segunda-feira, maio 29, 2023

Brevíssima nota sobre a grandeza das nações


Alphonse van Worden - 1750 AD



Li o seguinte comentário algures na bravia selva internética: 

"Roma não foi amada por ser grande, foi grande por ter sido amada"

Francamente, isto é um disparate, não faz o menor sentido. Trata-se d'uma chorumela sentimental, uma mera patacoada romântica.

Roma foi grande por ter sido uma sociedade organizada, bem governada, disciplinada, erigida sob a égide das grandes virtudes cívicas  - AVCTORITAS, GRAVITAS, IVSTITIA, DIGNITAS, PIETAS, SEVERITAS, VERITAS, FIRMITAS, INDVSTRIA, FRVGALITAS etc. -, predicadas por sábios e probos varões como os juristas Papianus e Ulpianus, o imperador Marcus Aurelius etc. Tais foram os alicerces da magnificência, da grandeza de Roma. E é tão somente a partir do pertinaz cultivo de tais virtudes que nasce o verdadeiro patriotismo, a energia vital que constrói impérios e conquista continentes, não essa patuscada de pacóvios, esse nacionalismo de pacotilha, de arquibancada de estádio de futebol, bloco de Carnaval ou comício / manifestação de demagogo mequetrefe.  

Enquanto não nos excedermos no exercício das grandes virtudes, jamais construiremos uma pátria digna de ser verdadeiramente amada. Urge começarmos por nós mesmos, e o princípio está no reconhecimento franco, sincero, até mesmo brutal, de nossos vícios e fraquezas. De nada adiantará dourar a pílula e fazer o elogio fátuo de quimeras e devaneios.

domingo, maio 28, 2023

A propósito de Desiderivs Erasmvs Roterodamvs, um tardio y merecido tributo


 

Gostaria hoje de corrigir uma flagrante, pertinaz injustiça. Trata-se de render preito y homenagem a um autor que nunca mencionei em qualquer texto, mas que sob certos aspectos exerceu influência determinante em minha trajetória intelectual: Desiderivs Erasmvs Roterodamvs (1466 - 1536), mais conhecido entre nós como Erasmo de Rotterdam, o famígero teólogo, reformador religioso e filósofo neerlandês; e analogamente celebrar o papel de duas mulheres incríveis nesta história: minha estimada profa. Marilena, de quem fui aluno de História Geral durante todo o ginásio e colegial; e minha falecida e amada mãe. 

Com efeito, foi por intermédio da referida mestra que tive pela primeira vez ciência do insigne humanista batavo, numa aula em que ela discorreu sobre os grandes pensadores do período renascentista na Europa, se bem me recordo na quinta série do curso ginasial. Sempre nutri uma forte atração por tudo aquilo que d’alguma forma representa um ‘ponto fora da curva’, e a peculiar y carismática figura de Erasmo, tingida por todos os matizes d’uma personalidade essencialmente flamboyant e indômita, bem como sua rocambolesca trajetória, eivada de peripécias y controvérsias, inevitavelmente suscitaram minha curiosidade; como se não bastasse, o título de sua obra capital era de todo irresistível para um menino como eu: STULTITIAE LAUS / MORIAE  ENCOMIUM, ou seja, o mítico ELOGIO DA LOUCURA. Fazer a apologia da ‘loucura’... ou em outras palavras, remar contra a maré, desafinar o coro dos contentes... evidentemente aquilo fora feito para mim! 

O fato é que já naquele mesmo final de tarde, ao encontrar minha progenitora na saída da escola, bombardeei a pobre senhora c/ mil e uma informações sobre as aventuras y desventuras de meu novo herói, e obviamente pedi a ela o livro de presente. E era justamente em contextos como este que tanto a generosidade quanto o fino descortino psicológico y intelectual de mamãe ficavam evidenciados: não opôs qualquer óbice à minha demanda, um reles frangote de apenas 11 anos, e dias depois lá estava eu c/ o livro nas mãos (uma modesta edição portuguesa daquelas coleções de bolso da Europa-America, não obstante esplendidamente bem traduzida, e que preservo c/ muito carinho até hoje). E o resto é história. 

Pois bem: relendo a obra esta semana, após um considerável hiato de quatro décadas, pude compreender c/ plena exatidão as razões pelas quais este desconcertante ensaio incendiou a imaginação daquele impressionável infante d’outrora; entre o homem feito e Erasmo, contudo, são muitos e profundos os pontos de divergência, e se calhar devo começar por eles. 

Para além de ter sido um dos mais notáveis inspiradores da Reforma (mormente d’uma perspectiva mais moderado no seio deste processo, tal como o anglicanismo, já que nosso autor não via c/ bons olhos os excessos farisaicos do luteranismo), há que frisar ter sido Erasmo um acerbo paladino do Estado laico e do secularismo d’uma maneira geral, e também sob vários aspectos um precursor do pensamento liberal; e tudo isto mesmo tendo permanecido nas fileiras da Igreja até o fim de seus dias, registre-se. De qualquer maneira, nada poderia estar mais longe das convicções de alguém como eu, assume francamente a defesa do absolutismo monárquico, do cesaropapismo e do direito divino dos reis... 

Mas ora retornemos aos idos da década de 80, para enfim tratarmos do que tanto impressionou aquele jovem mancebo. 

À partida ressalte-se o óbvio ululante: que magnífico escritor era Erasmo de Rotterdam! Manejando c/ pleno conhecimento de causa e assombrosa facilidade todo o arsenal retórico y literário da tradição clássica greco-romana (que muito embora fosse patrimônio comum de todos os eruditos de seu tempo, nem sempre era trabalhada c/ tanta sutileza e elegância), o excelso teólogo cria um texto ágil, exuberante, pejado de metáforas surpreendentes e audazes alegorias, c/ um resultado por certo jocoso, até mesmo hilariante, mas s/ jamais perder o caráter de  densa reflexão filosófica. Sendo das belas letras um entusiasta desde muito cedo, era impossível, portanto, não me ver hipnotizado por uma obra como essa.

Todavia, e aqui chegamos ao âmago da questão, foi o que Paul Valéry denominaria de ‘atitude central’, tanta na obra quanto no itinerário de vida de Erasmo, o que efetivamente me fascinou outrora, e certamente até hoje me arrebata: uma inteligência essencialmente crítica, analítica, a serviço d’um espírito altivo, combativo, sobranceiro, que não está disposto a fazer concessões torpes. Suponho que d’algum modo estes traços já correspondiam à minha própria índole, a uma disposição d’alma já atavicamente presente em mim; não obstante, outrossim estou convicto de que as boas leituras não são fundamentais somente para a formação intelectual do indivíduo, mas também para a formação do caráter. Se hoje sou ou pelo menos me empenho em ser um homem de espírito independente e altaneiro, disposto a desafinar o coro dos contentes e a não hipotecar sua dignidade em nome de compromissos espúrios, quero crer que a leitura do esplêndido libelo de Erasmo naquele já tão remoto ano de 1982 n’alguma medida deu lá seu providencial contributo.   



 

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros