terça-feira, setembro 14, 2021

Crônicas do Novo Normal - I: a propósito do bichano y do imunizante




Esta nossa indigitada Terra de Santa Cruz é mesmo um país deveras... singular, em y por tudo sui generis.

Senão vejamos: estava hoje este vosso humílimo confrade, cidadão pacato y ordeiro que é, num posto de vacinação situado no outrora idílico y bucólico bairro do Jardim Botânico, sentado calmamente à espera de sua republicana y salvífica (oh glória... 🙄) dose de imunizante Pfizer, enquanto uma diligente y abnegada enfermeira preenchia o comprovante y preparava a ampola, quando um lépido y faceiro felino ex nihilo aboletou-se em meu colo.

Após recuperar-me do óbvio sobressalto suscitado pela inusitada ocorrência, notei que o ronronante y madraço bichano esfregava sua cabeça em meu regaço, nitidamente à espera de afagos, no que foi aliás prontamente atendido. A enfermeira, de nome Marli, então manifestou-se, sorridente: “uma gracinha, né?? É o Davi. Todo mundo aqui adora ele! E ele pelo visto gostou do senhor, nunca tinha visto fazer isso antes, pular no colo de um estranho!”. Ainda um tanto quanto perplexo, pude tão somente murmurar algumas palavras de constrangido assentimento, enquanto recebia minha cívica y científica vacina.

Moral da história: ao que tudo indica, eu não apenas não tinha o direito de expressar qualquer sentimento de inconformismo com o ocorrido (sem que se possa atribuir ‘responsabilidade’ alguma ao simpático y meigo animalzinho, claro está), vale dizer, a insólita y porventura um tanto quanto antisséptica presença de um gato zanzando por entre caixas de medicamentos, como deveria, antes pelo contrário, me sentir agraciado, dir-se-ia até mesmo abençoado, c/ o facto de ter sido o distinto alvo dos protestos da mais elevada estima y consideração de messire felis catus Davi...

MAS ENFEEEM...


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros 


sábado, maio 29, 2021

A propósito da Tradizione Ermetica


Alphonse van Worden - 1750 AD




Egrégios irmãos d'armas:

Certa feita defini como modelos paradigmáticos de excelência intelectual aqueles indivíduos que fossem capazes de articular exemplarmente as 6 virtudes que reputo como cardeais no exercício da atividade intelectual:


CRIATIVIDADE

RIGOR

OUSADIA

LUCIDEZ

CLAREZA

PROFUNDIDADE 


A excelência intelectual seria idealmente alcançada mediante a perfeita coordenação entre estas seis virtudes. Digo 'idealmente' por estar cada vez mais convencido da inexequibilidade prática desse paradigma, que no fundo existe tão somente como possibilidade teórica, 'estrela-guia' a servir de farol de orientação. Destarte, o que há são combinações parciais desses elementos. Inclusive, tenho cá para mim que um patamar realista de notável excelência intelectual já é obtido quando três dessas virtudes atingem máxima potência de realização. 

Pois bem: La Tradizione Ermetica: nei suoi simboli, nella sua dottrina e nella sua «Arte Regia» (1931), obra de lavra do filósofo italiano Giulio Cesare Andrea Evola, dito Julius Evola, é precisamente um desses casos. Nela o autor de "Gli uomini e le rovine" logra um amálgama particularmente feliz entre RIGOR, PROFUNDIDADE e CLAREZA, o que não deixa de ser sobremaneira surpreendente, tanto em virtude das asperezas notoriamente características do acervo de questões abordado no volume quanto no que tange às idiossincrasias de seu autor. Explico: se profundidade e rigor são qualidades que encontramos em praticamente toda a longa trajetória intelectual de Evola, quero crer que o mesmo juízo não pode ser feito quando se está a falar em clareza; muito pelo contrário, vale dizer: malgrado escreva maravilhosamente bem, malgrado o ínclito pensador peninsular é penosamente hermético (sem duplo sentido, se faz favor), o que também se deve, há que reconhecer, às dificuldades inerentes aos temas habitualmente tratados por ele. 

Mas enfim, não é o caso deste livro em particular, o que torna Evola digno de todos os encômios e louvores: converter as crípticas, labirínticas e polissêmicas sendas do simbolismo alquímico num itinerário relativamente compreensível e cristalino para leigos definitivamente NÃO é uma tarefa NADA fácil. Sobre o tema já li tomos de incontestes sumidades tais como Fulcanelli, Mircea Eliade, C. G. Jung, Titus Burckhardt, Serge Hutin etc. e posso afirmar com tranquilidade: nenhum deles ilumina o monólito negro da alquimia com a mesma amplitude que este precioso volume de Evola. Pela primeira vez estou a compreender de maneira visceral, íntima, uma verdade essencial que eu intuía apenas no plano teórico como mero conceito: a dimensão fundamentalmente ESPIRITUAL e METAFÍSICA da tradição hermética, a profunda correspondência existente entre os processos alquímicos e os processos espirituais, entre o 'exterior' e o 'interior', o 'visível' e o 'invisível', o 'material' e o 'imaterial', o 'imanente' e o 'transcendente', o 'natural' e o 'sobrenatural'. 

La Tradizione Ermetica é, em suma, uma leitura transformativa, no sentido mais recôndito e crucial desta palavra.



domingo, janeiro 10, 2021

Apontamentos sobre o pensamento conservador - II: a próposito de Charles Maurras

 Alphonse van Worden - 1750 AD





Há já alguns meses comentara eu convosco, excelsos irmãos d'armas, ter adquirido certas obras de pensadores importantes para a formação de um bom militante dissidente; outrossim prometi que tão logo fosse possível, escreveria alguma coisa a propósito delas.

E principiarei registrando algumas observações a propósito de Charles Maurras, o excelso patriarca da direita católica francesa na primeira metade do século XX, fundador da Action Française e principal teórico do Nacionalismo Integral.  

Escritor que sou, gostaria à partida de dizer uma ou duas palavras sobre as qualidades estilísticas de nosso autor. Que ventura, pois, é ter a oportunidade de enfim ler Maurras no original (no caso um volume que recolhe Enquête sur la monarchie - 1900 e mais alguns artigos avulsos)! Pois o iracundo polemista não é apenas o legatário espiritual da longa e augusta tradição do pensamento católico galicano francês, que deita raízes em Bossuet e Richelieu no século XVII e depois se espraia pela escola contrarrevolucionária e anti-iluminista de Joseph de Maistre e Louis de Bonald: é também o herdeiro literário por excelência dessa nobre estirpe. A exemplo de sua ilustre progênie, a prosa maurrasiana é solene, severa e hierática, conjugando o estrondo e a ira dos profetas do Antigo Testamento, o ostinato rigore conceitual da melhor tradição cartesiana e a limpidez cristalina e majestosa da dicção clássica, que tão somente poderia ser haurida d’uma profunda intimidade c/ as obras-primas da literatura greco-romana e da própria plêiade renascentista francesa.

Ideologicamente falando, por seu turno, propugna Maurras um retorno ao regime monárquico, num modelo que de certo modo representa um aggiornamento do modelo de regime monárquico vigente no Medievo; com efeito, trata-se d’uma monarquia tradicional, hereditária, antiparlamentar e descentralizada. A fórmula não é si mesmo inovadora, admitamos; o que assume particular interesse para o leitor de hoje, por conseguinte, é a maneira como o autor interpreta cada um desses parâmetros. Para efeitos desta brevíssima nota, considerarei dois exemplos que me parecem particularmente emblemáticos.  

Consideremos, em primeiro lugar, o sentido que o termo ‘hereditário’ assumirá no léxico do pensador francês. Maurras deixa bem claro que não se trata exatamente d’uma herança ‘biológica’, ‘sanguínea’, mas sobretudo d’uma transmissão de índole ‘vocacional’, pela tradição oral e pela educação no meio familiar. Em suas próprias palavras:  

“Não se trata, em absoluto, de assegurar fisiologicamente ao serviço do Estado, de geração em geração, um conjunto de indivíduos mais distinto que o comum dos cidadãos; trata-se, c/ efeito, de utilizar as aptidões particulares, especiais e técnicas que se fixam em certo grau pelo sangue, mas sobretudo pela tradição oral e pela educação. Não se trata, em absoluto, do GRAU dessas aptidões, mas de sua QUALIDADE, ou, caso assim desejemos, de sua orientação consuetudinária. Nasce-se juiz ou comerciante, militar, agricultor ou marinheiro e, quando se nasceu tal ou qual, também se é, não só por natureza, mas também por posição, mais capaz de executar de maneira útil a função correspondente: um filho de diplomata ou de comerciante encontrará nas palestras de seu pai, no círculo de sua família e de seu mundo, na tradição e no costume que o haverão de envolver e sustentar, os meios eficazes de progredir mais rapidamente do que qualquer outro, seja no comércio ou na diplomacia.” (ENQUÊTE SUR LA MONARCHIE). 

Tão logo aplique à política tal raciocínio, no caso específico à forma monárquica, e de imediato o leitor chegará a uma inevitável conclusão: da mesma maneira que que o negociante, o militar, o comerciante, o marinheiro, o juiz ou o camponês, o príncipe soberano é uma variedade social de tipo humano, sujeita aos mesmíssimos parâmetros e regras das demais variedades. O exercício sistemático e contínuo da função através dos tempos adapta de modo quase que intuitivo, orgânico os filhos da família real à prática da governança. Destarte, o príncipe soberano, herdeiro d’outro príncipe soberano, estará não apenas por natureza e disposição, mas sobretudo por posição e adestramento específico, melhor preparado para bem exercer a função de príncipe soberano do que qualquer outro homem sobre a Terra.  

O segundo e último exemplo que me apeteceria sublinhar é caudatário do primeiro ou, melhor dizendo, é um desdobramento dele.  

Muito bem: de maneira a assessorar o monarca nas lides governamentais, seria mister estabelecer uma nova aristocracia, em bases igualmente hereditárias, tal como a família real. Certamente a questão dos laços de consanguinidade desempenhará um papel de relevo no processo, mas de modo algum o esgota, e nem sequer constitui seu aspecto mais importante. Crê Maurras que esta aristocracia deve ser ‘aberta’, sendo o acesso a ela potencialmente facultado a todos, por via da honra e do mérito. E ele audaciosamente vai além, prenunciando sob certos aspectos as ideias de Georges Sorel:  

“Por que não uma nobreza operária, como outrora houve uma nobreza togada? (Relembremo-nos de que o texto em tela data de 1900, e de que portanto a sociedade industrial estava na ordem do dia) (...) Quando a nova classe dos togados adquiriu enorme importância, à nobreza da espada acrescentou-se a nobreza togada, e o rei cumulou-lhe de benefícios até a saciedade. Pois bem! Hoje, devido aos progressos do maquinismo, nasceu uma nova classe poderosa. (...) O Estado atual carece de força como de luz. Realizai, pois, o Estado consciente e poderoso, isto é, estabelecei incontinenti a monarquia hereditária: tal Estado prevalecerá e ousará; logo saberá onde estender sua proteção, e ninguém em sã consciência confundirá suas complacências no tocante a uma justa e nova aristocracia do trabalho com as habituais baixezas de ordem eleitoral, disseminadas sem discernimento entre os líderes políticos do mundo operário pelos abantesmas de ministros que presidem o regime republicano." (ibid). 

Conforme assinalei adrede, no excerto acima já estamos no universo soreliano: é uma hipotética transição entre o nacionalismo integral, então uma realidade já consolidada e atuante, e o fascismo vindouro. Mas isso já é uma conversa para outra ocasião...