domingo, junho 03, 2012

O 'Problema da Indução' em David Hume - III

Alphonse van Worden - 1750 AD




























Não há, pois, como saber se um evento irá acontecer antes que, de facto, aconteça. Hume questiona, desse modo, a possibilidade de validarmos logicamente as inferências que vão além dos testemunhos presentes em nossos sistemas sensoriais e registros da memória. Na seção V,  com efeito, Hume apresenta duas soluções para as dúvidas acima mencionadas. A primeira afirma não são instâncias argumentativas que nos levam a extrair  de qualidades sensíveis semelhantes efeitos igualmente semelhantes, mas sim o hábito e a experiência. Como fanal de tudo que está presente em nosso pensamento, são esses “grandes guias de tudo o que acontece na vida humana” que sedimentam e dão origem a nossa opção por uma probabilidade ao invés de  outra. O que, a nosso juízo, configura-se interessante constatar é que o raciocinar e o sentir estão interligados e se afetam de forma recíproca, visto que nunca estamos apenas pensando ou apenas sentindo, mas sempre fazendo as duas coisas ao mesmo tempo, embora em graus diferentes que se alteram continuamente. Quanto à segunda dúvida, a do que nos leva a ir para além do presente e da memória, Hume aponta como resposta analogias suscitadas por algum objeto ou pessoa presente. Estamos sempre associando idéias (por causa e efeito, semelhança ou continuidade no espaço e tempo), de maneira que, ao vermos algo (no presente) que nos é de algum modo familiar, ligaremos a experiência passada (memória) que tivemos com esse objeto ao que está ocorrendo no momento presente, bem como acalentaremos a suposição de que o futuro irremediavelmente irá reproduzir regularidades observadas no passado.

Mas esse erro que parece imperdoável é na verdade, diz Hume, uma sistemática operação do entendimento, onde conjugamos o que está presente com  experiências passadas. Para melhor esclarecer essa questão, Hume faz uso do conceito de crença, compreendida como um poderoso impulso, até certo ponto involuntário e inconsciente, que nos faz preferir uma hipótese à outra frente à conexão causal dos acontecimentos em permanente manar. É precisamente esse  impulso o fator responsável pela conexão de um acontecimento a outro, conferindo à possibilidade aparência de necessidade, tornando contínua, e não fragmentária, a sucessão dos acontecimentos em nosso aparelho perceptivo. Tal processo decerto difere da imaginação por ser mais forte e vívido, e  por não ser desencadeado deliberadamente, mas antes  por força da própria natureza de nossa estrutura intelectiva. A sucessão de eventos no tempo nos parece sempre palmilhar uma harmonia pré-estabelecida entre o Homem e a Natureza. No entanto talvez possamos asseverar que, para Hume,  a enigmática estrutura que se erige no imo da realidade sensível, regendo, sempiterna, os múltiplos desígnios do Universo, permanecerá insondável, incognoscível para os seres humanos.

Retomando a questão central da argumentação humeana, examinemos as seguintes questões propostas pelo filósofo escocês: por que pensamos que todo evento deve ter uma causa e por que acreditamos que cada causa particular deve ter o efeito que supomos que possui. O princípio de causalidade geral não é auto-evidente e nem tampouco pode ser demonstrado, nos diz Hume: quando asseveramos a existência de uma conexão causal entre eventos – explicando um em termos do outro – estamos nos baseando na existência real de algum tipo de conexão necessária vigente na Natureza. No entanto, argumenta Hume, tudo que podemos constatar são conjunções constantes entre eventos: dizemos que A causa B ao observarmos que eventos do tipo A têm sido sempre seguidos por eventos do tipo B. O que portanto verificamos é tão somente a sucessão habitualmente constante entre os eventos A e B, o que de modo algum nos autoriza a garantir a existência de uma conexão necessária entre A e B.

Com a sutileza típica de sua engenharia argumentativa, Hume refuta algumas das tentativas de justificação do supracitado princípio: Locke, por exemplo, atalhou que se o princípio fosse falso, alguma coisa teria sido necessariamente causada por nada, e o nada, claro está, seria incapaz de causar qualquer coisa. Percebe-se facilmente que esse argumento envolve uma petitio principii, uma vez que também não se pode provar que um evento particular qualquer é causa daquilo tomamos como seu efeito. Causa e efeito se configuram como elementos distintos; não há, portanto, contradição em supor que a primeira ocorra e o segundo não. 

A argumentação precípua de Hume pode ser, deste modo, resumida da seguinte forma: quando acreditamos que dois tipos de eventos estão causalmente relacionados, acreditamos que estarão constantemente conjugados no futuro, com base na lembrança de que estiveram efetivamente conjugados em nossa experiência passada. Somos, pois, levados a tal concepção por influência de um determinado hábito mental, que converte nossa observação, no passado e no presente, de conjunções constantes entre fenômenos naturais, na crença da existência de uma conexão necessária, de uma regularidade que rege a dinâmica da Natureza. A inferência da conjunção limitada que observamos para a conjunção universal envolvida em nossa crença causal assume, pois, que o inobservado assemelhar-se-á continuamente ao já observado ou, em termos mais amplos, que a natureza é uniforme e, por conseguinte, constituída por regularidades fenomênicas. Essa suposição, todavia, assim como o princípio geral de causalidade, não é auto-evidente, nem demonstrável. O inobservado é, desde sempre, potencialmente distinto do observado: ele pode assumir qualquer forma que seja, bem como, eventualmente, continuar compatível com o já observado; tampouco podemos estabelecê-la indutivamente a partir de que até agora, pelo menos, o fenômeno que estivermos a examinar continua reproduzindo os efeitos observados em experiências anteriores. Proceder deste modo seria, vale dizer, argumentar em círculo, assumir a validade da suposição como instância autocomprovável.

Faz-se mister a constatação de que a crítica humeana, pois, não pode ser logicamente contornada argumentando-se que a natureza procede por regularidades, ou que o inobservado irá possivelmente assemelhar-se ao observado, se for esta a forma de probabilidade que estiver em tela. Convicto, pois, de que a inferência indutiva, que está imbricada em nossas crenças causais, bem como em todas as demais crenças factuais que ultrapassam as impressões presentes (caso, por exemplo, das proposições da Física e demais ciências experimentais), não pode ser racionalmente justificada, o filósofo escocês procura investigar por que, reiteradamente, o ser humano lança mão de uma ampla gama de decisões baseadas em inferências indutivas; e sua resposta, como já verificamos, articula-se da seguinte maneira: por influência dos processos associativos, nossa experiência de uma miríade de conjunções constantes leva-nos a ter, por uma questão de costume ou hábito, vívida expectativa do estilhaçar de uma vidraça quando vemos uma pedra voando em sua direção. A impressão da qual se deriva nossa idéia de conexão necessária não é uma impressão de sensação, mas de reflexão, que se manifesta, pois, ao nos sentirmos propensos a esperar, com um sólido grau de certeza, que a vidraça estilhaçar-se-á quando observamos o tijolo viajando em sua direção.