quinta-feira, julho 14, 2022

JOKER: ou o mal-estar no seio da própria barbárie

Alphonse van Worden - 1750 AD

 



Famígeros confrades: 

Visto andarmos tão 'cinematográficos' ultimamente, penso que seria oportuno tecer alguns comentários a propósito daquela que talvez seja a melhor produção recente em termos de mainstream hollywoodiano: JOKER (2019). 

 Antes de qualquer outra coisa, contudo, gostaria de fazer duas observações preliminares: 

a) as obras-primas representam para mim uma dimensão quase esotérica, sobrenatural, uma esfera rarefeita, etérea, no âmbito do cinema restrita a figuras como Welles, Dreyer, Vertov, Murnau, Rivette e mais uma 'meia dúzia de três'; não obstante, trata-se, sim, d'um excelente filme, surpreendente até, tendo em vista o cenário de 'terra devastada' do cinema de massa norte-americano nos dias de hoje; 

b) devo dizer que me identifico completamente com os sentimentos e atos do protagonista, a meu ver inteiramente justificáveis e se calhar até mesmo louváveis no âmbito das circunstâncias. Assim sendo, vamos parar com esse papinho bosta de 'compreender as motivações mas condenar as reações', 'anti-herói' e outras patacoadas do mesmo naipe: Arthur Fleck é um legítimo HERÓI, um dos únicos e últimos heróis possíveis no seio do mundo hodierno. É, sobretudo, um herói absolutamente íntegro, que não aceita compromissos sujos nem hipoteca sua consciência.  E digo mais: tal como o pessoal costuma  gracejar a propósito de figuras como Stalin, Mao Zedong, Pol Pot etc. etc., proclamo enfaticamente, em alto e bom som: 

MATOU FOI POUCO, CORINGA! 

Isto dito, conceitualmente falando creio ser crucial em primeiro lugar frisar o seguinte: a tese do filme como obra revolucionária, de denúncia contra o Sistema, é em última análise um tanto quanto ingênua e equivocada. Para invalidá-la bastaria lembrar do seguinte: o desfecho do filme é fundamentalmente derrotista, melancólico, sombrio e crepuscular. Se a última cena fosse a apoteose, o triunfo, o êxtase da insurreição dos clowns com o resgate de seu grande líder e mentor das mãos da autoridade policial, aí de fato até existiria algum teor subversivo, mas nem isso é oferecido ao espectador, a verdade é essa. E de resto...  Santo Cristo, bastaria dizer que JOKER é um lançamento da Warner Bros., ou seja, é um produto do próprio Sistema, gestado no próprio imo da Besta! 

Por outro lado, contudo, há que ter em mente duas coisinhas básicas: 

a) a existência do 'Sistema' como entidade monolítica, espécie de Leviathan multiforme e omnipresente, agindo de forma coerente e unificada sob um único imperativo, cada vez mais me parece ser uma fantasia teratológica. Decerto setores com interesses convergentes coordenam suas ações no intuito de obter certos resultados, mas é necessário atentar para o caráter essencialmente heteróclito do conjunto das forças em atuação no 'gran teatro del mundo' (Calderón de La Barca), bem como para o crescente grau de disfuncionalidade (e inclusive de aleatoriedade) inerente à própria complexidade dos processos em jogo.   

b) há um significativo elemento de autoironia (e até  mesmo de autossabotagem) que sempre existiu na indústria cultural; a esse respeito poderíamos citar vários exemplos, o que não viria ao caso no momento, todavia, tendo em vista os modestos propósitos desta nota. Trata-se d'uma dinâmica que deita raízes na própria esquizofrenia essencial da modernidade, que é uma consciência cindida, fraturada, fragmentária.  

Mas prossigamos. Houvesse que sintetizar toda a vastíssima galáxia de manifestações artísticas e literárias da modernidade numa única palavra, este vocábulo seria REVOLTA. Claro está que este sentimento/convicção se multiplica/desdobra em miríades de matizes distintos, que podem caminhar da ironia ao horror cósmico; do cinismo ao desespero; da vaga malaise ao ódio genocida; da inquietação difusa ao niilismo absoluto (caso do filme em tela, aliás). E tal revolta se transfigura como reflexo d’uma consciência cindida, d’um ethos fragmentário, caótico, no limite do delírio esquizofrênico. É precisamente este o Alpha e o Omega, o ponto nevrálgico da questão, seu centro de gravidade: o caráter essencialmente esquizofrênico da revolta moderna, da ‘grande recusa’, que a meu juízo está inexorável e inelutavelmente associado a ELES; sim, a ELES. E quem são ELES? Bom... Não é necessário ir muito longe: basta, por exemplo, recordar a origem dos próprios fundadores da nossa querida Warner, os irmãos Harry, Albert, Sam e Jack... 

Devo sublinhar que minha sem dúvida polêmica convicção desfruta até mesmo d’algum lastro científico: Emil Kraepelin, o pai da psiquiatria, aventa seriamente a hipótese de que o processo genético que desencadeia a esquizofrenia possa ter se originado a partir de mutações biológicas oriundas DELES. E como se isto não bastasse, penso que não seria de todo insensato afirmar, corroborado por autores da estirpe de um Julio Meinvielle ou de um Donoso Cortés (para citar dois pensadores de épocas, contextos e continentes distintos) que ELES em grande medida inocularam o vírus da revolta espiritual e existencial na cultura e sensibilidade modernas. 

Malgrado se calhar um pouco óbvia, neste momento uma observação de cunho pessoal se faz necessária. Vamos lá: os que me conhecem razoavelmente bem sabem que politicamente milito contra tudo que a modernidade representa; sabem outrossim que, apesar disso, sou fervoroso cultor de vários ‘modernistas’: de Baudelaire a Scelsi; de Poe a Ginsberg; de Nerval a Welles; de Rimbaud a Godard; de Villiers de L’Isle-Adam a Schönberg, contam-se às dezenas os avatares da modernidade que arrebatam a alma e incendeiam a mente deste que vos escreve;  Estou, pois, irremediavelmente contaminado pelo vírus da modernidade e não há quase nada que eu possa fazer a esse respeito. E esta constatação vale também para muitos entre vós: somos criaturas da modernidade, filhos d’uma época cujo espírito foi em larga escala por ELES formatado. Assim sendo, a revolta de Arthur Fleck, ainda que tragicamente alucinada e ao fim e ao cabo inútil, impotente e sob certos aspectos até mesmo fútil, não poderia deixar de me comover profundissimamente. 

JOKER reflete todas essas questões de forma especialmente visceral, pungente e sedutora. 



Para arrematar, duas breve considerações sobre os méritos mais propriamente 'cinematográficos' do filme (que no fundo constituem o que há de mais importante, a única garantia de que a obra perdurará na história da sétima arte, a despeito de qualquer polêmica ou discussão filosófica)

a) tendo em vista sobretudo o universo hollywoodiano, há muito tempo eu não assistia a um filme tão elegante, tanto em termos formais quanto no que tange à estrutura narrativa. JOKER é um filme sóbrio, adotando um tom quase sempre solene, hierático, até mesmo em suas (raras) explosões de violência.

b) muito já se discorreu sobre a presença do Martin Scorsese  dos anos 70 e 80, mais especificamente de Taxi Driver e The King of Comedy, no filme de Todd Phillips; com efeito, há uma pletora de citações, referências e alusões a essas obras. Não obstante, gostaria de lançar à baila aqui dois outros nomes: Stanley Kubrick e Jack Nicholson. O lívido e espectral oceano de glaciais tonalidades brancas que inundam algumas composições visuais (notadamente na cena entre Fleck e Thomas Wayne no banheiro do teatro, bem como no desfecho no manicômio judiciário) reverberam inequivocamente um tropo visual recorrente na obra do mestre inglês, mormente em sequências de cunho sobrenatural, ou onde se manifeste a intenção de deliberadamente obscurecer as linhas de demarcação entre realidade e imaginação. Por fim, penso que o arsenal de maneirismos, trejeitos e esgares, toda a panóplia de rictos faciais empregue por Joaquin Phoenix em sua inolvidável interpretação, tem como principal fonte de inspiração não o Travis Bickle de Robert de Niro, ou mesmo quaisquer dos Coringas anteriores, mas sim dois personagens de Jack Nicholson: Jack Torrance em The Shining (não por acaso tb de Kubrick) e Randle Patrick McMurphy em One Flew Over The Cuckoo's Nest (Milos Forman).  



Por fim II - A Missão, um adendo: 

À época do lançamento de JOKER li uma resenha crítica de Alexandr Dugin onde o filósofo russo descreve o protagonista do filme como uma figura 'repulsiva' e 'reaccionária'. Tal juízo, muito embora a meu ver esteja de todo equivocado, faz todo sentido no âmbito do quadro referencial de alguém como Dugin. 

Explico.

A verdade é que o ilustre autor de A Quarta Teoria Política não dispõe do 'instrumental' necessário para compreender em profundidade o ethos do Coringa. E isso ocorre por uma razão muito simples:  tais subsídios não são de ordem conceitual, teórica, mas sim de natureza psicológica, existencial. Um cidadão russo de quase 60 anos, que portanto cresceu e se formou sob o período soviético, não possui a experiência concreta da esquizofrenia crônica de nossas sociedades do espetáculo hipercapitalista. Destarte, não tem como compreender, 'sentir' visceralmente que, no 'coração das trevas' do ocidente contemporâneo, a figura do palhaço pode ser, sim, um agente revolucionário. Há no filme uma frase particularmente emblemática que sintetiza tudo isso: 

"I used to think that my life was a tragedy, but now I realize, it’s a comedy."

É disso que se trata: a vida na Sociedade do Espetáculo se transformou numa ciclópica piada, numa caleidoscópica palhaçada.  Se calhar tão somente o 'Grão-Jogral' pode interpretá-la corretamente, decifrar corretamente seus alucinados arcanos. E Dugin, que cresceu num contexto completamente diferente, e hoje vive numa sociedade que ainda mantém certo grau de sanidade, provavelmente não é capaz de entender isso.


*


Enfim, putada, é isso.

segunda-feira, julho 11, 2022

Farsa surrealista y Anarquia: a propósito do Walerian Borowczyk

Alphonse van Worden - 1750 AD 






Ah os anos 80 e seus indefectíveis cult movies, circulando entre cenáculos esotéricos de cinéfilos exaltados em abomináveis fitas VHS piratas, a partir de videolocadoras igualmente suspeitas... 

Pois bem: presença cativa nesta plêiade era o clássico do cinema libertino-libertário CONTES IMMORAUX (1973), do polaco exilado em França Walerian Borowczyk.  É talvez o filme que melhor ilustra a definição cunhada para o diretor por um crítico da Cahiers du Cinema: “trata-se de um gênio que por acaso também era pornógrafo”.  C/ suas composições visuais sempre inventivas e amiúde requintadas, até mesmo suntuosas, a obra mais famosa do cineasta polonês é de fato arte fílmica da melhor qualidade a serviço da velha e boa causa da sacanagem, e impressionou imenso este vosso então ainda jovem irmão d'armas.  

O dado concreto é que desde então fiquei c/ vontade de conhecer melhor a trajetória deste peculiar realizador, mas seja lá porque cargas d'água tão somente este ano vim a fazer isto, ao inadvertidamente topar com um generoso acervo de obras de Borowczyk à disposição no salvífico y civilizatório Mubi. 

C/ efeito, a messe é farta y variada, incluindo desde seus fascinantes experimentos em stop motion (curtas que prenunciam a estética grand-guignolesca que o tcheco Jan Švankmajer imprimiria depois ao formato) aos sempre controversos longas, obras como LA BÊTE (1975), BLANCHE (1972) e GOTO L'îLE D'AMOUR (1969). 

E d'entre estes últimos o destaque vai inelutavelmente para o desconcertante GOTO, uma alegoria política em compasso de farsa surrealista. Conceitualmente falando, é como se o Roussell de Locus Solus se inspirasse no Das Schloss de Kafka para compor uma peça satírica de cunho anarquista, acrescentando aqui e ali à receita algumas boas pitadas de Buzzatti e Potocki. Em termos de linguagem cinematográfica, por seu turno, Borowczyk se calhar até surpreendentemente retroage algumas décadas e evoca o chamado ‘realismo poético’ do cinema francês pré-Nouvelle Vague / II Guerra Mundial, reivindicando o insigne legado de figuras como Marcel Carné, Jean Renoir, Georges Franju etc. Assim sendo, oferece ao espectador um estimulante contraponto entre o caráter insólito da narrativa e a sóbria, rigorosa elegância formal da filosofia estética; sábia e salutar contraposição, desafortunadamente ausente, vale dizer, em obras ulteriores do cineasta. De resto, destaquemos as excelentes atuações de Guy Saint-Jean no papel de Grozo, o ambicioso marginal que metódica e implacavelmente subverte a ordem constituída na ilha; o célebre Pierre Brasseur encarnando Goto III, o malfadado soberano; e sobretudo Fernand Bercher, esplêndido como um excêntrico e ‘nefelibático’ mestre-escola. 



O peculiar cinema de Jacques Rivette - II


Como se fora uma adaptação teatral d'um romance de piratas de Rafael Sabatini encenada pelo Living Theatre sob a batuta de Antonin Artaud, c/ trilha sonora de Giacinto Scelsi executada pela Third Ear Band; ou então uma versão particularmente experimental de clássicos hollywoodianos do cinema de aventura como Sea Hawk ou Captain Blood (por sinal criações saídas originalmente da pena de Sabatini), em compasso de happening surrealista. 

Com efeito, não é por acaso que Jacques Rivette concebeu este NOROÎT - UNE VENGEANCE (1976) como uma espécie de desdobramento / sequência de seu filme anterior (DUELLE, do mesmo ano), ambos formando a primeira metade d'uma tetralogia que infelizmente jamais seria completada: Scènes de la Vie Parallèle. De fato, trata-se em tudo y por tudo d'um universo PARALELO, onde tanto as convenções tradicionais da mise-en-scène cinematográfica y teatral quanto os cânones habituais da estética fílmica são completamente abolidos / subvertidos. O consenso crítico, vale dizer, costuma apontar Jean-Luc Godard como o mais vanguardista entre os cineastas da Nouvelle Vague, mas hoje estou cada vez mais convencido de que este galardão deveria ser atribuído a Rivette.  

O enredo é uma livre adaptação d'uma clássica tragedy of blood do teatro jacobita inglês (The Revenger's Tragedy / 1606), peça de autoria até hoje controversa (alguns especialistas atribuem a Thomas Middleton, outros a Cyril Tourneur), mas você só reconhecerá a fonte caso seja efetivamente um scholar na matéria, tenha certeza. Diria eu, contudo, que o filme de certa maneira evoca / reverbera outros idiomas dramáticos, sobretudo as escolas japonesas do Noh e do Kabuki, referência que fica particularmente evidenciada no magnífico número final, um hipnótico bailado / baile à fantasia, eivado de ressonâncias esotéricas e alusões mitopoéticas à tradição helênica. 

Isto dito, não me furto a apontar outra possível fonte de inspiração: as Four Plays For Dancers (1921) de W.B.Yeats, obra-prima do teatro de vanguarda criminosamente esquecida na atualidade. Igualmente tributária das tradições teatrais nipônicas, esse quatuor de peças do grande poeta irlandês se estrutura como uma série de  intensos tableaux vivants, onde a trama é contada muito mais através dos números musicais e de balé do que propriamente por meio dos diálogos, assim como ocorre em NOROÎT. Aliás, mais do que precisamente uma trama, o que temos em ambos os casos afigura-se muito mais como conjuração d'uma atmosfera, d'uma galáxia de evocações y cavilações oníricas. 

Agora, nem tudo são flores: há cenas y sequências de tal modo aleatórias y gratuitas que resulta praticamente impossível o espetador não se ver assaltado por uma recorrente impressão de... mistificação. Se bem que... pensando melhor, no fundo isso é até bom... explico: este vosso confrade chegou a um estágio como espectador y ouvinte (literatura é outro papo, obedece a outros parâmetros) em que a circunstância de 'gostar' ou não de um filme, uma peça de teatro, um disco já não é o mais importante: importa antes o assombro, a perplexidade, o espanto, o pasmo, até mesmo a consternação - caleidoscópio de sensações que NOROÎT indubitavelmente suscita a mancheias.

Por fim, como bonus track, registro que a obra é protagonizada por lady Geraldine Chaplin, uma de minhas três atrizes favoritas em todos os tempos ao lado de Renée-Jeanne Maria Falconetti e Emmanuelle Riva, o que por si já é suficiente para tornar qualquer filme pelo menos digno de atenção.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros 

O peculiar cinema de Jacques Rivette - I


 

Leni (Rainha da Noite): oh tu, Filha do Sol, que de tão longe atacas! Eu desafio-te!

Viva (Rainha do Sol): oh tu, Filha da Lua, destruidora de cidades! Eu desafio-te.

[em turnos]

Viva: na primeira lua cheia da primavera...

Leni: no crepúsculo...

Viva: entre a noite e o dia, no Jardim das Sombras...

Leni: sob a Árvore dos Ventos do Noroeste, aguardarei por ti.

Viva: também eu... aguardarei por ti.

__


Jacques Rivette sempre foi o mais idiossincrático cineasta da ala mais 'experimental', digamos assim, da nouvelle vague francesa (o que não é dizer pouco, já que estamos a falar de figuras tais como Godard, Resnais e Chris Marker, por exemplo).

E hoje gostaria de dizer algumas palavras a propósito d'uma de suas criações mais desconcertantes: DUELLE - UNE QUARANTAINE (1976).

O cineasta concebia inicialmente o filme como a primeiro capítulo de um ambicioso ciclo em quatro partes: Scenes de la Vie Parallelle. O título não poderia ser perfeito: DUELLE de fato mergulha o espectador numa dimensão paralela, um mundo onírico y fantasmático, um labirinto de símbolos y enigmas, que a um só tempo hipnotiza y inquieta.  

A trama, eivada de significados místicos, ressonâncias esotéricas  e crípticas alusões alquímicas y astrológicas, poderia ser resumida da seguinte maneira: numa Paris de todo despida de clichês turistoides y magnificamente bem fotografada, temos o sempiterno y mortal conflito entre duas entidades cósmicas que a cada ano encarnam em avatares humanos durante 40 dias no inverno: a Rainha da Noite e a Rainha do Sol. Ambas desejam encerrar essa espécie de samsara e permanecer para sempre na Terra; para tanto, precisam tomar posse d'um arcano artefato de poder há séculos perdido: uma joia chamada Fada Madrinha. E nesse duelo, como o próprio título do filme aponta, manipulam céus y terras, mulheres y homens, empregando os astuciosos expedientes de sedução y sugestão.  

Uma sinopse como essa à primeira vista parece pressupor toda sorte de efeitos visuais, trucagens etc. tal, não é mesmo? Pois nada poderia estar mais longe da verdade: DUELLE é um filme espartanamente despojado de quaisquer artifícios nesse sentido. C/ efeito, a maneira como Rivette constrói seu universo paralelo inteiramente através das sutilezas do mise-en-scène, da hermética geometria de gestos y olhares, da polifonia polissêmica de seus diálogos.

De resto, o desempenho dos atores é uniformemente magistral, mas eu não poderia deixar de sublinhar a sinistra y sibilina elegância de Juliet Berto, eterna fêmea-serpente das artes fílmicas gaulesas, como Reine de La Nuit.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros 

quinta-feira, julho 07, 2022

A propósito da potência evocativa da imagem fotográfica

Alphonse van Worden - 1750 AD 




Meus mui estimados irmãos d'armas, savdações! 


Para vossas senhorias entenderem a que ponto pode chegar a influência de uma simples fotografia, o quão profundamente ela pode plasmar aspectos fundamentais da consciência d'um indivíduo, se calhar até mesmo seu horizonte existencial... 

Pois bem: resulta sumamente difícil transmitir aos senhores  do que representou para mim, então um menino de 8 anos, a matéria de capa da Revista Manchete em 1979 sobre a Revolução Iraniana, mormente as fotos de página inteira exibindo o Ayatollah Khomeini em 1979, tendo apenas 8 anos de idade. Com seu a um só tempo hierático, imponente y ameaçador hábito negro, a copiosa y venerável barba branca, ele parecia mais um personagem saído das páginas do SENHOR DOS ANÉIS do que qualquer outra coisa, como se fora uma espécie de releitura de Saruman. E como se não bastasse o impacto visual, a estrondosa, estrepitosa, avassaladora manchete, praticamente uma declaração de guerra ao UNIVERSO, de todo irresistível para um garoto de imaginação feérica como a minha:


AIATOLÁ: UM FANÁTICO CONTRA O MUNDO


Trata-se praticamente d'uma variante do célebre lema de S. Atanásio de Alexandria, um dos mais insignes teólogos y doutores da Igreja: SE O MUNDO FOR CONTRA A VERDADE, ENTÃO ATANÁSIO SERÁ CONTRA O MUNDO! Ora pois: como alguém que tem a audácia, a bravura, a intrepidez, a desassombrada convicção, o "admirável coração tranquilo" de se levantar contra o próprio MUNDO, poderia ser 'ruim' sob qualquer ângulo ou hipótese?! Inconcebível!

Enfim, foi algo que nunca mais me esqueci, uma imagem que ficou impressa em minha mente, em meu subconsciente, e é c/ absoluta certeza a fonte originária de todo o meu interesse pelo país e pelo processo revolucionário iraniano.