sexta-feira, março 29, 2024

Jacques Rivete - IV: OUT 1, um Filme TOTAL





"O filme engole tudo e finalmente se autodestrói" 

Jacques Rivette


"Treze homens imbuídos pelo mesmo sentimento, todos dotados de uma grande energia para serem fiéis à mesma ideia, muito prontos para cometerem traição, mesmo que seus interesses fossem opostos, muito profundamente políticos para dissimular as ligações sagradas que lhes unem, muito fortes para se colocarem acima de todas as leis, muito ousados para tudo empreender, e muito felizes para ter quase sempre sucesso em seus desígnios (...). Enfim, para que nada escape à sombria e misteriosa poesia desta história, estes treze homens continuam desconhecidos, ainda que todos tenham realizado as mais bizarras ideias que sugere à imaginação o poder atribuído aos Manfredo, aos Fausto, aos Melmoth; e todos hoje estão divididos, dispersados, ao menos."

Honoré de Balzac, na introdução à trilogia de romances Histoire des Treize (1833-39). A tradução é de Paulo Rónai. 


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Depois de CÉLINE ET JULIE VONT EN BATEAU, DUELLE (UNE QUARANTAINE), NOROÎT, MERRY-GO-ROUND e LE PONT DU NORD, creio que estou pronto para dizer uma ou duas coisas a propósito da Grand Œuvre, o filme-matriz, a magna epopeia, a Odisseia, a Comédie Humaine e a Recherche de Jacques Rivete (e em verdade a galáxia semiótica, o quase infinito labirinto de referências cruzadas y intersecções simbólicas do cineasta de facto abarca tudo isso y muito mais): 

OUT 1: NOLI ME TANGERE (1971). 

Muito embora convenientemente divididas em oito 'capítulos', são quase 13 horas de filme (existe uma versão alternativa de 'apenas' 4 horas chamada OUT1: SPECTRE, mas não falarei dela), resultando numa obra que sob múltiplos y profundos aspectos pertence a outro tempo, se calhar até mesmo a outra dimensão. Assistir hoje a um filme de Rivette - notadamente à sua obra máxima - significa, estou certo disto, ter a disposição e até mesmo a coragem de mergulhar profundamente numa realidade alternativa, de drasticamente se desconectar da própria dinâmica histérica, estéril y espasmódica de nosso tempo presente, tão avesso à perplexidade metafísica, à (anti)lógica do sonho e ao paradoxal destino dos magnetizadores do fogo dos deuses... c/ efeito, é percorrer as sendas de um universo paralelo, mesmo que somente por algumas horas. É, em suma, um ato... 'POLÍTICO', para usar um chavão em voga, mas que no contexto tem razão de ser. Nesse sentido, penso ser cabível uma advertência preliminar: os habituais detratores do cinema francês terão - com absoluta justiça - todos os motíveis possíveis e concebíveis para simplesmente execrar o filme. Pois em OUT 1 TODOS os vezos estilísticos, os tropos narrativos, os maneirismos, estereótipos y clichês que historicamente identificam a sétima arte nas terras gaulesas são levados às últimas y mais delirantemente extremas consequências. 

A quem se dirige, portanto, este catedralesco opvs rivettiano? Diria eu que substancialmente a cinco grupos de espectadores - que podem ou não se interseccionar:


- cultores de teorias da conspiração, sociedades secretas, seitas, ordens iniciáticas etc;  

- obecados por simetrias, paralelismos, correspondências, regularidades, padrões, coincidências; e, ao mesmo tempo, também por amor à simetria, a seu reflexo invertido: falhas, erros, anomalias, lacunas, panes;  

- amantes de enigmas, charadas, criptogramas, anagramas, lipogramas, palíndromos, alusões cifradas, paródias, paráfrases, colagens  etc. etc. etc. à guisa de jogos semióticos / metalinguísticos aplicados à literatura (e por extensão a qualquer outra arte), num arco que poderia ir de, digamos, Lewis Carrol a um autor contemporâneo como Thomas Moyniham, passando por Edwin Abbott, Macedonio Fernández, Borges, os autores do Grupo Oulipo, Milorad Pavic etc.; 

- apaixonados pelo teatro, sobretudo aqueles profissionalmente envolvidos com ele;

- aficcionados pelos universos literários de Balzac e/ou Proust.   

A crítica cinematográfica, quase sempre lamentável, costuma priorizar um sexto grupo: os inconsoláveis órfãos da contracultura, do naufrágio de 68. Mas é a meu ver d'uma associação preguiçosa, baseada em conexões meramente circunstanciais. 

Muito bem, este então seria o público-alvo, basicamente. Mas enfim, de que se trata o filme? Tentemos agora decifrar a esfinge. 


OUT 1 é antes de qualquer outra coisa uma  colossal, ciclópica mistificação; e aqui emprego tal epíteto da forma mais elogiosa que se possa imaginar, por incrível que pareça. Trata-se, portanto, d'uma grande impostura, uma meticulosamente concebida, minuciosamente lapidada y milimetricamente executada impostura. Pois que é toda conspiração senão uma farsa, um logro? E analogamente, toda sociedade secreta, seita, ordem iniciática, senão expedientes mais ou menos elaborados / argutos de engano y ilusão? E aqui não importam, acredito eu, as linhas de demarcação entre fantasia e realidade, sociedades secretas fictícias (no caso os Treize e os Dévorants dos romances de Balzac) e reais (os Compagnons du Devoir, algo como uma maçonaria 'nacional' criada em França no Medievo). E mais, significativa e substancialmente mais: que é a própria EXISTÊNCIA, ao fim e ao cabo, senão "a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing", como proverbialmente definiu o Bardo de Stratford-Upon-Avon? OUT 1 ilustra esta devastadora verdade de modo insofismável, categórico, definitivo: gestos e olhares furtivos; palavras sussurradas, plenas de mistério, medo, dúvida, perplexidade; movimentos febris, atos impensados, rompantes intempestivos, que podem levar até mesmo à morte; encontros, desencontros, reencontros; começos, recomeços, ciclos, desenlances... Para quê? Não se sabe; os personagens / atores também não sabem. E não hesito em afirmar: tampouco sabem os responsáveis pelo roteiro e pela direção, nomeadamente Rivette e sua colaboradora Suzanne Schiffman. E nem ninguém saberá. Jamais. Não há ordem redentora e 'tutto nel mondo è burla'. 

Mas esta é apenas a primeira de muitas, múltiplas camadas. OUT 1 também é um exaustivo, escrupoloso y assombrosamente metódico exercício de simetria, digno das melhores tradições francófonas do ostinato rigore valeryano. À exceção do episódio inicial, todos os demais obedecem essencialmente à mesma estrutura: temos na abertura um subtítulo que se refere respectivamente ao primeiro e último personagens que aparecem em cena naquele capítulo (De Lili à Thomas, De Thomas à Frédérique); um punhado de stills exibindo cenas do episódio anterior; uma sequência em P&B de um minuto recapitulando o desfecho do capítulo antecedente antes do novo episódio ter início. E que não se conclua precipitadamente que paralelismos y regularidades se restringem a esse plano por assim dizer mais 'epidérmico'. Pelo contrário: é curioso perceber como cada uma das partes de OUT 1 obedecem a uma dinâmica mais ou menos similar. Cenas y sequências de natureza semelhante tendem a se repetir especularmente - aliás é frequente o recurso a longos takes com emprego de imagens refletidas em espelhos - episódio após episódio, sempre com discretas, muito embora significativas variações ditadas pela evolução da narrativa, o que gera um contraditório y desconcertante efeito de estranhamento / reconhecimento. E da simetria emerge a assimetria: com muita sutileza e engenho, Rivette vai gradativamente acrescentando à matéria fílmica uma série de glitches visuais e sonoros - são diálogos reproduzidos em reverse, ficando assim incompreensíveis; fade-outs abruptos; shots repetidos aleatoriamente; imagens desfocadas deliberadamente etc. E qual seria o propósito? Demonstrar quão enganoso e ilusório é todo o arcabouço de simetria que nos foi tão cuidadosamente apresentado? Pode ser... 

Ora passemos ao que caracterizei como "a galáxia semiótica, o quase infinito labirinto de referências cruzadas y intersecções simbólicas". Aqui Rivette está em seu elemento, e pode dar livre curso tanto à sua vasta erudição quanto à sua sempre surpreendente capacidade de estabelecer as mais inauditas conexões, interconexões, associações y alusões. Em OUT 1 o cineasta lança mão precipuamente de duas fontes textuais: a trilogia de romances HISTOIRE DES TREIZE de Balzac (concentrando-se mormente no FERRAGUS, CHÉF DES DEVORANTS) e na obra-prima do nonsense que é o poema proto-surrealista THE HUNTING OF THE SNARK (1876), de Lewis Carroll. É a mão do mestre, sem sombra de dúvidas: é simplesmente brilhante a maneira como Rivette insere as citações na enredo, liga os pontos y conexões e trabalha todo um vertiginoso jogo de possibilidades em termos de desdobramentos conceituais e referências cruzadas. É a nebulosa de um KAOS rigidamente organizado que se desdobra continuamente, agregando mais e mais dimensões. Tem-se, por exemplo, se não me engano nos capítulos 5 e 6, um par de memoráveis sequências onde os personagens peregrinam pelas estações de metrô de Paris em busca d'um colega que desapareceu misteriosamente. O modo como o mise-en-scéne é feito remete inequivocamente à Teoria da Derive / Errância situacionista, com suas elucubrações sobre os efeitos psíquicos que os espaços urbanos eventualmente poderiam exercer sobre seus habitantes, uma psicogeografia física, econômica e política da memória afetiva dos moradores das grandes metrópoles.      

Prosseguindo: OUT 1 é outrossim um panegírico, um hino em louvor, uma eloquente e passional declaração de amor ao teatro, sobretudo à complexa, labiríntica, tortuosa trama de relações artísticas y afetivas entre atores, diretores e encenadores. Em quase todos os capítulos do filme temos extensas, por vezes penosamente longas sequências - assim imagino, pelo menos, para quem não for do meio, ou não tiver, tal como eu, interesse didático no tópico - dedicadas a exercícios de improvisação teatral entre os elencos das duas montagens presentes no enredo - SETE CONTRA TEBAS e PROMETEU ACORRENTADO, ambas tragédias de Ésquilo. Para quem é do 'ramo', todavia, tais momentos podem ser instrutivos em vários níveis: a) uma espécie de mostruário de diferentes escolas / técnicas de interpretação teatral do século XX - Artaud, Meyerhold, Kazuo Ohno, Peter Brook, Grotowsky, Living Theatre, Fluxus, todos pedem passagem; b)  um fascinante tour de force em termos do que poderíamos chamar de 'metalinguagem dramatúrgica', isto é, atores interpretando atores precisamente no momento em que estão exercitando os fundamentos da arte da interpretação teatral enquanto... atuam; c) a discussão do teatro como metáfora / microcosmo por excelência da própria sociedade, sobretudo da mecânica das relações interpessoais.  

Por fim, o tributo aos universos literários de Balzac e Proust. No que tange ao autor da COMÉDIE HUMAINE, penso que se calhar são desnecessários comentários adicionais. Mas há que sublinhar que OUT 1 também é a Recherche proustiana de Rivette, especiamente em dois aspectos: a relação quase que simbiótica, de íntima, profunda, dir-se-ia até mesmo mítica y mística identificação, entre os personagens e a paisagem geográfica e sentimental de Paris, ou seja, o amálgama eminentemente proustiano entre matéria, consciência e memória; e ainda algo que certa feita escrevi a propósito do já citado Macedonio Fernández, mas que se aplica exemplarmente a Proust: uma apologética, uma ética, um modus vivendi e uma defesa da dignidade última da arte em relação à vida.    

Filme-matriz; filme-conspiração; filme-mistificação; filme-simetria; filme-metalinguagem; filme-enigma; filme-exercício. Assim é a monumental obra-prima de Jacques Rivette. NOLI ME TANGERE, a expressão latina presente no subtítulo de OUT 1, poderia ser traduzida como 'não me toques'. São as últimas palavras que Jesus Cristo teria dito a Maria Madalena, quando ela O reconhece após a ressurreição. Ao que parece, a intenção do cineasta era mandar um recado a produtores e exibidores: não ousem retalhar / mutilar meu filme. Eu diria que há também uma mensagem subliminar endereçada aos temerários exegetas: não tentem interpretá-lo. Faz sentido: o esforço que aqui levei a efeito, malgrado meritório, é de certa maneira fútil y supérfluo perante um filme verdadeiramente caleidoscópico e multidimensional, quase infinito, sob tantos aspectos. Um filme que por si só, é preciso que se diga com todas as letras, já bastaria para colocar seu realizador nos mais rarefeitos planos do Olimpo cinematográfico.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros




O peculiar cinema de Jacques Rivette - III

Alphonse van Worden - 1750 AD




MERRY-GO-ROUND (Jacques Rivette / 1981, 160m) foi um fracasso tanto de crítica quanto de público. E muito embora eu tenha até gostado bastante do filme, posso perfeitamente entender o porquê: trata-se d'uma obra profundamente... bem, o melhor adjetivo que encontro é o termo em inglês 'infuriating'. 

Pois em verdade vos digo: raríssimas vezes assisti a um filme de tal modo labiríntico, 'esotérico', praticamente inextricável.  Projeto de retomada do cineasta após o de certo modo traumático encerramento da tetralogia 'Scènes de la Vie Parallèle' (da qual Rivette só completaria os dois primeiros capítulos - DUELLE e NORÔIT), MERRY-GO-ROUND se apresenta como uma espécie de filme policial noir ambientado neste universo paralelo.  Só para os senhores terem uma ideia do que estamos falando, o caráter notoriamente sibilino, dir-se-ia até mesmo hermético, das tramas de clássicos do gênero como THE LADY FROM SHANGAI (Orson Welles / 1947) ou KISS ME DEADLY (Robert Aldrich / 1955), parece em cotejo c/ a obra de Rivette tão singelo y linear quanto o roteiro de uma comédia de Adam Sandler - s/ qq demérito para estas obras-primas do cinema americano, saliente-se. Exemplo disso, vale sublinhar, é a solução adotada por Rivette para a infeliz circunstância de Maria Schneider, talvez a personagem central do filme, ter abandonado as filmagens: empregar a atriz Hermine Karagheuz para substituí-la, s/ todavia fornecer ao espectador qualquer pista ou indício disto, tanto assim que nos créditos ela é simplesmente identificada como 'l'autre'. 

Com efeito, se você compreende a arte cinematográfica como um veículo criado para contar histórias c/ início, meio e fim, um filme como este pode se transformar numa experiência simplesmente excruciante, verdadeiramente insuportável.  Não obstante, para aqueles que concebem o cinema como um dispositivo catalisador de atmosferas, lanterna mágica capaz de conjurar paisagens oníricas, sondar as sendas do inconsciente y peregrinar pelos páramos da irrealidade, do mundo imaginário, este desconcertante filme s/ dúvida pode ser uma jornada das mais estimulantes.   

A mise-en-scéne e a estrutura narrativa de MERRY-GO-ROUND são essencialmente fragmentárias y erráticas, no limite da arbitrariedade aleatória; nesse sentido, os primeiros 25, 30 minutos do filme, relativamente lineares e bem concatenados, funcionam talvez como uma armadilha para espectadores incautos / ingênuos. Um duo formado por um contrabaixista e um clarinetista pontua de quando em quando a ação c/ interlúdios de free improvisation, e estranhamente (ou se calhar emblematicamente) este porventura seja o ponto focal mais constante, o eixo dramático de sustentação mais sólido que Rivette concede ao espectador, o que a meu ver resulta fascinante e particularmente hipnótico, a música como fio condutor da dramaturgia. 

No desfecho de MERRY-GO-ROUND as irmãs protagonistas saem de cena, enquanto o amante / namorado e a elusiva 'outra' trocam sorrisos misteriosos num promontório sombrio, após um exasperante jogo de fuga e perseguição que perdura ao longo de todo o filme.  Qual a conclusão, a última mensagem, a solução definitiva final para este caleidoscópio de enigmas? Nunca saberemos, e acredito que nem mesmo Jacques Rivette alguma vez soube. A impressão que se tem é a de um imenso quebra-cabeças, por certo sugestivo e belo, mas onde estão faltando numerosas peças. É algo que indubitavelmente tem o condão de irritar a esmagadora maioria das pessoas, mas que para mim sempre foi y será fonte de inesgotável fascínio, até mesmo obsessão.



sexta-feira, fevereiro 09, 2024

Vargtimmen (1968) / Ingmar Bergman

 Alphonse van Worden - 1750 AD



A propósito do título, antes de mais nada.


VARGTIMMEN.

A 'Hora do Lobo'.

Uma arcana expressão nórdica para o horário que a maior parte dos grimoires medievais considera mais propício à celebração de pactos e invocação do... Diabo. Três horas da manhã, para ser mais exato.

E é precisamente o momento do dia em que o protagonista Johan Borg (magnificamente interpretado por Max von Sydow) se vê acossado / assaltado pelos espectros (imaginários?) de seu passado, ora convertidos numa legião de vampíricos avantesmas emergindo dos báratros abismais do inconsciente.

VARGTIMMEN (1968) é de certo modo um ponto fora da curva na trajetória de seu criador Ingmar Bergman. Trata-se essencialmente de um filme de horror. Um soturno y sombrio pesadelo gótico, não obstante carregado de humor negro y sarcasmo cruel - o que aliás corresponde ao universo estético que o cinesta sueco exalta neste filme: o fantasmagórico mundo do romantismo e do expressionismo alemães. C/ o acréscimo, vale dizer, de generosas doses de fantasia surrealista; aliás, se me permitem uma analogia extravagante, eu diria que o filme poderia ser descrito como a versão que um improvável Buñuel escandinavo eventualmente faria para o magnífico Vampyr (1932) de C.T. Dreyer.

Pois VARGTIMMEN é uma grande declaração de amor de Bergman ao que de mais augusto a arte germânica produziu, que ele aqui evoca através da delirante fábula gnóstica da Zauberflöte de Mozart; da magia onírica dos contos de Hoffmann em sua faceta mais noturna, inclusive recorrendo diretamente a dois célebres personagens do ficcionista prussiano - o arquivista Lindhorst e o maestro Kreisler; da pulsão de morte do expressionismo, com suas falanges de sombras espectrais, macabros duplos e marionetes em soirées alucinatórias (um aceno talvez ao mítico Schatten - Eine nächtliche Halluzination / 1920 , de Arthur Robison), seus sinistros espelhos e labirintos, admiravelmente reproduzidos pela fotografia de Sven Nyqvist.

Em VARGTIMMEN Bergman propõe ao espectador um mundo assombrado pelas 'emanações glaciais do além' de que falava Béla Balázs. É o incerto, instável y inefável universo do homem que já não vê, mas tem VISÕES. É, c/ efeito, o inquietante domínio da 'misteriosa agitação do inorgânico' dos românticos teutônicos, onde seres vivos e objetos estão em estado de animação suspensa, um mundo paralelo onde o indivíduo não tem mais acesso aos dados objetivos da Realidade, podendo tão somente projetar visões subjetivas e interiorizantes a partir de suas quimeras.

Wilhelm Worringer falava sobre a presença d'um denso véu entre o homem nórdico e a Natureza. Eu diria que há um fosso, e não somente entre o homem nórdico e Natureza, mas entre toda a Humanidade e a própria Realidade como um todo. E este fosso está aumentando, inexoravelmente, dia após dia, ano após ano, geração após geração. E talvez já fosse intransponível à época do filme. VARGTIMMEN (que se calhar se converteu em meu Bergman predileto c/ o passar do tempo) é uma terrificante visão do fosso, a partir do fosso e sobre o fosso. O artista, antena da raça que é, proclama o veridito: não há escapatória. Que Deus se apiede de nós.

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PS

Aos amigos y confrades que pretendem reivindicar qualidades inadvertidas para o que se poderia chamar de 'cinema de entretenimento', sobretudo em cotejo c/ o que por outro lado poderíamos designar como 'cinema de arte', eu replicaria o seguinte:

Tais qualidades não são apenas inadveridas - o problema é que quase sempre elas simplesmente INEXISTEM mesmo.

De resto, o legado de mestres como Bergman, Welles, Dreyer, Rivette, Eisenstein ou Murnau não pode ser subestimado. Certamente pode ser criticado, reavalidado, redimensionado, relativizado, mas nunca subestimado, o que inevitavelmente acontece quando elevamos criadores e obras menores ao mesmo plano de excelência. E o cinema não merece isso, assim como a literatura ou a música.