quarta-feira, outubro 24, 2001

Cinema Futurista, Futuro do Cinema?





Podemos dizer que a História da Sétima Arte, até o advento do cinema falado, foi inequivocamente escrita por quatro grandes centros de produção: URSS, Alemanha, França e EUA. Com a devida exceção de nomes como Dreyer, Sjöstrom ou Stiller, os principais cineastas soviéticos, alemães, franceses e norte-americanos criaram e consolidaram, de facto, a morfologia, a sintaxe e a semântica da arte cinematográfica. No entanto, não poderíamos, de modo algum, contar uma História do Cinema que não mencionasse a influência decisiva que o Futurismo italiano exerceu, no quadro de suas formulações teóricas, sobre a formação da gramática cinematográfica. As contribuições do Futurismo para o cinema ainda não foram, contudo, devidamente reconhecidas, fenômeno que se repete, com o mesmo grau de injustiça, na história oficial da poesia, da música e das artes plásticas no século XX. Desse modo, na literatura, as inovações formais de Fillipo Tommaso Marinetti são atribuídas a autores como Andrè Breton ou e.e.cummings; nas artes plásticas, os ousados experimentos de artistas como Umberto Boccioni, Giacomo Balla, Gino Severini e Antonio Sant'Elia são misteriosamente atribuídos ao cubismo de Picasso e Braque; na música, os procedimentos desenvolvidos, em 1913, por Luigi Russolo e seus Intonarumori, são creditados a compositores que começaram a trabalhar 20 anos mais tarde, como John Cage, Schaeffer ou Pierre Henry; finalmente, toda uma série de propostas revolucionárias para o cinema, lançadas pelos futuristas italianos em seus fulgurantes manifestos, desapareceram sob um manto misterioso de silêncio e ignorância...

Para que possamos entender a importância do Futurismo para os caminhos da Sétima Arte, precisamos compreender os elementos centrais que caracterizam a concepção estética desse genial grupo de artistas. O Futurismo italiano é um volátil Giroscópio oscilando intensamente em torno do conceito básico de movimento, que aglutina um conjunto de idéias-força determinantes: velocidade, multiplicidade, simultaneidade, irradiação, energia, analogia, simbiose, metamorfose. A arte futurista deseja produzir, de minuto a minuto, uma síntese dinâmica do Mundo; síntese essa que, concluída, no entanto, já está necessariamente superada no momento seguinte, num processo contínuo e sucessivo de produção de novas sínteses. Vibrante, febril e multiforme, a estética futurista se articula, a partir de seus próprios pressupostos constitutivos, como uma visão de mundo cinematográfica.


Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi Russolo, Giacomo Balla e Gino Severini, em A Pintura Futurista - Manifesto Técnico (11 de abril de 1910), proclamam que "o gesto, para nós, não será mais um momento detido do dinamismo universal: será, decididamente, a sensação dinâmica eternizada como tal. Tudo se move, tudo corre, tudo se desenrola rápido. (...) Pela persistência da imagem na retina, as coisas em movimento se multiplicam, se deformam, sucedendo-se como vibrações no espaço que percorrem. Assim, um cavalo correndo não tem quatro patas: tem vinte e os seus movimentos são triangulares". A imagem já não é mais, como sublinham os signatários do manifesto, a representação estática de um objeto imóvel, mas a multiplicação cinemática de todas as coordenadas de um objeto, e de suas infinitas projeções no espaço: "As 16 pessoas que estão à nossa volta num bonde que corre são uma, dez, quatro, três; estão paradas e se movem; vão e vêm, saltam sobre a rua, devoradas por uma zona de sol, em seguida tornam-se a sentar, símbolos persistentes da vibração universal. (...) os nossos corpos entram nos divãs em que nos sentamos, e os divãs entram em nós, assim como o bonde que passa entra nas casas, as quais por sua vez se arremessam sobre o bonde e com ele se fundem". A pintura futurista, desse modo, não se limita à rigidez hierática de planos fixos, mas, ao contrário, explode em intensas policromias geradas a partir da contínua interpenetração de planos tridimensionais.


"Nós devemos partir do núcleo central do objeto que se quer criar, para descobrir as novas leis, isto é, as novas formas que o ligam invisível, mas matematicamente, ao INFINITO PLÁSTICO APARENTE e ao INFINITO PLÁSTICO INTERIOR. A nova plástica será a tradução no gesso, no bronze, no vidro, na madeira (...) dos planos atmosféricos que intersectam as coisas", escreve Umberto Boccioni em seu manifesto A Escultura Futurista (11 de abril de 1912), destacando o princípio da interpenetração dinâmica e incessante dos vetores plásticos de um objeto como um dos elementos fundamentais da estética futurista. A importância do Movimento como a viga mestra para a construção de uma nova sensibilidade é, na passagem seguinte, mais uma vez salientada: "Em escultura, assim como em pintura, não se pode renovar senão procurando o ESTILO DO MOVIMENTO, isto é, tornando sistemático e definitivo como síntese aquilo que o Impressionismo deu como fragmentário, acidental, portanto analítico". Em As Analogias Plásticas do Dinamismo - Manifesto Futurista (setembro - outubro de 1913), Gino Severini argumenta que "em nossa época de dinamismo e simultaneidade não se pode mais separar uma realidade qualquer das recordações, afinidades ou aversões plásticas que sua ação expansiva evoca simultaneamente em nós, e que são outras tantas realidades abstratas, points de repére, para atingir a ação total da realidade em questão". É interessante constatar como Severini desloca o eixo da atividade artística, tradicionalmente centralizado na representação estática do objeto, para a totalidade dinâmica das múltiplas realidades que o envolvem; isto é, a sensibilidade futurista se expande na medida em que consegue dar conta do moto contínuo do mundo, numa perspectiva totalmente diversa da que encontramos em um Movimento como o Expressionismo alemão, onde se pretende atingir o absoluto de um objeto através do êxtase da abstração contemplativa. Aliás, como ressalta Severini, a própria noção de objeto desaparece do horizonte de realização do Futurismo, cedendo lugar à hipercinesia vertiginosa de realidades em constante transformação: "(...) as formas em espiral e os belos contrastes de amarelo e azul descobertos pela nossa intuição, uma noite, vivendo a ação de uma dançarina, podem ser reencontrados mais tarde, por afinidade ou por aversão plásticas, ou por umas e outras juntas, nos vôos concêntricos de um aeroplano ou na corrida de um expresso. (...) A velocidade nos deu uma nova noção do espaço e do tempo e, por conseqüência de nossa própria vida, nada de mais lógico que as nossas obras futuristas caracterizem toda a arte de nossa época com a estilização do movimento, que é uma das manifestações mais imediatas da vida".


Convulsionado, desde seus primeiros anos, por um processo de intensas revoluções tecnológicas, o século XX também irá testemunhar o advento de uma nova beleza, a da velocidade, que logo se converte na frenética religião das massas contemporâneas: "a formidável antítese entre o mundo moderno e o antigo é determinada por tudo aquilo que não havia antes. Em nossa vida entraram elementos cujas possibilidades nem sequer eram suspeitadas pelos antigos; (...) perdemos o sentido do monumental, do pesado, do estático, enriquecemos nossa sensibilidade com o gosto pelo leve, pelo prático, pelo efêmero e pelo veloz. Sentimos que não somos mais os homens das catedrais, dos palácios e dos púlpitos; mas dos grandes hotéis, das estações ferroviárias, das imensas estradas, das portas colossais, dos mercados cobertos, das galerias luminosas, das auto-estradas, das demolições saudáveis", sintetiza Antonio Sant'Elia, em sobretons épicos, no manifesto A Arquitetura Futurista (11 de julho de 1914). O escritor Filippo Tommaso Marinetti, inspirador inicial e figura mais notória do Futurismo italiano, é talvez o mais ardente sacerdote dos vorazes deuses da velocidade e da ação. Em seu manifesto O Esplendor Geométrico e Mecânico e a Sensibilidade Numérica (15 de março de 1915), o poeta italiano afirma, arrebatado: "Meus sentidos futuristas perceberam pela primeira vez este esplendor geométrico sobre a ponte de um encouraçado. A velocidade da nave, suas trajetórias de fogo fixadas do alto do tombadilho na ventilação fresca das possibilidades guerreiras, a estranha vitalidade das ordens transmitidas pelo almirante, tornadas, de súbito, autônomas, já não humanas, através dos caprichos, das impaciências e das doenças do aço e do cobre, tudo isto irradiava esplendor geométrico e mecânico. Senti a iniciativa lírica da eletricidade correr através da blindagem das torres quádruplas, descer por tubos blindados até o compartimento dos projéteis, trazendo os obuses até as culatras, até os canos emergentes. (...). Este novo drama, cheio de imprevisto futurista e de esplendor geométrico, é para nós cem mil vezes mais interessante do que a psicologia do homem, com suas combinações limitadíssimas".


Como podemos observar, por intermédio dos textos mencionados nos parágrafos anteriores, as duas grandes áreas de atuação do Futurismo Italiano foram, sem sombra de dúvida, as artes plásticas e a literatura. Todavia, é irresistível a tentação de afirmar que Marinetti, Balla, Boccioni, Severini e Sant'Elia parecem estar, de certo modo, conscientes de que a energia vertiginosa de seus ideais estéticos, para alcançar sua potencialidade máxima de realização, não pode mais circunscrever-se aos horizontes das artes tradicionais. Ao discorrerem sobre pintura, escultura, arquitetura ou poesia, os futuristas italianos já estão falando sobre uma nova arte, uma arte que é intrinsecamente movimento, velocidade, simbiose, multiplicidade e simultaneidade: o Cinema. Longe, no entanto, de estar presente apenas em suas proclamações teóricas, a Sétima Arte se inscreve de forma nítida nas obras mais significativas da arte futurista. Dessa maneira, no exuberante caleidoscópio geométrico de cores, volumes e planos se interseccionando infinitamente no espaço, no labirinto hipercinético de formas complexas, multifacetadas e polimórficas de telas como Funerále dell'anarchista Galli (Carrà - 1911), Velocità astratta - l'auto é passato (Balla - 1912), Danzatrice in blu (Severini - 1912) ou Dinamismo di un Foot-baller (Boccioni - 1913), entrevemos, claramente, os acentos e acordes da linguagem cinematográfica; passando das artes plásticas para a literatura, pode-se dizer que as revolucionárias parole in libertà de Marinetti são uma expressão gráfica da percussão rítmica dos fotogramas em movimento, o que pode ser constatado com maior clareza, por exemplo, em um poema como o célebre Zang Tumb Tumb (1914), sobre o cerco de Adrianapoli na guerra Turco-Búlgara, do qual apresentamos aqui, a título de ilustração, alguns extratos:


"(...)que alegria ver ouvir farejar tudo tudo taratatatata das metralhadoras berrar teimosamente sob dentadas bofetadas traak-traak frustradas pic-pac-pum-tumb bizarrias saltos altura 200m. da fuzilaria em baixo em baixo no fundo da orquestra charcos
agita-se bois búfalos aguilhões
carros pluff plaff empinar de cavalos
flic flac zing zing chaaack hílares relinchos iiiiii
pateadas tinidos 3 batalhões búlgaros em marcha
croooc-chaaaac [LENTO DOIS TEMPOS] Sciumi
Maritza ou Karkavena croooc craaac gritos de oficiais
batttter como pratttos de latttão pan daqui paaack dali tching
buuum tching tchang [PRESTO] tchia tchia tchia tchia tchiaak
em cima em baixo ali ali à volta ao alto atenção sobre a cabeça
tchiaak belo Chamas
chamas chamas
chamas chamas
chamas chamas
ribalta dos fortes a -
chamas
chamas
trás daquele fumo (...)".


Mesmo num poema de sua produção literária anterior ao Futurismo, como All'Automobile da corsa (1908), onde ainda encontramos uma sintaxe estilística convencional, o olhar cinematográfico já está presente em Marinetti:


"Deus veemente duma raça de aço,
automóvel ébrio de espaço,
que pateias e gemes de angústia, e vais roendo com dentes
[estridentes!

Ó formidável monstro japonês com olhos de oficina,
nutrido de chamas e de óleos minerais,
sedento de horizontes e presas siderais,

desmancho-te o coração que bate diabólico
e os pneumáticos gigantes para a dança
em que rompes pelas estradas brancas do mundo (...)".


Ainda que, como anteriormente enfatizamos, o Futurismo italiano não tenha deixado um legado expressivo de filmes realizados, seu pensamento estético, cinemático por excelência mesmo quando trata de poesia, pintura ou escultura, não poderia deixar de produzir uma importante reflexão sobre o próprio cinema. Num dos primeiros manifestos do Movimento sobre o tema, Cinema Abstrato: Música Cromática (1912), Bruno Corra trata das primeiras experiências cinematográficas do Futurismo, que se desenvolvem a partir do que o autor irá denominar como sinfonia cromática. Definindo o conceito tradicional de quadro como um conjunto de cores, dispostas em relações recíprocas, com o objetivo de representar uma imagem, Corra argumenta ser possível criar "uma nova forma de arte pictórica mais rudimentar, pondo-se sobre uma superfície massas de cor dispostas harmoniosamente umas em relação às outras de modo a agradar à vista sem que representem nenhuma imagem. Corresponderia aquilo que em música se chama acorde e podemos, portanto, chama-lo de acorde cromático". As sinfonias cromáticas são criadas mediante um trabalho de pesquisa que procura determinar a música das cores; um dos experimentos, por exemplo, consistia numa série de 28 lâmpadas coloridas, cada uma acoplada, por meio de um dispositivo elétrico, a uma das 28 teclas de um piano. Em seguida, Corra nos fala de dois filmes, que infelizmente desapareceram durante a II Guerra Mundial. O primeiro deles, intitulado O Arco-Íris, inicia-se com uma tela inteiramente cinzenta; e, em seguida, as cores do arco-íris começam a aparecer como "um abalo levíssimo de palpitações irisadas, as quais parecem surgir das profundezas do cinza, como bolhas de uma fonte e, chegando à superfície, estouram e desvanecem, a luta acentua-se, o íris afogando-se por baixo dos turbilhões cada vez mais negros que rolam do fundo para frente, debate-se, consegue desvencilhar-se, espraia-se, para desaparecer de novo e retornar mais violentamente atacando na periferia, até que num repentino desmoronamento, o cinza todo esfarela-se e o íris triunfa num turbilhonar de girândolas, que por sua vez, finalmente, desaparecem, sepultadas sob uma avalanche de cores". Na segunda fita mencionada por Corra, de nome A Dança, "as cores predominantes são o carmesim, o roxo e o amarelo, que são continuamente reunidas entre si, separadas e arremessadas umas contra as outras em ágeis piruetas de pião". Em 11 de setembro de 1916, o periódico Italia Futurista publica um manifesto coletivo, A Cinematografia Futurista, assinado por Marinetti, Balla, Corra, Emilio Settimelli, Arnaldo Ginna e Remo Chiti. Este texto, fundamental no contexto do Futurismo italiano como um todo, apresenta as mais relevantes idéias do Movimento sobre a arte cinematográfica. Logo de início, o grupo declara suas intenções: "O cinema futurista que nós preparamos, alegre deformação do Universo, síntese alógica e fugaz da vida mundial, tornar-se-á a melhor escola para os jovens: escola de alegria, de velocidade, de força, de temeridade e de heroísmo. O cinema futurista tornará mais aguda a sensibilidade, imprimirá velocidade à imaginação criadora, dará à inteligência um prodigioso sentido de simultaneidade e de onipresença". Os futuristas sustentam que o cinema, sendo uma arte nova, deveria estar livre do peso do passado e dos preceitos de qualquer tradição artística, e não atrelado aos procedimentos convencionais da literatura e da dramaturgia, situação que é inaceitável para uma sensibilidade artística nova e revolucionária: "É PRECISO LIBERTAR O CINEMA COMO MEIO DE EXPRESSÃO para fazer dele o instrumento ideal DE UMA NOVA ARTE muito mais vasta e ágil que todas aquelas existentes. Estamos convencidos de que só por meio disto é que se poderá alcançar aquela poliexpressividade para a qual tendem todas as mais modernas pesquisas artísticas. (...) No filme futurista entrarão como meio de expressão os elementos mais variados: desde o trecho de vida real até a mancha de cor; da linha às palavras em liberdade; da música cromática e plástica à música dos objetos. Ele será, em síntese, pintura, arquitetura, escultura, palavras em liberdade, música cromática, linhas e formas, amontoado de objetos e realidades tornadas caóticas". O cinema futurista deve ser, portanto, a síntese dinâmica e multiforme de todas as artes, síntese essa que, diga-se de passagem, é enunciada de maneira modelar numa equação que encerra o manifesto: "Pintura + escultura + dinamismo plástico + palavras em liberdade + intonarumori + arquitetura + teatro sintético = cinematografia futurista". Essa equação sucinta, límpida síntese de inequívoco sabor marinettiano em seu emprego de símbolos matemáticos no lugar de pontos e vírgulas, é talvez a mais clara e abrangente exposição da filosofia estética futurista, vórtice impetuoso e iridescente onde todas as artes convergem para a realidade a 24 quadros por segundo.



As idéias e noções expostas nos manifestos futuristas, ainda que não tenham tido uma aplicação prática imediata, exerceram influência marcante na história do Cinema, queiram ou não queiram os vetustos corifeus da historiografia cinematográfica oficial. Uma perspectiva imparcial descobriria, com facilidade, a presença do Futurismo em diversos momentos cruciais da trajetória do cinema. Por exemplo, as sinfonias cromáticas descritas por Corra prenunciam o abstracionismo geométrico de um Hans Richter, de um Walter Ruttmann, de um Viking Eggelling, assim como boa parte do cinema de avant garde francês dos anos 20 ( Man Ray, Henri Chomette, Germaine Dullac, Dmitri Kirsanov, René Clair ); de modo menos notável, mas ainda assim significativo, as concepções cinematográficas do futurismo italiano estão presentes na fase áurea do cinema soviético, sobretudo na obra magistral de Dziga Vertov; Tex Avery, o hilariante xamã do terrorismo visual em velocidade warp, poderia pilotar os bólidos delirantes de Balla e Severini, assim como as parole in libertá de Marinetti poderiam livremente navegar através do caótico oceano das desconstruções narrativas de Jean-Luc Godard.



Infelizmente, não foram muitos os que souberam incorporar as idéias mais valiosas dos futuristas italianos, homens não raro desvairados e ingênuos, por vezes até mesmo tolos, mas sempre fervilhantes de criatividade e invenção. Hoje, quando mais de oito décadas nos separam dos manifestos futuristas, o cinema se converte mais e mais numa arte passadista, nem tanto por ainda ser caudatário de estruturas narrativas herdadas da tradição literária, mas por ter se transformado, cruel ironia da História, em escravo de sombrias estruturas industriais, que se símbolos foram, no início do século, das vertigens de liberdade celebradas pelos arautos do Futurismo, hoje, na mesma centúria, que ora finda, se transfiguram em hediondas insígnias da letargia, da monotonia e da mediocridade planejadas.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

A Morte do Cinema Melancólico

Alphonse van Worden - 1750 AD


Talvez seja possível dizer que o cinema melancólico é, em nossos dias, um gênero virtualmente extinto. De quando em quando, ainda podemos encontrar algum razoável filme triste, mas também isto é cada vez mais raro; filmes desesperados, decerto, ainda são produzidos a mancheias; invariavelmente péssimos, no entanto. Mas a beleza do cinema melancólico, todavia, é um deleite que hoje cada vez menos nos é facultado.

Entendo que a melancolia é sem dúvida uma variante da tristeza; variante, todavia, infinitamente mais sofisticada, sutil e perigosa...A característica central da melancolia é sua total ausência de um conteúdo perceptível; é um sentimento desprovido de carga dramática, que não exprime conteúdos palpáveis e nem tampouco se exerce claramente sobre qualquer objeto. Fazendo uma analogia por certo imprecisa, podemos dizer que a melancolia é um moderado vazio desdramatizado. Um moderado vazio, reparem, distinto do pungente vazio do desespero, que na verdade possui um fortíssimo conteúdo, e mesmo da discreta, porém evidente, materialidade da tristeza. Trata-se, todavia, de uma ausência que insiste na demonstração de seu vazio informe. A melancolia é o desalento silencioso de algo que não pode ser definido; uma sombra discreta, mas inquietante.


O cinema melancólico é a difícil tentativa de retratar este inefável estado de espírito. É preciso celebrar, por exemplo, a façanha levada a cabo por Peter Bogdanovich em "The Last Picture Show" (1971), onde que o poderia ser risível dramalhão se converte em sinuoso e sedutor desassossego; de fato, uma proeza admirável no panorama do cinema norte-americano, em geral avesso às filigranas da arte melancólica, como bem o demonstra o próprio Bogdanovich em seus filmes posteriores. "Cria Cuervos" (1976), de Carlos Saura, uma das obras capitais do cinema melancólico, também foi realizado em ambiente pouco afeito ao gênero. Além da delicadeza de Saura na carpintaria narrativa, sublinhemos a magnífica interpretação da menina Anna Torrent (quem poderá esquecer a intensidade excruciante de seu olhar?) e, sobretudo, o desempenho magistral da refulgente Geraldine Chaplin, atriz cuja relevância infelizmente é ofuscada pelo peso histórico de seu pai; aproveitando o ensejo, a ela presto aqui um sincero tributo.

O grande artífice da melancolia fílmica talvez tenha sido o cineasta italiano Michelangelo Antonioni, especialmente na trilogia formada por "L'Avventura" (1960), "La Notte" (1961) e "L'Eclisse" (1962), onde a melancolia assumiu os contornos de um requintado e hipnótico ballet de sombras deslizantes e agonias sublimadas, e em "Blow-up" (1966), síntese irônica da languidez elegante como visão de mundo. Jean-Luc Godard, por sua vez, em "Une Femme est une Femme" (1960), "Vivre sa Vie" (1963) e "Alphaville" (1965), revelou grande mestria num sutil jogo de artifícios, ocultando a melancolia sob formatos estrategicamente insuspeitos: o cinema musical no primeiro caso, o cine-documentário de corte sociológico no segundo e a paródia de ficção científica no terceiro. Não pode ser subestimada, vale dizer, tanto nos filmes de Antonioni quanto nos de Godard, a contribuição inestimável de três grandes damas do desalento etéreo e sofisticado: Monica Vitti, Jeanne Moreau e Anna Karina.


O 'primus inter pares' do gênero é, entretanto, "Hiroshima Mon Amour" (1959), de Alain Resnais. O que mais se poderia falar sobre este imperecível monumento, a respeito do qual, aliás, já escrevi um artigo? William Faulkner disse certa vez que "o artista está um degrau acima do crítico, pois está escrevendo alguma coisa que porá o crítico em movimento. O crítico está escrevendo alguma coisa que porá todo mundo em movimento, menos o artista". Creio que Faulkner foi feliz nesta observação, pois a crítica é, de fato, sempre caudatária da obra de arte; caudatária e talvez, o que é mais grave, cruelmente inútil quando pretende interpretar uma obra-prima, como é o caso de 'Hiroshima'. De qualquer modo, gostaria de registrar a seguinte consideração: penso que este filme conseguiu algo de extraordinário ao transfigurar a densidade do trágico através da sutileza da melancolia. Os eventos narrados em 'Hiroshima' se impõem não pela fatuidade de gestos exaltados ou palavras bombásticas, mas através de uma epifania de requintados milagres consubstanciados na direção de Resnais, na interpretação de Emmanuelle Riva (a meu ver, a melhor em toda a história do Cinema), na música de Giovanni Fusco e na fotografia de Sacha Vierny.

O traço distintivo do cinema melancólico, como fica patente nas obras acima mencionadas, é a ausência de envolvimento. Enquanto o cinema trágico nos consente participar do sofrimento das personagens, dissolver nossas inquietações na iridescência volátil da tela, o cinema melancólico nega ao espectador tal lenitivo. O dilaceramento espiritual que a Tragédia nos propicia pode ser doloroso, mas assim o são todos os rituais de expiação, que no entanto nos purificam; a melancolia, ao contrário, miasma insidioso, alui silente todas as certezas e esperanças, mas não permite o retorno, porque sutilmente nos oculta o exílio. A melancolia não possui, vale dizer, a intensidade da tristeza, ou o vigor estimulante do ódio, e nem tampouco os evidentes encantos de sentimentos como o amor, a alegria e a paixão; talvez seja, portanto, um estado d'alma inacessível à vulgaridade do senso comum, que vaga sem rumo pelos orcos cinéreos da terra devastada... What is that sound high in the air, Murmur of maternal lamentation, hooded hordes swarming Over endless plains, stumbling in cracked earth Ringed by the flat horizon only...

O silêncio, a sensibilidade e a delicadeza estão agonizando no histérico e estéril desvario do 'admirável mundo novo' em que vivemos; e sem o concurso do silêncio, da sensibilidade e da delicadeza, a arte melancólica também desaparece de nosso já parco horizonte de possibilidades...

Turning and turning in the widening gyre
The falcon cannot hear the falconer;
Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity
...


sexta-feira, outubro 19, 2001

KapytaLySMO Lyyyíííííírrrriiiiiicoooo !?!?!?





^*&@<>===... AAAARRRRGHHHHHH!!!!!!!!!!!! A SelVageria PRESente OOOhhh!!!! NOS Paíííses do Kapytalysmo desenvolvido----____ bizarros Famiiintos "TÁ Cum Foooomee!!!!, NENÊ???" DO TerCeeiro Mundo,**entropiiia, dicotomia do Quaaadro do IMPÉRIO "h\u\m\a\ni\z\a\d\o", Inglaterra "Oh!BRItannia!!!! Briiitaaannia rules the waves, britons never, never, never shaaaall be Slaves!" dos centros do muunndo allasstrar de circunst6âncias da miséééria da pop/.;pulaçãão Espantosa "Ma num é um ischpanto?".,., Barbárie IMMperial DO "Kapital", novo prolongadíssiiimo Systemma emeerge do Kapytalysmo 2001;[p[,./,.@#/+ VERDA~ ~ ~ ~DEIROS escândalos que a Guerra!!!! Friiiaaa!!!!! lucrou, Acumulaaçççãaao superaando princíiípio Ético-Moral?!? , eu revelo:::::: "LA Capitale de la douleur", desvalidos do primmiiitiivo KAPI;;;;Taaliiismo* instauraramm a avidez pluriselvagemm DA EUropa, a gê0000nese uniiida sob MAAARX , LEEENIN(000!!!) E A mão Morta do MEERCCADDO1, bROOTA O FIM, que entra tooodooo pelo FIMMMM da "soy loco por ti" AmériKKAA, "Dee péééé, óóóó vííítimas da fo?o!o?me, dE pé Fa/.;méééli;;cos DA TÉRRA, d/()A Idééééiiiaaaa a CHAAAMAAA JÁÁÁÁÁÁÁ Conssommme.........................................................."...... ............................... na vigência......................................... ............................... do.................................................. .........CAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOSSSSSSSSSSS!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 

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 Ten. Giovanni Drogo 

 Forte Bastiani 

 Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Algumas considerações sobre a noção de evento em Alfred North Whitehead

Alphonse Van Worden - AD 1750





A partir de obras como "The Concept of Nature" (1919) e "Science and the Modern World" (1920), e sobretudo em "Process and Reality" (1929), seu trabalho filosófico de maior fôlego, o filósofo, lógico e matemático inglês Alfred North Whitehead, rejeitando o dualismo cartesiano entre mente e matéria, propõe uma concepção de Realidade estruturada em termos de Eventos e de suas relações / interconexões, que estabelecem a unidade entre observador e observado, entre sujeito e objeto. Para Whitehead, deve-se ressaltar, a epistemologia não possui nenhuma prioridade sobre a ontologia, ou vice-versa: qualquer reflexão sobre o Conhecimento envolve, simultaneamente, uma reflexão sobre o Ser.

Antes de empreendermos a investigação sobre o conceito de evento propriamente dito, são necessárias algumas observações preliminares acerca do que o filósofo inglês irá denominar como doutrina científica da matéria.

Na segunda parte da conferência 'Natureza e Pensamento', publicada em "The Concept of Nature", Whitehead irá tratar da influência da filosofia grega na formação da doutrina científica da matéria. Para ele, "tal influência originou-se de uma concepção equivocada, de origem remota, quanto à condição metafísica das entidades naturais" . A entidade foi desvinculada dos elementos que constituem os termos da apreensão sensível; converteu-se, portanto, no fundamento, na essência estruturante de tais elementos, que foram relegados à condição de atributos da entidade. Em si mesma, uma entidade natural deve ser entendida, argumenta o filósofo inglês, tão somente como o processo de apreensível sensível de um fato. A entidade não é a essência primordial de um fato, de fenômeno dado, mas sim a maneira pela qual um fato é processado pelo pensamento. Isto é, a entidade natural não é fundamento, mas movimento de apreensão sensível de um fenômeno que se manifesta. De acordo com Whitehead, essa abstração, que é um processo mental na transfiguração da apreensão sensível em conhecimento discursivo, foi considerada como o caráter fundamental de estruturação da natureza. Em outras palavras: a matéria se configurou como essência metafísica de suas propriedades, e o curso da Natureza é interpretado como sendo a história da Matéria. A Matéria, por sua vez, passou a ser condição de possibilidade de suas propriedades, como podemos constatar ao analisarmos a evolução da doutrina científica da matéria, que tem sua origem no pensamento grego.

Desde os primeiros pensadores jônicos, foram propostas as mais diversas hipóteses sobre quais seriam os fundamentos últimos na natureza. A terra, a água, o ar e o fogo da filosofia jônica, são comparáveis, sublinha Whitehead, ao éter das teorias científicas dos séculos XVIII e XIX: constituem tentativas de formulação de um substrato último para a Natureza; são, na acepção aristotélica, exemplos de substâncias últimas. A entidade, pois, livre de todos os atributos, exceto aqueles do espaço e do tempo, foi pensada como condição concreta de estruturação fundamental da natureza, de maneira que o processo da natureza é compreendido como a trajetória da matéria em seu percurso pelo espaço.

Assim sendo, o filósofo inglês assevera que, na formação da doutrina científica da matéria, a filosofia, num primeiro momento, transformou a entidade considerada em si mesma, que se constitui como abstração necessária ao processo do pensamento, no fundamento metafísico dos fenômenos da Natureza e de seus atributos; num segundo momento, os cientistas tomaram esse fundamento como condição de possibilidade, como materialidade existente no tempo e no espaço.

Whitehead, vale dizer, pretende repensar tanto a doutrina científica da matéria quanto as teorias absolutas do tempo e do espaço, isto é, o acervo de teorias que admitem o conhecimento do tempo e do espaço em si mesmos, separados dos eventos neles relacionados. O mesmo princípio adotado para as relações entre espaço e matéria aplica-se, pois, às relações entre tempo e matéria. A concepção de Whitehead advoga, portanto, uma teoria relacional tanto do espaço como do tempo, recusando a forma corrente da teoria relacional do espaço, que exibe porções de matéria como os termos relacionais para as relações espaciais, ou seja, que acredita em complexos relacionais entre entidades puras e simples através do espaço. As relações espaço-temporais se desenvolvem entre eventos que se manifestam dinamicamente, e não entre entidades que, conforme dissemos anteriormente, são apenas abstrações necessárias ao processo do pensamento. Para o filósofo inglês, os legítimos termos relacionais são os eventos, que se afirmam como acontecimentos espaço-temporais. Tempo e espaço são abstrações que exprimem relações entre eventos; conhecemos, portanto, a inter-relação de eventos que se desenrolam no espaço e no tempo, o processo através do qual tais eventos, que são termos relacionais, se manifestam como entrelaçamento de fenômenos para o pensamento, e não entidades absolutas passíveis de conhecimento em si mesmas.

Passaremos agora a investigar o significado que a noção de evento irá assumir na filosofia de Whitehead. Eventos, tal como comumente os concebemos, são acontecimentos que ocorrem em lugares determinados, em períodos de tempo determinado, estendendo-se por uma determinada duração - em suma, tudo que acontece, desde a queda de um fruto de sua árvore, até à queda de um Império. A matéria, argumenta Whitehead, pode ser considerada em si mesma como um agregado de eventos subatômicos, concepção que, sem dúvida, encontrava esteio nas então recentes pesquisas da mecânica quântica. Os eventos subatômicos são, por conseguinte, exemplos dos tipos fundamentais de eventos que constituem a base da ontologia do filósofo inglês. O físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976), com a formulação de seu Princípio da Indeterminação em 1927, verificou ser impossível especificar e determinar, simultaneamente e com precisão absoluta, a posição e a velocidade de uma partícula, mostrando como, no processo de medida de grandezas no campo da microfísica, se atinge um limite onde a precisão se torna impossível, mesmo teoricamente, pois o próprio ato de medida perturba, até certo ponto, o fenômeno, que não pode, pois, ser avaliado com precisão. Tal enunciado, portanto, representa um cheque-mate para o determinismo clássico, colocando em questão não apenas a noção tradicional de causalidade, mas a própria independência entre o observador e o observado. Na mecânica quântica, a interpretação de uma observação experimental de um sistema físico é um processo mais complexo do que os até então utilizados na física clássica. Poderá consistir de uma única leitura, cuja precisão terá que ser rigorosamente avaliada, ou então poderá consistir num intrincado conjunto de dados, como no caso de uma fotografia de gotículas d'água na câmara de Wilson, experimento citado por Heisenberg. Em ambos os casos, o resultado só poderá ser expresso em termos de uma distribuição de probabilidades que diga respeito, por exemplo, à posição e ao momento linear das partículas do sistema. A teoria então poderá prever a distribuição de probabilidades para tempos futuros, mas não poderá ser empiricamente verificada, em qualquer um desses instantes futuros, com base no resultado experimental segundo o qual os valores das posições, ou dos momentos lineares, estejam dentro dos limites previstos em uma observação específica. A mesma experiência terá que ser realizada repetidas vezes, de maneira que os valores das posições e momentos lineares se distribuam de modo a configurar o esquema de probabilidades predito. Para a mecânica quântica, portanto, a indeterminação, longe de ser apenas um dado epistemológico, está presente na própria ontologia do objeto de conhecimento.

O filósofo inglês, todavia, não restringe a validade de seus eventos fundamentais ao plano subatômico; desse modo, não somente os fenômenos descritos pela física quântica, mas também os eventos atômicos, moleculares e celulares se enquadram nas unidades fundamentais definidas por Whitehead. Toda esta complexa rede de eventos se manifesta como o conjunto de ocasiões experienciadas pela percepção humana, o que não significa dizer que se configurem necessariamente como experiências conscientes. A quantidade de fenômenos que experimentamos simultaneamente ultrapassa de sobejo nossa capacidade de análise. Experimentamos todo o universo à nossa volta, mas nossa consciência é tão somente capaz de analisar uma fração mínima desta totalidade de fenômenos. De facto, estamos conscientes, por exemplo, da pessoa com quem conversamos numa festa e, ao mesmo tempo, experimentamos os demais eventos que se desenrolam no ambiente em que nos encontramos. Para Whitehead, a característica mais importante da consciência consiste precisamente de isolar analiticamente um fenômeno em meio à miríade de fenômenos que nos envolve: poderíamos falar com qualquer um na festa, mas estamos falando com uma pessoa específica. Trata-se do que o filósofo inglês irá denominar como ocasião atual, isto é, o fenômeno que está sendo no momento analisado por nossa consciência.

Consideremos agora o ato da percepção. É por intermédio da percepção, que compreende cognição, intencionalidade e afecções, que ficamos cientes do meio que nos cerca. Eu olho para a folha de papel que está à minha frente, por exemplo. Tenho uma percepção imediata de sua aparência geral - sua forma, tamanho, cor. Ela está colocada sobre esta mesa e rodeada por uma série de outras coisas, que todavia não constituem, no presente momento, objetos precisos da minha consciência. Da mesma maneira, estou vagamente consciente do meu corpo e de suas relações com a mesa e a folha de papel. Enquanto observo a folha, cadeias de memórias associativas são despertadas. Todas estas percepções e memórias estão enfeixadas numa unidade, num único evento perceptivo. O ponto focal deste evento é o meu corpo. A folha de papel, ocasião atual de meu processo perceptivo, e os objetos a sua volta, assim como as lembranças, são todos elementos constitutivos internos da minha experiência, e participam direta ou indiretamente do evento que ora está sendo experimentado. Em nossos processos perceptivos, por conseguinte, estamos continuamente dividindo a apreensão sensível de um evento complexo em eventos singulares, ou seja, estabelecendo ocasiões atuais como objeto de análise de nossa consciência.

O ato perceptivo estabelece, pois, a relação causal entre o sujeito e a realidade externa num momento específico. Percepção e memória, salienta Whitehead, são instâncias constitutivas de um conceito mais abrangente, por ele chamado de apreensão. Para o sujeito, portanto, apreender um objeto, que pode ser físico, como uma folha de papel, ou conceitual, como a memória, é experimenta-lo, percebe-lo, senti-lo, ainda que não necessariamente de um modo consciente ou reflexivo. A capacidade de apreender está também presente nos planos elementares da natureza. Uma célula percebe o ambiente que a circunda. No complexo de eventos subatômicos, cada evento apreende seu antecedente, e é quase que inteiramente determinado por ele.

O conceito de apreensão parece ser, num primeiro momento, deveras semelhante ao conceito fenomenológico de intencionalidade; ambos descrevem a relação que se estabelece entre um sujeito e um objeto tendo em vista a superação da cisão sujeito/objeto. Da mesma maneira que intencionalidade é sempre consciência de um objeto, apreensão é sempre percepção de um conjunto de dados. Existe, contudo, aponta Whitehead, uma distinção crucial entre as duas noções: a intencionalidade é pensada apenas em termos de consciência humana, ao passo que o escopo da apreensão, como tivemos a oportunidade de constatar, ultrapassa os limites da consciência humana. Ao invés de meramente se identificar com a intencionalidade, a apreensão generaliza tanto a noção de intencionalidade quanto a de causalidade, unificando desta forma tanto as perspectivas fenomenológica e científica.

Ao conceber, portanto, a natureza em termos de EVENTOS, e não de substâncias, Alfred North Whitehead opera um deslocamento radical em relação às teorias ontológicas e epistemológicas consagradas pela tradição filosófica. Mente e Matéria não mais constituem as instâncias fundamentais em que se divide a realidade, sendo substituídas por Whitehead pelo conceito unificado de eventos relacionais se processando dinamicamente no espaço-tempo, possuindo características que podem ser consideradas como pertencentes, em certos aspectos, tanto ao plano material quanto, em outros, ao plano conceitual.

segunda-feira, outubro 08, 2001

Emanações da Guerra Transfinita


O oceano lunar inunda, espectral, as crepusculares vastidões tartáricas; fragores distantes ecoam, altissonantes, nos cinéreos contrafortes do Bastiani; minh'alma, em pranto, desespera-se na bruma evanescente ... as hordas infernais arrojam sua borrasca flamejante sobre o povo sagrado, num vórtice miasmático de terror e destruição. Asmodeu e Belial, Lúcifer e Satanás, atrozes senescais dos Abismos de Sangue, regozijam-se em tétrico êxtase ; olvidam-se os Grandes Satãs, contudo, de um mirífico exórdio do radiante CHRISTUS PANTOCRATOR, que proclama: "a morte tem o mesmo sobrenome que o sonho, mas nós ignoramos este sobrenome; o sono é um breve exercício da morte, que também é sua irmã, mas nem todo irmão e irmã são igualmente próximos"... Sob a égide, pois, do egrégio Senhor do Fogo Primordial, marchamos serenos para a Guerra Transfinita, e até o fim combateremos, o admirável coração tranqüilo, a espada violenta, resignados a matar e a morrer!

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Ten. Giovanni Drogo 

 Forte Bastiani 

 Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros