quinta-feira, março 01, 2007

Notas de reflexão crítica IV - Duchamp, Warhol e o vazio da arte contemporânea

Alphonse van Worden - 1750 AD






- O anarquismo estético de Marcel Duchamp, assim como o terrorismo conceitual de figuras como Tristan Tzara e Marinetti, desempenhou uma saudável função dessacralizadora na época em apareceu, 'desarrumando o arrumado' e desafinando o coro dos contentes e satisfeitos à época com os classicismos de segunda mão herdados do século XIX. Isto posto, é mister concluir que o problema não radica tanto nos criadores de uma determinada perspectiva, mas sim no epigonismo estéril dos discípulos: destarte, tanto epígonos quanto exegetas extrapolaram os elementos circunstanciais, portanto temporal e espacialmente localizados, e que deram substância e pertinência a movimentos como o dadaísmo, transformando-os em balizamento e objetivo final para a arte como um todo. A conseqüência deste processo nefando é o elogio acrítico e alienante da desconstrução como nec plus ultra da excelência artística, até que nada mais reste senão terra arrasada para ser 'dessacralizada'.

- Malgrado tenha desempenhado um papel interessante à partida, Duchamp exerceu, ao fim e ao cabo, influência das mais nefandas no quadro da sensibilidade estética ocidental. Seu deletério legado é o grande responsável pelo esvaziamento progressivo da carga simbólica que sempre esteve embutida na obra de arte, isto é, da obra de arte como instância capaz de evocar toda sorte de associações e ressonâncias, tanto de cunho emocional quanto intelectual.

- Ao urdir objetos 'artísticos' destituídos de qualquer capacidade evocativa, cuja finalidade esgota-se em si mesmo, entidades unidimensionais em sua horizontalidade estéril e rasa, Duchamp indiretamente gestou Warhol, Beuys e todo o lixo tóxico de 'instalações' e 'propostas' que infestam as galerias no cenário hodierno. Podemos asseverar, pois, que o urinol de porcelana que o artista francês designa como Fontaine, enviando-o, em 1917, a uma exposição de artistas independentes, é o receptáculo simbólico perfeito para abrigar seu ominoso legado...

- Se antes tínhamos um Botticelli transfigurando o platonismo em celestial lux aeterna; um Brueghel convertendo o misticismo pietista em fantasmagoria pictórica; ou um Goya traduzindo a inteligência crítica iluminista em arte libertária, temos hoje, pós-Duchamp, uma espectral legião de espertalhões e/ou idiotas prepotentes reverberando acriticamente um constrangedor vazio de significados disfarçado de 'desconstrucionismo', 'pós-modernidade' ou quaisquer outras estultícias do mesmo jaez.

- Hoje vemos, por exemplo, manifestações de arte abstrata em qualquer canto, até mesmo em banheiros e salas de espera. Isto ocorre justamente pelo facto de que o que outrora foi transgressão, hoje se converteu em mero 'transgressismo', ou seja, foi perfeitamente diluído e absorvido pela mediocridade do gosto médio; desta maneira, poderíamos afirmar que o abstracionismo é atualmente o exato equivalente plástico da tal música 'brega-flashback-new-age-musak-dor-de-cotovelo'.

- Andy Warhol, um dos mais patéticos herdeiros de Duchamp, sob pretexto de ‘desmascarar’ a arte, mostrando-a como uma mercadoria a mais na nossa sociedade de consumo, tão somente mistificou hordas de basbaques pretensiosos e auferiu fortunas com sua 'transgressão' mercadológica ('merDAcológica' também!) e oportunista. Há que propugnar não um retorno esquemático ao passado, mas sim o advento de horizontes artísticos que voltem a valorizar a produção de sentido, a ampla capacidade de evocar universos significativos; uma arte, enfim, que não seja apenas mera masturbação autorreferencial ou expediente ladino para arrancar dinheiro de burgueses deslumbrados.

Heldon: un cauchemar des dimensions electroniques



Esta genial banda francesa apresenta, creio eu, uma das trajetórias mais instigantes na história do avant prog. Assim como ocorre no King Crimson (grande influência para a formação gaulesa que ora abordamos), o Heldon é, de facto, a encarnação das idéias musicais de um guitarrista, o francês Richard Pinhas, refletindo, pois, em suas diferentes fases e formações, as obsessões e interesses de seu mentor. Desse modo, em sua primeira fase entre 1974 e 1975, representada pelos álbuns Electronique Guérilla (1974), Heldon II: Allez Teia (1975) e It's Always Rock and Roll (1975), a banda se caracteriza por tapeçarias eletrônicas minimalistas e hipnóticas, no esteio do trabalho de Fripp/Eno em No Pussyfooting (1973), do seminal Kluster e dos primeiros discos do Tangerine Dream. Predominam, pois, guitarras 'tratadas' por uma infinidade de dispositivos eletrônicos, bem como por texturas ambient noise geradas a partir de moogs, mellotrons, sintetizadores VCS3 e ARP. Confesso não ter lá grande interesse por esses álbuns, que, malgrado muito bem realizados, soam-me um pouco tediosos. Em 1976, contudo, Pinhas opera uma guinada significativa, tornando o som de sua banda mais ameaçador, claustrofóbico e pesado. O primeiro exemplar dessa metamorfose é a monumental Perspective IV, épico que encerra Heldon IV: Agneta Nilsson, com a fuzilaria metronômica e marcial de Coco Roussell e o baixo ultra-saturado de Alain Bellaiche incrementando as modulações guitarrísticas urdidas por Pinhas. Não obstante, a transformação só se faria completa com o álbum em tela na presente resenha, o estraçalhante Heldon V: Un Rêve Sans Conséquence Spéciale, também lançado em 1976, onde temos uma espécie de zeuhl 'crimsoniano' eletrônico ultra-agressivo e alienígena, com a participação especialíssima de notórios 'magmóides' como Janick Top e François Auger, respectivamente no baixo e na bateria, fornecendo uma sólida base rítmica para Pinhas estremecer o Universo com sua guitarra pervertida por toda sorte de distorções eletrônicas. Uma atmosfera de ominosa paranóia industrialista permeia todo o disco, que se caracteriza por uma produção 'suja' e ruidosa, elevando à enésima potência o ethos agressivo das composições. Marie Virginie C, faixa de abertura, sem dúvida uma das peças mais emblemáticas em toda a trajetória da banda, estabelece a atmosfera que dominará o álbum: trata-se d'uma espécie de KC viciado em heroína, militando na polícia secreta de um Estado totalitário intergaláctico; Elephanta, por seu turno, é um caótico tiroteio percussivo, algo como Can running the voodoo down, demonstrando o extraordinário talento de François Auger nas baquetas; seguem-se dois espartanos exercícios de eletrônica minimal ao estilo da primeira fase de Pinhas (Perspective IV Ter Muco e MVC II), levados a efeito, não obstante, com muito mais punch e intensidade que outrora, o que os torna sobremaneira fascinantes; temos, por fim, em Toward the Red Line e Marie et Virginie Comp (versão ao vivo da faixa inicial), mais dois trovejantes maelstrons de eletricidade cyberpunk e percussões em maximum overdrive mode ON, coroando à perfeição um disco verdadeiramente memorável. A dinâmica consagrada em Heldon V prosseguiria nos álbuns seguintes, Heldon VI: Interface (1978) e Heldon VII: Stand By (1979), que expressam o estágio final de maturação do novo Heldon, onde o grupo trabalha de forma exemplar as sonoridades ambient da fase inicial, integrando-as organicamente ao contexto de uma sonoridade sombria e turbulenta. 

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 Ten. Giovanni Drogo 

 Forte Bastiani 

 Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros