sexta-feira, maio 18, 2012

Quem representa a verdadeira Ortodoxia?





















É com imenso gaúdio, preclaros irmãos d'armas, que cá disponibilizo um insigne pedaço d'escrita d'autoria de meu caríssimo confrade Rafael Daher, cuja erudição e agudeza d'espírito em matéria d'Ortodoxia são veramente notáveis.


Boa leitura!


Alphonse van Worden - 1750 AD

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Quem representa a verdadeira Ortodoxia?

Rafael Daher

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Introdução

Em artigo publicado num dos maiores portais ortodoxos da internet em idioma russo, de autoria de Edward Zibinitsky - texto originalmente publicado em http://www.pravoslavie.ru/jurnal/ideas/contrdugin.htm - notamos diversos erros conceituais e uma imensa falta de preparo para lidar com o assunto.

O artigo começa apresentando a obra do Professor Alexander Dugin como um vasto conjunto de termos e conceitos de diversas tradições, mas agrupadas em uma só entidade, que agrupa aspectos sociais, geopolíticos e espirituais. Embora isso não seja uma crítica direta, é possível notar um certo espanto no autor. Entretanto, um cristão ortodoxo familiarizado com o conceito ortodoxo de Estado não se espanta com isso, pois a autocracia ortodoxa, que foi sustentada por muitos séculos pelo Império Russo, reúne em torno do Czar, o ungido, todo o sentido do Império Cristão. Basta analisar o entendimento dos santos e startsi russos para notar que todos os aspectos da vida terrena estavam diretamente ligados à figura do Czar. A escatologia dos padres russos, por exemplo, gira em torno da queda e do ressurgimento do Czar; além de existir nestes padres uma “geografia sagrada”, que coloca a Rússia não só como a Terceira Roma, mas também como a Nova Jerusalém e o povo russo como o novo povo eleito.[1]

Entre diversas acusações até ao estilo do Professor Dugin, o autor diz ser necessário de certo cuidado e conhecimento por sua “poética rebuscada”, “sistema sofisticado de referências e alusões retóricas”. O que não é um grande problema para um cristão ortodoxo familiarizado com os Santos Padres. Enquanto em alguns padres a linguagem é muito clara e direta, como em São João Crisóstomo, em alguns encontramos a mesma linguagem rebuscada e cheias de meandros, como em Clemente de Alexandria, São Gregório Palamas e em diversos tratados da Filocália[2].

Trataremos, portanto, das acusações e dos diversos erros conceituais do autor, que em sua ânsia por criticar o pensamento do Professor Dugin, acaba deixando de lado diversos conceitos ortodoxos que deveria saber e tem a obrigação de aceitar.

1. A Eurásia e o resto

Após apresentar os principais conceitos do Professor Dugin e do projeto Eurásia, Zibinisky critica a posição tradicionalista de advogar um Princípio Supremo que une todos os autores tradicionalistas e representantes da tradição. Ora, pode-se negar o sobrenatural por trás deste Princípio que une todas as tradições, mas é inegável que a sociedade ocidental moderna representa um rompimento com todos os antigos conceitos e princípios das sociedades antigas, tanto do Oriente como do Ocidente, e é inegável que há diversos traços comuns entre todas essas civilizações. É possível traçar diversos pontos em comum entre o Egito Antigo e a Rússia Ortodoxa – a idéia ortodoxa do Czar que retém a vinda do anticristo, por exemplo, é comum em todas as autocracias e teocracias. Segundo os startsi, a vinda de Cristo como juiz ocorrerá após mais uma queda do Czar da Rússia, que será restaurado e derrubado novamente. No Islam, o Mahdi voltará para restaurar a Sharia na região de Najd, a região do Profeta (saws). Portanto, em todas as civilizações anteriores às revoluções iluministas (ou nas que não foram afetadas por elas), notamos a figura de um autocrata, enviado do alto, que não é apenas um governante terrestre, mas também uma ponte entre o céu e a terra (o Sumo Pontífice do Império Romano). O fundamento de todas estas sociedades está nesta ligação dos céus com a terra e aqui entra a idéia da civilização terrena como uma cópia das civilizações celestes (adiante trataremos sobre isso), e assim como o céu possui sua hierarquia, a terrena também possui a sua. Já no Ocidente, desde a vitória do guelfismo, este princípio tradicional foi rompido. E aí está a chave para a toda a decadência ocidental e suas degenerações mais perversas, como o Catolicismo Romano, o Protestantismo e os ideiais iluministas. Quando o papado tentou usurpar a Conciliaridade da Igreja (Sobornost), para substituí-la pelo governo universal de um franco com delírios romanos, foi dado o primeiro passo para a segunda usurpação franco-romanista: o roubo do poder real, a instauração do poder guelfo e de seu ideal papo-cesarista. Pois se o papa é o líder supremo da Igreja, e se deve existir essa liderança, é óbvio que uma liderança deste tamanho é superior à hierarquia real. Desta forma, ao contrário da sinfonia de poderes patrística, o papo-cesarismo franco usurpou o poder dos reis e passou a governar sozinho. A reforma protestante, para combater este monstro, gerou um monstro maior ainda, pois embora estivesse correta em negar o monstro que é a figura de um bispo que substitui a Conciliaridade da Igreja e o poder real ungido pelos céus, criou diversos monstros semelhantes, em um número maior ainda, pois todo protestante é um pequeno papa. Este monstro acordou e rompeu com os últimos resquícios do Cristianismo. E o mundo passou a assistir o nascimento e morte de diversos ismos, cada vez mais animalizados e sem qualquer princípio. Negar que, de um lado temos as diversas formas tradicionais de governo e, de outro, os frutos do papismo franco, é negar o óbvio. A Autocracia Ortodoxa possui suas particularidades e o cristão ortodoxo tem todo o direito de ver nessas particularidades sinais da presença divina exclusiva, mas ele não pode negar que há um princípio comum, ainda que fruto da chamada “lei natural”, entre todas as formas que contrariam a degeneração Ocidental.

Portanto, ao defender um projeto Eurasiano, contrário ao Ocidente moderno, o Professor Dugin está apenas defendendo a identidade ortodoxa. Também concordamos com o Professor Dugin no que tange ao Nacional-Bolchevismo como preservador da identidade patriótica russa, já que os primeiros nacionais-bolchevistas representavam com muito mais precisão o patriotismo russo e o ideal da Santa Rus’ do que figuras como Kerensky ou até mesmo hierarcas tidos como “conservadores” que defendiam a troca do Czar por um poder democrático aos moldes dos Ocidentais.[3]

2. O Simbolismo Polar

Após apresentar as ideias do Professor Dugin expostas em sua obra "Метафизические корни политических идеологий" (“As Raízes Metafísicas das Ideologias Políticas), o autor, novamente sem perceber, acaba demonstrando como o pensamento do Professor Dugin está de acordo com a tradição patrística da Igreja Ortodoxa. Durante a revolução russa, a Igreja ficou dividida entre várias posições: os renovacionistas, que saudavam as ideologias comunistas e propunham reformas eclesiásticas radicais, como o fim do monasticismo, das vestes clericais e da ritualística; os chamados “contra-revolucionários”, que defendiam o poder do Czar ortodoxo e combatiam o renovacionismo, os “moderados”, partidários de reformas democráticas na Rússia e o fim do czarismo, mas que não eram partidários da revolução sangrenta ou da “ditadura do proletariado”; os neutros, contrários a qualquer intromissão da Igreja na guerra civil. Entretanto, o que nos interessa aqui é a figura dos contra-revolucionários, pois eram os únicos representantes da verdadeira Ortodoxia. Para eles, a revolução não possuía apenas um caráter social, mas antes era fundamentada numa batalha espiritual e de consequências escatológicas. O Metropolita Anastácio, o primeiro Primaz da Igreja Ortodoxa Russa no Exílio, escreveu:

“Terrível e misteriosa é a obscura visão da revolução. Vista detalhadamente de sua essência interior, ela não deve ser colocada dentro do contexto histórico e não pode ser estudada da mesma forma que outros fatos históricos. Suas raízes mais profundas transcendem os limites de espaço e tempo, conforme determinado por Gustave le B.om, que considerava a revolução um fenômeno um tanto místico, obra de poderes sobrenaturais. Mas o que parecia duvidoso tornou-se muito claro após a revolução russa. Todos sentiam, conforme relatou um escritor da época, a terrível encarnação do mal absoluto no temperamento do homem; em outras palavras, a participação do demônio (o pai da mentira e antigo inimigo de Deus, que tentava levar o homem sua obediente ferramenta contra Deus) foi finalmente revelada.”[4]

São João de Kronstadt, em sua visão profética, viu o poder revolucionário como um chicote divino, uma punição pela queda espiritual do povo russo e seu afastamento da Igreja. Segundo os startsi, a restauração do Czar está diretamente ligada ao renascimento espiritual da Rússia, pois desde o VT a figura de um líder enviado por Deus está diretamente ligada ao merecimento do povo[5], e esta é a diferença da autocracia tradicional para todas as outras formas de poder.

Portanto, pelos próprios padres e startsi da Igreja Ortodoxa, a posição do Professor Dugin, sobre a polaridade das figuras presentes na escatologia, bem como da necessidade da polaridade para a restauração do estado primordial, está de acordo com a Ortodoxia. Todos os startsi russos, com suas profecias e avisos sobre castigos divinos à Santa Rus’, representam muito bem o ideal polar, pois todos os fenômenos sociais e geopolíticos não ocorrem por acaso, antes são representações de uma batalha espiritual que ocorre desde a queda de Lúcifer.

A própria interpretação do Apocalipse feita pelos padres da Igreja Ortodoxa é favorável ao argumento do Professor Dugin, pois os padres enxergam nas igrejas da Ásia fases da Igreja e do mundo. Portanto, nem mesmo a História escapa dessa visão, pois ao contrário da visão acadêmica, a Igreja Ortodoxa entende os eventos históricos dentro da divina providência em busca da vitória da Igreja Triunfante e seus membros contra as forças diabólicas.[6].

A Igreja Ortodoxa entende a história de forma polar, em um polo temos aquilo que Santo Justino (Popovich) chamava de “sociedade do Deus Homem”, a Igreja Ortodoxa, e do outro a “hidra de sete cabeças”, representada por todas as tentativas de destruir esta sociedade. Este mesmo Santo entendeu como poucos a raiz espiritual e demoníaca do papao: para São Justino, o Papismo possui em si mesmo uma diabólica tentativa em divinizar um homem para ocupar o lugar de Cristo. Novamente, encontramos dentro dos padres da própria Igreja Ortodoxa a justificação das idéias defendidas pelo Professor Dugin.

Entretanto, este ensinamento é um pouco distante da “Ortodoxia” pregada por alguns hierarcas, que imaginam uma luta comum para católicos romanistas e ortodoxos representantes da verdadeira Roma. Não há como falar em resistência “cristã” ou “objetivos comuns” entre católicos e ortodoxos. Vemos nos exemplos dos santos defensores da Fé Ortodoxa que é impossível falar em colaboração entre as duas Igrejas, e novamente isto é outra prova da polaridade.

Como a Igreja Católica representa o início da maior ofensiva à cosmovisão ortodoxa, não há absurdo algum em enxergá-la como parte das forças decaídas na batalha terrena que representa a batalha celestial entre Miguel e Lúcifer.

3. Gnose

Que católicos romanistas tenham certa paranóia com a gnose é compreensível, pois a teologia romanista é um monstro de duas pernas tortas: a racionalista, representada pelos escolásticos, que reduziram até o mistério do Santíssimo Sacramento ao limites da exposição sistemática; e a mística-sensualista, representada pelos “místicos” católicos que relatam uma relação quase erótica com Cristo, conforme vemos nas representações eróticas da crucificação de Cristo ou nos escritos indecentes de místicos como Santa Teresinha, São Francisco de Assis com seus estigmas e tantos outros.

Já a Igreja Ortodoxa, seguindo os Santos Padres, preservou o verdadeiro sentido da theosis, a doutrina da deificação. O Professor Dugin, ao falar do “Éden Perdido” como característica fundamental da teologia apofática, faz nada mais do que defender a doutrina ortodoxa da deificação e da visão das divinas energias incriadas. São Serafim de Sarov, ao transfigurar-se diante de Motovilov, foi uma prova viva desta doutrina. Enquanto para a teologia romanista a salvação é entendida de forma sistemática, numa exposição quase filosófica da salvação ou, pior ainda, na forma sensual e erótica de seus místicos, a teologia ortodoxa reafirma os ensinamentos dos antigos padres como São Máximo o Confessor e São João Clímaco. Portanto, os místicos romanistas que estão mais próximos do gnosticismo.

Entretanto, a questão do gnosticismo aqui é outra: o autor acusa Dugin de defender os movimentos sectários russos, supostamente gnósticos por seus ritos orgiásticos. Não é nosso intuito defender a Ortodoxia inexistente destas seitas e cremos que este também não é o intuito do Professor Dugin. Entretanto, o Professor Dugin está certo ao defender o aspecto revolucionário destes grupos. Sabemos que o Concílio de Florença foi o responsável por algumas mudanças na praxis dos ortodoxos gregos. O Patriarca Nikon, quando percebeu essas alterações, não imaginou desta forma e, num dos piores erros da história da Igreja Ortodoxa Russa, promulgou reformas para corrigir supostos erros dos missionários que levaram a Ortodoxia à Rússia. Diante disso, os fiéis que diziam que Moscou era a última Roma em pé, pois a primeira havia caído em cisma e heresia, e segunda caído em Florença e depois nas mãos dos turcos, viram um sinal apocalíptico nestas reformas. Algumas, seguindo a interpretação dos padres da profecia em Apocalipse das “estrelas caindo dos céus” como o fim do episcopado no final dos tempos, e assim romperam não só com a Igreja oficial mas também com o próprio sacerdócio.

Dentro da visão do Professor Alexander Dugin, faz todo sentido ver nestes movimentos sectários elementos para a restauração da mentalidade ortodoxa russa. Pois enquanto elementos da Igreja Oficial passaram por diversos movimentos desde as reformas nikonianas, estas seitas ficaram distante de qualquer contato com o mundo exterior corrompido pelo Ocidente.

Além disso, em relação ao assunto da própria gnose como via de realização, é preciso separar o verdadeiro entendimento que os padres tinham da gnose (Clemente de Alexandria fala com frequência de uma gnose cristã), com aquilo que alguns apologetas cristãos imaginavam ser a teoria das seitas gnósticas. Separar a gnose do gnosticismo não é suficiente neste caso, aqui tratamos daquilo que os gnósticos ensinavam do que entendiam como ser ensinamento destas seitas. O assunto é muito longo para ser tratado aqui, mas a leitura em qualquer tratado das seitas gnósticas é capaz de demonstrar que os gnósticos não estavam restritos apenas à “contemplação de imagens poéticas inspiradas por diversos temas da cosmogonia pagã”, conforme diz o autor . Portanto, a defesa que o Professor Dugin faz de alguns movimentos gnósticos nada mais é do que um resgate de diversos elementos do próprio Cristianismo Ortodoxo que foram perdidos devido à influências do Ocidente corrompido. No Ocidente, homens de profundo entendimento espiritual como Marsílio de Pádua, Joaquim de Fiore, Mestre Eckhart e Savonarola, todos devidamente combatidos pela hierarquia católica, pois o resgate do verdadeiro esoterismo cristão e da política sagrada é uma ameaça ao domínio meramente humano do papado.

4. O Esoterismo Cristão e a Sabedoria Perene

A existência de um esoterismo cristão faz parte de uma discussão ampla e merece ser tratada de forma exclusiva. Aqui, vamos nos concentrar naquilo tratado por Zibinitsky: a existência de uma tradição esotérica comum. É suficiente fazer menção ao hesicasmo, à Filocália e aos anciões nus do Monte Athos, 12 monges que vivem centenas de anos e são invisíveis e guardam uma capela para a celebração da última Divina Liturgia antes do fim do mundo. Muitos ortodoxos confundem esta idéia de esoterismo com o esoterismo oriental ou com a Alquimia medieval, mas inegável que há, dentro da Ortodoxia, segredos guardados a uma elite devidamente preparada para essas revelações.

O Professor Dugin, ao traçar semelhanças entre as diversas doutrinas iniciáticas com estes ensinamentos ortodoxos, não pode ser chamado de heresia ou redução da Ortodoxia à mera face de uma unidade iniciática manifestada de diversas formas. É antes disso um estudo acadêmico e que, embora não muito apreciado por alguns setores da Igreja Ortodoxa, por puro preconceito e isolamento histórico, não atenta contra a Ortodoxia.

O autor ainda afirma que a tentativa do Professor Dugin em “combinar” diversas tradições é algo que exige uma atitude semelhante à de Descartes, pois consiste em colocar o “eu” de todas as religiões sob diversos elementos abstratos para então manipulá-los. Sem querer entrar na defesa da Sabedoria Perene de Guénon ou da Unidade Metafísica das Religiões de Schuon, não é este o método de qualquer escola tradicionalista. As pesquisas do Professor Dugin, bem como de outros escritores tradicionalistas, buscam demonstrar a existência de um esoterismo comum a todos as tradições religiosas, e estas pesquisas usam símbolos, ritos e explanações doutrinárias para demonstrar a existência deste esoterismo comum, que não é um “eu” de todas as religiões, mas o centro de todos os ensinamentos tradicionais. Obviamente, é possível para qualquer ortodoxo levantar diversas críticas para esta teoria, mas a justificava do autor foi ridícula e não demonstra apenas má vontade em relação ao Professor Dugin, mas também um profundo desconhecimento daquilo que pretende tratar.

O argumento de que a teoria de Dugin é inválida pois o Iman Ali jamais concordaria com qualquer analogia entre o Islam e o Hinduísmo também é um argumento primário, já explicado por diversos autores tradicionalistas. Além do mais, caso a questão seja abordada sob um ponto de vista exclusivamente acadêmico (que não é o caso do Professor Dugin), o argumento vai para as cucuias de vez, pois o estudo da Religião Comparada não precisa da licença dos hierarcas para demonstrar suas conclusões.

Já o Professor Dugin, que segundo o autor busca condensar Marx, Lao Tsé, o Protopresbítero Habacuque (mártir e líder dos staroviery russos), alquimistas e xiitas, busca demonstrar a existência não só de um esoterismo comum a todas s tradições, mas também uma oposição comum entre todas elas à civilização ocidental e moderna, o Reino da Quantidade, a civilização que representa Kali Yuga, o “mosteiro traidor” da Profecia de Santo Ambrósio de Optina, a Atenas moderna que chocou São Jerônimo de Égina. Qualquer pessoa com o intelecto aberto para o conhecimento é capaz de reconhecer o rompimento entre as civilizações que já falamos no começo deste artigo.

Em seguida o autor começa a despejar incoerências da exposição do Professor Dugin sobre os sacramentos ortodoxos, e nisso vimos o de sempre: um total despreparo ao lidar sobre o assunto e apelos a bonecos de palha como “blasfêmia’. O Professor Dugin, ao traçar um paralelo entre o batismo e outros ritos não-ortodoxos, não reduziu o sacramento ortodoxo a uma mera forma ritualística, nem que o batismo confere os mesmos efeitos que os chamados rituais pagãos – o autor do texto que faz essa conclusão, que não está de acordo com a verdadeira exposição do Professor Dugin, que consiste em demonstrar, através destas semelhanças, a existência de uma origem comum para as tradições, o que não exclui as diferenças exotéricas entre elas, inclusive dos efeitos destes ritos dentro de cada tradição.

Conclusão

Para variar, vemos mais uma vez críticas ortodoxas ao Professor Dugin sem fundamento algum. Já cansamos de ver críticas ortodoxas ao tradicionalismo de Guénon repletas de erros conceituais, bonecos de palha e diversas incoerências em sua argumentação. Mas, desta vez, o que nos chama atenção é a virulência do autor ao criticar o Professor Dugin como se o nacional-bolchevismo e a figura do Professor Dugin fossem grandes ameaças à Ortodoxia – o autor chega a falar até mesmo em “veneno”. Curioso notar como não vemos o protesto destes autores contra as verdadeiras ameaças à Ortodoxia, como a questão do novo calendário, o ecumenismo, a posição de serviçal de Roma exercida pelo Patriarcado de Constantinopla. Isso sim compromete a Ortodoxia – demonstrar que a Ortodoxia faz parte de uma oposição à degeneração moderna não compromete a Ortodoxia. Demonstrar que a Ortodoxia possui em sua doutrina metafísica pontos em comum com o Taoísmo ou com o Hinduísmo não é diminuí-la, diminuir a Ortodoxia é comemorar o nome do falsário que ocupa a antiga sé ortodoxa de Roma em plena catedral do Fanar.

Portanto, enquanto o Professor reafirma a Ortodoxia e seus valores mais caros, muitos dos paladinos da Ortodoxia não pensam duas vezes antes de beijar o anel papal ou a sentar em assembléias de protestantes como o CMI. Estes sim blasfemam, pois tratam como autoridades eclesiásticas verdadeiros usurpadores e filhos de uma instituição atacou e ainda ataca a Ortodoxia com diversos meios ardis, como o uniatismo melquita e ucraniano.

É preciso, portanto, tomar cuidado com aquele exclusivismo que não é tão exclusivista assim. Ao criticar as sérias pesquisas do Professor Dugin, e silenciar em relação aos rufiões da Ortodoxia de hoje, prontos para vender cada pedaço da Ortodoxia ao Ocidente e ao mundo moderno,

Notas

[1] O Padre Serafim Rose, convertido à Ortodoxia, percebeu esta importante missão da Rússia no mundo e escreveu sobre o assunto no ensaio “The Future of Russia and the End of the World”.

[2] A Filocália, por exemplo, circulou secretamente pelos mosteiros ortodoxos por vários séculos, e só foi publicada para o mundo contra o desejo dos monges.

[3] “Graças à misericórdia divina, a ascensão popular contra a antiga e ultrapassada ordem no Estado, que levou a Rússia à beira da destruição nestes duros anos de guerra, foi substituída sem deixar mais vítimas, e agora a Rússia passou para uma nova ordem estatal, graças à decisão da Duma, que formou este Governo Provisório, e aos representantes dos trabalhadores soviéticos. A revolução russa tornou-se uma das revoluções mais breves e pacíficas que a história já conheceu”. Estas palavras foram ditas pelo Arcebispo Serafim (Chichagov) de Tver, tido como um dos líderes da ala conservadora da Igreja. Em Tverskyje Eparkialniie Vedomosty, 1917, № 9-10, pgs 75-76. Até o conservador Santo Mártir André, bispo de Ufa, que mais tarde buscou a união do Patriarcado de Moscou com a Belaja Krinitsa, saudou a queda do poder ortodoxo: “A autocracia dos czares russos caiu no absolutismo, depois em nepotismo e excedeu todas as razões. E que espanto! Este poder entrou em colapso – o poder que deu as costas à Igreja. O desejo de Deus foi cumprido. A Igreja Católica de Cristo foi libertada da opressão do Estado”. Em Ufmskiye Vedomosty, 1917, № 5-6, pgs. 138-139

[4] em Besedi so svoiym sobstvennim serdytsem, Jordanville, 1948, pg. 123

[5] cf. Oséias 10,3; Deuteronômio 17,18

[6] Em obras como Russia Before the Second Coming, de Sergeiv Posad, e The Religious-Philosophical Foundations of History, de Lev Tikhomirov, oferecem ao leitor explicações sobre a visão ortodoxa da história. Para compreender as igrejas da Ásia do livro do Apocalipse como manifestações na história, consultar The Apocalypse in the Teachings of Ancient Christianity, Arc. Averky, Platina, Ca.: St. Herman of Alaska Brotherhood, 1995.

terça-feira, maio 01, 2012

O 'Problema da Indução' em David Hume - II

Alphonse van Worden - 1750 AD



























Para Hume, portanto, a Metafísica constitui um modelo de investigação abstrato, caracterizado tanto por sua fraseologia ambígua quanto por sua conjunção parcial com a experiência; as querelas metafísicas são, desse modo, caracterizadas como meras disputas verbais, onde imperam a ambigüidade e a imprecisão dos termos empregados, tendo por resultado o engano e a ilusão. Uma vez diagnosticado o problema, Hume propõe, a partir de sua Teoria das Idéias, um critério de demarcação que nos permita, de modo claro e inequívoco, operar a distinção entre as controvérsias meramente verbais da Metafísica e as discussões filosóficas legítimas. Tal critério consiste exatamente no já mencionado Princípio de Cópia: toda idéia simples deriva de uma impressão simples. O princípio estabelecido por Hume prescreve a necessidade de uma conjunção plena entre os dados da experiência e os conceitos empregados numa discussão filosófica: ao nos encontrarmos diante de uma idéia filosófica cujo significado não é claro, devemos perguntar qual a impressão que está na origem desta idéia, pois é impossível raciocinar corretamente sem compreender a idéia de que estamos tratando, e tampouco é possível o entendimento de qualquer idéia se não conhecemos sua origem, a impressão primária da qual ela deriva. Portanto, se os termos de que porventura se vale uma teoria filosófica não correspondem aos dados da experiência, ela carece de sentido, devendo ser abandonada. Se desejamos, pois, provar que alguma coisa da qual não temos experiência direta existe, precisamos ter entre nossas premissas a existência de uma ou mais coisas que correspondam a dados da nossa experiência sensível, gravados na mente.

Tendo estabelecido, pois, através do Princípio de Cópia desenvolvido em sua Teoria das Idéias, um critério para distinguir problemas filosóficos legítimos das discussões meramente verbais da Metafísica, Hume irá postular, como segunda diretriz básica de seu empirismo, uma teoria naturalista com o fito de elucidar a credibilidade que o Homem confere a juízos estabelecidos a partir de processos indutivos. Verifiquemos, em primeiro lugar, como o filósofo escocês compreende a natureza do ato judicativo:


Podemos aqui aproveitar a ocasião para observar um erro notável, que tendo sido freqüentemente inculcado nas escolas, tornou-se uma espécie de máxima estabelecida e aceita universalmente por todos os lógicos. Este erro consiste na divisão vulgar dos atos do entendimento em concepção, julgamento e raciocínio (...) O que podemos em geral afirmar em relação a estes três atos do entendimento, considerando-os de maneira apropriada, é que todos eles se resolvem no primeiro, e não são senão modos particulares de conceber nossos objetos.


Hume, como podemos constatar, sustenta a existência d'uma identificação do Juízo com o próprio conteúdo que ele expressa, isto é, com uma idéia que ocorre na mente, em outras palavras, com um item mental imediatamente experienciado. Desse modo, de acordo com o Princípio de Cópia, um Juízo como isto é madeira recebe assentimento porque corresponde a um dado sensível, que é a impressão de madeira. A explicação naturalista de nossa crença em juízos formulados a partir de inferências indutivas envolve, portanto, a explanação a respeito da origem de nossas idéias: o assentimento dado a uma idéia baseia-se no grau de força e vivacidade que ela apresenta, que por sua vez depende da relação desta idéia com a impressão sensível da qual ela deriva. Para Hume, por conseguinte, é somente com base na experiência sensível que nossas faculdades cognitivas podem conceber proposições capazes de operar no terreno da disjuntiva verdade/falsidade.

Ao afirmar que as idéias simples derivam necessariamente de impressões simples, e que tal princípio deve ser aplicado como um critério de demarcação entre os equívocos verbais da Metafísica e as discussões filosóficas legítimas, concluindo forçosamente que as idéias metafísicas devem ser rejeitadas porque carecem de sentido, Hume coloca em xeque alguns conceitos fundamentais da tradição filosófica ocidental. Vejamos aqui, por exemplo, como Hume entende as noções de Substância e Acidente, duas categorias centrais da metafísica aristotélica: “Gostaria de perguntar aos filósofos que fundamentam grande parte de seus raciocínios na distinção entre Substância e Acidente, e imaginam que possuímos idéias claras de ambos, se a idéia de Substância deriva-se de uma impressão de sensação ou de reflexão?”(Treatise of Human Nature, Livro I, Parte I, Seção 6, pág.16).

Frente à impossibilidade de derivar a noção tradicional de substância de qualquer impressão sensível presente na experiência humana, Hume afirma que tal noção só é inteligível se com ela nos referimos a um conjunto de idéias simples, que correspondam a impressões simples, unidas através dos mecanismos de associação. As polêmicas acerca da materialidade ou imaterialidade da alma envolvem, dessa maneira, um uso metafísico e desprovido de sentido da noção de substância, porque nelas esta expressão não encontra uma contrapartida sensível. Devem ser, portanto, abandonadas e substituídas, como podemos observar na argumentação de Hume, pela reflexão sobre os mecanismos que induzem à crença na existência contínua de um feixe de percepções. Por outro lado, ao sustentar que o critério de justificação do Juízo também reside no Princípio de Cópia, Hume limita toda e qualquer pretensão de verdade do pensamento humano ao que pode ser concebido a partir dos dados da experiência sensível.

Na seção IV do Enquiry, Hume, tendo em vista o caráter incerto de nossas inferências acerca de questões de fato, critica mais uma vez as certezas metafísicas a respeito do conhecimento humano. Como o filósofo escocês deixa claro em sua argumentação, uma das questões cruciais da existência é a sucessão dos acontecimentos. Hume nos diz que não podemos basear as ilações e analogias que fazemos, no que concerne aos efeitos de causas semelhantes nas questões de fato, em qualquer espécie de raciocínio formal. Em outras palavras, talvez mais precisas: o que Hume pretende afirmar é que as inferências indutivas, que nos permitem estabelecer uma ponte entre o particular e o universal, isto é, todos os processos de intelecção que caminham do conhecido para o desconhecido (e que portanto incluem como subconjunto os casos em que se tenciona firmar uma conexão sólida entre experiências passadas e a certeza de sua regularidade futura), não podem ser assegurados por nenhum vínculo que seja (a) racional e (b) passível de ser racionalmente verificado e conhecido.

O filósofo escocês ilustra esse ponto axial de suas investigações com alguns exemplos, como o que veremos a seguir: que argumento seria esse, afirma Hume, que nos leva a pensar que um corpo semelhante a um pão que outrora me nutriu, vai estar dotado do mesmo poder secreto da alimentação? A experiência é a fonte de tudo o que temos na mente, assevera Hume logo no início do Enquiry. De modo que nenhum raciocínio a priori pode garantir a falsidade de um contrário de uma questão de fato ou de um raciocínio moral. Esse contrário é sempre possível, desde que seja inteligível, como nos ilustrará o famoso exemplo do Sol, que posteriormente abordaremos. As relações de Idéias, pelo contrário, se baseiam em conceitos criados pelo homem, de modo que, pelo princípio da não-contradição, essas Idéias não devem ser auto-excludentes. Talvez Hume estivesse mostrando, com sua ousada concepção de causa e efeito, que todas as teorias gerais a respeito da realidade se inserem no âmbito da probabilidade.