Waspie Dub #2”, “Paranoia, Paranoia”, “Here's the Dub” e outras mais, originalmente espalhadas entre compactos e ep's da banda (e hoje compiladas em coletâneas ou encaixadas como bonus tracks nas reedições dos discos de carreira), o ouvinte é presenteado com um exercício de desconstrução sistemática e meticulosa dos fundamentos basilares do rock e do reggae via eletrônica minimal, terremotos percussivos e uma delirante orgia de found sounds / samples oriundos das mais diversas procedências. É o goth rock de fatura punk desdobrando-se num sabbath transpsicodélico de atmosferas obnubiladas através de nuvens eletrônicas de sinsemilla sônica...

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

domingo, fevereiro 11, 2018

L'Apogée du Sacré

Alphonse van Worden - 1750 AD


Vivre ? Non. — Notre existence est remplie, — et sa coupe déborde ! — Quel sablier comptera les heures de cette nuit ! L’avenir ?… Sara, crois en cette parole : nous venons de l’épuiser. Toutes les réalités, demain, que seraient-elles, en comparaison des mirages que nous venons de vivre ? À quoi bon monnayer, à l’exemple des lâches humains, nos anciens frères, cette drachme d’or à l’effigie du rêve, — obole du Styx — qui scintille entre nos mains triomphales !

La qualité de notre espoir ne nous permet plus la terre. Que demander, sinon de pâles reflets de tels instants, à cette misérable étoile, où s’attarde notre mélancolie ? La Terre, dis-tu ? Qu’a-t-elle donc jamais réalisé, cette goutte de fange glacée, dont l’Heure ne sait que mentir au milieu du ciel ? C’est elle, ne le vois-tu pas, qui est devenue l’Illusion ! Reconnais-le, Sara : nous avons détruit, dans nos étranges cœurs, l’amour de la vie — et c’est bien en réalité que nous sommes devenus nos âmes ! Accepter, désormais, de vivre ne serait plus qu’un sacrilège envers nous-mêmes. Vivre ? les serviteurs feront cela pour nous.


*

"Viver? Não. - Nossa existência está consumada, e sua taça transborda! - Que ampulheta contará as horas desta noite! O futuro? Crê em minha palavra, Sara: acabamos de esgotá-lo. Todas as realidades do amanhã, que seriam em comparação com as miragens que acabamos de experimentar? Qual o sentido de comprar, a exemplo dos timoratos, nossos velhos irmãos, este dracma dourado com a efígie do sonho - óbolo do Estige - que brilha em nossas mãos triunfais?!

A qualidade de nossa esperança já não nos faculta a Terra. O que demandar a esta estrela miserável, onde persiste nossa melancolia, senão pálidos reflexos de tais instantes? A Terra, dizes tu? O que ela alguma vez levou a cabo, aquela gota congelada de lama, cuja Hora tão somente logra mentir no meio do firmamento? É ela, tu não compreendes isso, que se transformou em ilusão! Admite, Sara: destruímos, em nossos corações estranhos, o amor à vida - e de fato nos convertemos em nossas almas! Aceitar viver, doravante, não seria mais do que um sacrilégio para nós mesmos. Viver? Os criados farão isso por nós."

Axël (1890) - Jean-Marie-Mathias-Philippe-Auguste de Villiers de L'Isle-Adam

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Eis o píncaro do ápice do auge do apogeu, o vero PEAK OF THE SACRED do evasionismo místico da gnose romântica, enfim, o matrimônio entre o conde Axël de Auersperg e a princesa Sarah de Maupers, na necrópole subterrânea do castelo dos Auersperg em Baden-Württemberg.

Sabia o casal, não obstante, que o grosseiro mundo material jamais estaria à altura dos deíficos desígnios que excelsamente acalentavam.

Destarte, percebendo que o caráter sublime e preternatural de seus sonhos fatalmente pereceria em contato com a realidade, os noivos decidem suicidar-se, elevando-se dos báratros do mundo material às esferas da Arcana Coelestia, para que a beleza, para que o inefável milagre da beleza imaterial, não se dissipe; matam-se, pois, num vórtice rutilante de êxtase cósmico, e despedem-se com a seguinte sentença, emblema máximo da Aristocracia do Espírito:

Vivre? Les serviteurs feront cela pour nous.

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O alcance dessa obra tão somente pode ser compreendido por aqueles cujo coração é d'algum modo arrebatado pelo imperativo da revolta gnóstica contra a 'Realidade', mesmo que em caráter exclusivamente mitopoético; os demais, faltos de metafísica e sensibilidade poética, chafurdam em charcos obscuros.


domingo, fevereiro 04, 2018

Mark E. Smith (1957 - 2018): um herói (possível) de nosso tempo


Nostalgia. É emblemático constatar ser precisamente este o sentimento recorrente nos melhores necrológios publicados na imprensa britânica a propósito de Mark E. Smith.

Nostalgia sem dúvida inspirada pelo ethos, pelos sentimentos, temáticas e sensibilidades estéticas cultivados pela banda do falecido cantor e letrista, que sempre evocou o que a Inglaterra tinha de mais singular e original, sem poupar seus compatriotas da mais corrosiva ironia, e talvez por isso mesmo outrossim celebrando suas melhores virtudes.

Entre outras coisas, era o reino inconteste do understatement; dos olhares sublimados; de gestos discretos, quase imperceptíveis, mas tão significativos em sua complexa geometria de silêncios... Um país, pois, caracterizado por uma miríade de fascinantes e surpreendentes sutilezas, com sua plêiade de excentricidades sutis e discretas peculiaridades.

Desafortunadamente, contudo, esse país hoje existe apenas nos escritos de figuras como GK Chesterton, Evelyn Waugh e PG Wodehouse; nos filmes de Tony Richardson ou Jack Clayton; nas letras de música de cronistas como Ray Davies e nosso querido Mark. Está a ser paulatinamente substituído, num processo que vem se intensificando desde a década de 90 do século passado, pelo "death twilight kingdom" (TS Eliot) do horror multiculturalista e da barbárie globalista liberal, infestado por hordas de analfabrutos e animonstros que a náusea e o fastio não me permitem ora elencar (e que todos vós obviamente sabeis muito bem quem são...).

Insomma: quem conheceu, conheceu; quem não conheceu, um abraço. E fim de papo.

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Entre ruínas fumegantes e sombras ominosas, memórias crepusculares d'um país que já se foi - I

Alphonse van Worden - 1750 AD


Definitivamente alguma coisa se perdeu... se calhar em todo o planeta, mas com absoluta certeza em nosso país... algo de fundamental, algo de extraordinário, de assombroso, de transcendente, que se manifestava até mesmo em episódios e circunstâncias relativamente singelos. Os indícios e exemplos enxameiam, mencionemos um deles colhido hoje ao sabor do acaso. Leio numa crônica de Vinicius de Moraes que em 1942, por ocasião da passagem de Orson Welles pelo Brasil, o poeta brasileiro, desejoso de que o cineasta norte-americano travasse conhecimento com Limite (Mário Peixoto - 1931), após uma série de contratempos enfim conseguiu promover uma sessão da fita.

Pois bem: além, claro está, do maior cineasta de todos os tempos e d'um assaz respeitável homem de letras brasileiro, para essa exibição de um dos filmes mais enigmáticos e densamente poéticos da história da sétima arte estavam presentes, entre outros nomes menos ilustres, as seguintes figuras: a maior atriz da história do cinema (Renée Maria Falconetti); o melhor crítico literário e uma das inteligências mais fulgurantes que já andaram por este país (Otto Maria Carpeaux); um barítono inglês de fama internacional (Frederick Fuller).

Uma simples sessão de cinema... É, alguma coisa definitivamente se perdeu, não é possível...