quarta-feira, setembro 09, 2015

Presença de Francisco Campos - parte I

 Alphonse van Worden - 1750 AD





Como temos amiúde salientado em diversas ocasiões, o processo da GRANDE SÍNTESE, vale dizer, da ampla convergência entre as principais correntes de pensamento anticapitalistas, antiliberais e antiburguesas, por um lado; e, por outro, as principais tradições esotéricas (mormente as de cunho não-dualista) da revolta gnóstica contra o 'racionalismo político' (iluminismo, liberalismo, 'Sociedade Aberta', marxismo ortodoxo, etc.) ao longo da História, reverbera essencialmente a Geografia Sagrada de cada complexo civilizacional, isto é, seu conjunto de Arquétipos Tradicionais e Mitos Fundadores,  que, por seu turno, fornecerão os alicerces das formas políticas, valores espirituais, paradigmas existenciais e tendências culturais de cada nação.

Destarte, se queremos levar a efeito tal dinâmica no Brasil, é mister indispensável estarmos atentos não só aos elementos acima elencados, mas também aos homens que, d’uma forma ou d’outra, encarnam, pois, esta ‘geografia sagrada’  de nosso povo, de nossa nação.  A esse respeito, por exemplo, assoma em plano de destaque a fulgurante figura de Glauber Rocha, grande profeta da revolução messiânica brasileira em seus filmes e textos incandescentes, onde a fusão entre Política, Mito e Mística é demonstrada / vivenciada à perfeição.

No presente texto, não obstante, trataremos d’um autor que, assim como o insigne artista baiano, não somente compreendeu profundamente os meandros da alma brasileira, mas também refletiu de forma heurística e ousada sobre as formas políticas  propícias ao desenvolvimento nacional,  muito embora n’outra clave, de índole sistemática, argumentativa: o jurista e político mineiro Francisco Luís da Silva Campos (1891 - 1968).

Deputado federal (1921 - 1926); criador da Legião de Outubro (1930), primeiro movimento político de índole terza posizione organizado no Brasil; Ministro da Educação (1931 - 1932); Ministro da Justiça (1932 / 1937 - 1942); autor de numerosas obras no campo do Direito, da Filosofia Política e da Educação; redator da Constituição de 1937 e do A-1 (1964), nosso 'Chico Ciência' (epíteto que recebeu em virtude da assombrosa erudição e agudeza d'espírito) esteve no centro de gravidade da vida política nacional por quase meio século, apresentando uma plêiade de contributos exponenciais não só no plano da ação institucional, mas também no âmbito da batalha das ideias.

O objetivo deste artigo consiste em delinear principais idéias esposadas pelo autor em sua obra mais importante no campo da filosofia política, O Estado Nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico (1940), onde Campos lança em nosso país as bases doutrinárias d'uma 'revolução conservadora' de natureza decididamente antiliberal e centralizadora.  A esse respeito, vale sublinhar que as ideias abraçadas pelo prócer mineiro se desenvolvem no esteio das teorias formuladas pelo jurista, politólogo e filósofo alemão Carl Schmitt (1888 - 1985), onde a esfera da política é definida como sendo o terreno privilegiado da contraposição fundamental, da disjuntiva 'amigo/inimigo', sem apelo a quaisquer injunções de cunho ético ou racional. Em Legalität und Legitimität (“Legalidade e Legitimidade” - 1932), o pensador alemão leva a efeito um minucioso trabalho de desmonte das ficções jurídicas e políticas do Iluminismo e do liberalismo político, assestando suas baterias contra o mero formalismo institucional que informa a democracia moderna em sua forma parlamentar. Encontra-se aí, bem como em outras obras do autor,  uma brilhante análise dos paradoxos da democracia parlamentar e de sua tendência em substituir a decisão política pela exclusiva valorização da maioria quantitativa dos votos. O que está em jogo, portanto, tanto para Schmitt quanto para Campos, é o processo pernicioso de substituição da legitimidade, que emana de seu guardião (o soberano), pela legalidade, fazendo-se desta última condição suficiente para legitimar a decisão. Assim sendo, o ponto mais fraco do sistema de representação parlamentar consiste na transformação de questões político-substanciais em processos de mera quantificação dos votos, sem que se possa impedir a tomada de decisões que atentem contra os interesses do Estado. Para Schmitt, e também para Campos, a força concentrada em um ‘Estado total’ é a única saída para a teia de contradições geradas pelo pluralismo de partidos e lobbies econômicos, que o jurista alemão define “como os contratorpedeiros da ordem institucional”.  A modernização do Estado brasileiro, conforme crê o autor mineiro, tão somente poderá ser lograda de forma vertical e orgânica, libertando o país da influência perniciosa da política partidária, isto é, do ‘balcão de negócios’ das assembleias legislativas, onde prevalência dos interesses particulares dos diferentes grupos políticos sobre os imperativos nacionais prejudica ou até mesmo impede a atuação eficaz dos órgãos técnicos da administração estatal: tornam-se impraticáveis, salienta Campos, a “disciplina e trabalho construtivo num sistema [o da democracia de partidos] que, na escala dos valores políticos, subordina os superiores aos inferiores e o interesse do Estado às competições de grupos.”

Destarte, as concepções de Francisco Campos, como ideólogo precípuo do Estado Novo, se inserem no contexto geral d’uma crítica às instituições da democracia liberal e seus pressupostos teóricos. A esse respeito, reveste-se de especial importância a conferência A política e as características espirituais do nosso tempo, proferida pelo autor no salão da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro em 28 de setembro de 1935.

Já a partida Campos define a época em que vive como um período de ‘transição’, onde as velhas certezas e convicções já não mais funcionam como d’antes, e toda uma nova maneira de encarar a realidade se faz dramaticamente necessária. Ilustra à perfeição tal estado de coisas, salienta o autor, a situação em que então se encontra o processo educacional:

“O que caracteriza a educação, em nossos dias, é que ela não é uma educação para este ou aquele fim, para um quadro fixo, para situações mais ou menos definidas, mas não sei para que mundo de possibilidades indeterminadas; não uma educação para tais ou quais problemas, porém uma educação para problemas, uma educação que se propõe não a fornecer soluções, mas uma atitude funcional do espírito, isto é, uma atitude para o que vier, seja o que for e de onde quer que venha, como a sentinela atenta, noite escura, às sombras e aos rumores”. 

Atente-se, todavia, para o problema das gerações que, tendo que forçosamente atuar no mundo presente, já foram ou estão a ser educadas numa atmosfera de contornos e soluções definidas, um mundo de ordem e hierarquia fixadas, de modelos preestabelecidos, e que, portanto, não estão devidamente preparadas para enfrentar o turbilhão continuamente cambiante do mundo contemporâneo. Trata-se, reflete Campos, do “aspecto trágico das chamadas épocas de transição”.  É uma época em que “o passado continua a interpretar o presente”, em que se agudiza o confronto entre as formas tradicionais do espírito, mediante as quais o homem se acostumou a formular sua perspectiva sobre o mundo, e as formas inéditas, que o demônio do tempo estabelece d’um modo acelerado sob o olhar atônito da Humanidade. Destarte, o homem precisaria aprender a se adaptar a essa realidade, visto terem sido postas em questão todas as soluções que herdara.