quinta-feira, dezembro 02, 2010

Swans: exercises on aural carnage and sonic rituals of punishment

























Eis aqui, para vosso imenso gáudio, mais uma pérola from my vynil vaults .

Muito bem: eis que nem sempre, ínclitos confrades, o que se denomina como ' rock industrial' caracterizou-se pela monótona pasmaceira eletrônica pseudo-metalizante de bandas como NIN, Ministry, KMFDM, etc. Não obstante, houve um tempo, mais especificamente entre 1977 e 85, em que o termo designava um conjunto de artistas, provenientes sobretudo da Inglaterra, dos EUA e da Alemanha, que empregavam fontes não-musicais (tais como sucata industrial, found sounds , tapes , distorção eletrônica, etc.) em suas composições; formações como Throbbing Gristle, Einstürzende Nëubaten, Test Department, SPK, Blech, Cassiber, Foetus, Whitehouse, NON, Psychic TV, Factrix e, claro está, os mefistofélicos novaiorquinos dos Swans, banda em tela na presente postagem.

A sonoridade dos caras já foi descrita por um crítico britânico como " Sister Ray , do Velvet Undergroud, a 16 RPM e mergulhada num pântano"; de facto, trata-se duma descrição brilhante, assaz acurada: claustrofóbica, ominosa, morosa, catatônica e avassaladora, nos primeiros anos a banda era crueldade sonora em estado bruto, alicerçada na bateria monomaníaca e detonações industrialistas do suiço Roli Mosimann; na guitarra dilacerante e agônica de Norman Westberg; no baixo hipnótico de Harry Crosby; e, claro está, nas insanas imprecações e escalafobéticos ruídos aleatórios perpetrados pelo insano vocalista Michael Gira, líder da banda e também responsável pela cinérea atmosfera de pesadelo kafkiano e perversão sádica que emanava das letras.

O estraçalhante Cop (1984), segundo LP deles é, a meu juízo, o ponto culminante da fase áurea da banda (ao lado de Public Castration Is a Good Idea, uma carnificina sonora gravada ao vivo em 1986).

Cop é o bramir sinistro d'uma siderúrgica envolta em brumas de resíduos industriais, onde homens e máquinas urram de dor, ódio e desespero, comandados por um H.A.L 9000 em disfunção operacional. Assim sendo,  a atmosfera que emana de suas faixas é nebulosa, soturna e ameaçadora, uma espécie de representação sônica da 'zona' interdita de Stalker, percorrida por legiões de espectros abissais. E em meio a a essa universo de inaudito terror, o ouvinte atento, ao detectar, por exemplo, boa parte das matrizes sonoras que hoje informam a ala mais extrema do metal / noise contemporâneo (Burning Witch, Halo, Cortisol, Khanate, Stumm, Aluk Todolo, etc.), perceberá quão influentes esses camaradas ainda são.























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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte – Deserto dos Tártaros

Expressionismo / Romantismo: duas visões de mundo - I

Alphonse van Worden - 1750 AD




A percepção que se tem do Romantismo e do Expressionismo não raro restringe-se, até mesmo nos meios cultos, aos aspectos mais especificamente 'estéticos', isto é, ao legado artístico-literário de tais movimentos.

Tal concepção não poderia ser mais reducionista: tanto o romantismo quanto o expressionismo (ainda que este último em menor escala) transcendem sobremaneira a esfera de movimentos artísticos, afirmando-se, em verdade, como VISÕES DE MUNDO.

Assim sendo, logram uma ressonância infinitamente mais profunda e abrangente, pois refletem, muito mais que um determinado acervo de padrões estéticos, não só perspectivas filosóficas, políticas e espirituais, mas, sobretudo, facetas permanentes da própria condição humana.

E muito embora a cosmovisão expressionista seja caudatária do ethos romântico, é precisamente a este respeito que podemos identificar a diferença crucial entre ambos: enquanto o romantismo se estabelece como revolta contra a 'Realidade' de âmbito IDEALISTA, o expressionismo encarna a mesma atitude de revolta sob um cariz NIILISTA.

Ou seja: o espírito romântico contempla a possibilidade de uma ‘realidade alternativa’ em relação ao ‘desencantamento do mundo’ (Max Weber) gerado pelo advento do iluminismo. Tal talante transformativo pode, por seu turno, revestir-se tanto d’um caráter RESTITUCIONISTA quanto dum matiz REVOLUCIONÁRIO.

No primeiro caso, postula essencialmente o retorno a um Tradionswelt , ou seja, uma ‘Idade de Ouro’, que vai decididamente de encontro ao caráter utilitário, pragmático e 'quantificável' da modernidade, em nome dos valores perenes d'uma Ordem transcendente, atemporal, pautada pelos princípios da HONRA, da LEALDADE, da REALIZAÇÃO ESPIRITUAL, da CORAGEM, da RENÚNCIA e do ASCETISMO MATERIAL, o que podemos claramente diagnosticar, por exemplo, na obra de um poeta e pensador como o alemão Friedrich Von Hardenberg, dito Novalis, mormente em seu ensaio A "Cristandade ou a Europa" (1799), onde o autor advoga um retorno à Idade Média sob os auspícios da Igreja, cuja unidade harmônica poderia regenerar espiritualmente uma Europa convulsionada por dissensões políticas e religiosas; ou então através dos romances medievalistas de seu compatriota Achim Von Arnim, animados por uma fervorosa apologética católica, bem como em numerosos outros autores do período.

Em se tratando da variante revolucionária, temos a projeção no futuro d’uma nova Humanidade liberta dos grilhões do materialismo, do egoísmo e da injustiça (a esse respeito, poderíamos citar a figura do inglês William Blake, e seu célebre poema "The French Revolution" (1791), por exemplo, onde os eventos do processo revolucionário decorrido em França entre 1789 / 1794 são transfiguradas à luz d’uma concepção mítica da História, encarada como processo em direção à sublimação total do Espírito; ou ainda o também inglês John Keats, que em composições como "Ode to Liberty" (1820), retrata o futuro como esfera de realização d’uma radiosa utopia de Amor e de Beleza, expressão suprema de todas as virtudes que, em épocas passadas, eram apenas um anseio fugidio.

Nos marcos do expressionismo, por outro lado, já não há qualquer esperança de redenção para a Humanidade, tanto no ‘passado’ quanto no ‘futuro’; seu espírito de revolta assume, portanto, um caráter de desespero cósmico, de urro primal e apocalíptico contra o sumo horror d’uma Realidade que já não mais pode ser transformada. Não por acaso, vale dizer, a poesia, o cinema, a música, a pintura, a gravura e o teatro expressionistas estão pejados de imagens recorrentes de decomposição, desintegração, putrefação, corrupção, depravação, cinismo, brutalidade, crueldade e aniquilamento, não raro evocadas com uma espécie de prazer sádico, de exaltação mórbida (considere-se, a esse respeito, o ominoso universo poético de autores como Georg Tralk (este de nacionalidade austríaca), August Stramm e Gottfried Benn.

Benn, constitui, aliás, um exemplo emblemático da contínua simbiose e interpenetração entre o expressionismo e o romantismo: a princípio um dos grandes nomes da poesia expressionista, afastou-se paulatinamente de seus horizontes iniciais e, no decorrer da década de 30, imbuído d’uma perspectiva inequivocamente romântica, gravitou em torno do Nacional-Socialismo, pois cria que o regime seria capaz de criar uma ‘Nova Esparta’, habitada por um povo de heróis (não devemos nos esquecer, há que ressaltar, que a própria ideologia nazista, que sem dúvida constitui uma manifestação de romantismo político, tampouco estava isenta de contradições – na Conferência de Bamberg (1926), por exemplo, a maioria do partido, sob a liderança de Hitler, adotou uma perspectiva mais conservadora, rejeitando a orientação mais nitidamente socialista e revolucionária que os irmãos Otto e Georg Strasser tencionavam imprimir ao movimento; a ‘Noite das Facas Longas’ (1934), com o expurgo de Ernst Rohm e da cúpula dirigente das SA, etc.).

Percebe-se, também, o influxo d’uma ‘antilógica’ do sonho – ou, mais especificamente falando, do pesadelo, no tocante ao expressionismo alemão -, onde as fronteiras entre passado, presente e futuro se desintegram, convertendo-se num fluxo subterrâneo e contínuo de espectros, penitências, temores, tormentos. Trata-se, enfim, não seria irrazoável sublinhar, d’uma lôbrega, sinistra celebração da MORTE, bem como de todas as angústias, terrores e maldições que assaltam o ser humano. Assim sendo, a arte e a literatura expressionistas conjuram uma atmosfera claustrofóbica, sufocante e soturna, sempre permeada por um enigmático senso de catástrofe iminente; e o homem, outrossim, é descrito/percebido como joguete inerme e impotente nas mãos do Destino, sempre insondável e ameaçador.

Por fim, é mister assinalar outra distinção fundamental entre as visões de mundo expressionista e romântica: o expressionismo, mergulhado num horizonte de trevas e desesperança, não é passível de ‘politização’, ou seja, de plasmar-se em ‘combustível’ ideológico para qualquer forma de ação política. O romantismo, por seu turno, ao acalentar a possibilidade de transformação radical da Realidade, torna-se, pois, plenamente permeável à ação e pensamento políticos, fenômeno amiúde verificável, saliente-se, tanto no que tange à sua vertente restitucionista, quanto no que concerne à sua faceta revolucionária (dimensões que não raro se interpenetram, registre-se).

Assim sendo, poderíamos aqui mencionar autores como o alemão Ernst Jünger, a um só tempo predicando, de um lado, nostalgia da gemeinschaft (comunidade) orgânica do medievo germânico, o primado d’uma ‘Aristocracia do Espírito’, formada por guerreiros, pensadores e poetas; e, de outro, e a premente necessidade, de maneira a proteger a nação de qualquer ameaça externa, de um Estado de ‘Mobilização Total’ ("Die Totale Mobilmachung" - 1930) da sociedade industrial em prol de um esforço de guerra permanente.

A esse respeito, destaca-se, como emblemático exemplo inicial de sua capacidade de trabalhar a partir de diferentes linhas de fuga, na obra de Jünger o extraordinário "In Stahlgewittern" (Tempestades de Aço - primeira edição em 1920 / edição definitiva em 1961). O supracitado volume constitui tanto um relato de vigoroso e implacável realismo (e, ao mesmo tempo, pejado de êxtase delirante) sobre suas experiências como tenente do exército alemão na I Guerra Mundial, quanto um dionisíaco ensaio sobre a guerra como veículo de sublimação ascética e realização espiritual.

O escritor alemão encara a experiência bélica, portanto, como derradeira oportunidade para o homem contemporâneo, ser avesso ao substrato mítico e religioso que lastreia seus alicerces históricos e culturais, livrar-se do pragmatismo medíocre e conformista, para então alçar-se à olímpica esfera das virtudes de um legítimo Kshatrya (o arquétipo védico do Guerreiro), para quem o combate tem sua recompensa em si mesmo, ainda que não seja coroado pela vitória; ou, em outras palavras: um homem para quem a guerra é uma esfera que vai muito além das causas e circunstâncias que condicionam cada conflagração em particular, estabelecendo-se, ao contrário, como dimensão cósmica que se projeta na ETERNIDADE, onde os autênticos kshatriya não podem ser derrotados pelos escravos do 'Reino da Quantidade' (Guenón), das sombras voláteis e fugidias do ‘Agora’, submetidos ao fluxo errático e transitório do TEMPO.

Para Jünger, portanto, mesmo que a vertiginosa evolução tecnológica da arte da guerra na modernidade acabe, ao fim e ao cabo, por minimizar a iniciativa individual do guerreiro, sua glória o projeta nos páramos da Eternidade. O mesmo acervo de idéias seria retomado mais tarde, vale dizer, n’outro ensaio do autor, "A Guerra como experiência interior" (1922), onde Jünger, à luz do "Bhagavad Gita", reafirma sua concepção da guerra como transfiguração coletiva do conflito primordial entre o BEM e o MAL, dimensões presentes no espírito de cada ser humano.

Mencionemos também, ainda no campo restitucionista, o filósofo italiano Julius Evola (1898 - 1974), senhor d’um estilo inigualável em sua épica majestade e estratosférico arrebatamento, com sua defesa do retorno aos arcanos da Tradição como alimento espiritual para a ‘revolta contra o mundo moderno’ (título, aliás, de seu trabalho mais importante, publicado em 1934), ainda que tal revolta conduza o ‘aristocrata do espírito’ ao desterro e isolamento no seio da sociedade burguesa (consoante enfatiza o autor siciliano, "uma única coisa deve importar ao Homem: permanecer de pé entre as ruínas."). É mister salientar o significado do conceito de Tradição engloba, em sentido lato, os fundamentos, os alicerces espirituais der cada civilização. Em sentido mais restrito (tal como o que podemos identificar, por exemplo, no pensamento de autores como o chileno Miguel Serrano e a francesa Savitri Devi - nascida Maximine Julia Portaz), trata-se na crença na ‘Idade de Ouro’ durante a existência da Hiperbórea, país mítico que, consoante a mitologia grega, localizava-se no extremo norte da Grécia, na região da Trácia (que hoje corresponde áreas da própria Grécia, da Turquia e da Bulgária), onde reinava Bóreas, o semideus do Vento Norte, súdito de Apolo.

Para Evola, trata-se, sobretudo, da revolta sagrada do sentido atávico da existência (simbolicamente encarnado nas tradições culturais caudatárias do ethos hiperbóreo) contra os falsos ídolos da razão, cujo móvel seria aniquilar qual sede de realização espiritual na alma do homem contemporâneo. Tal perspectiva, que predica a nobreza do espírito ascético do ‘Aristocrata de Espírito’ em meio à desintegração política, moral e cultural, sob a égide das ideologias iluministas, da civilização ocidental é, vale dizer, sintetizada à perfeição num dos mais incisivos ensaios de Evola, "Orientações" (1971): "No sentido espiritual, existe efetivamente algo que pode servir como orientação para as nossas forças de resistência e de revolta: este algo é o espírito legionário. É a atitude de quem sabe escolher o caminho mais duro, de quem sabe combater ainda que sabendo que a batalha está materialmente perdida, de quem sabe reviver e revalidar as palavras da antiga saga nórdica: «A fidelidade é mais forte do que o fogo»."

Por fim, no que concerne à faceta revolucionária do romantismo político, há que mencionar o engenheiro e sociólogo francês Georges Sorel (1847 - 1922), que em sua obra magna, "Reflexões sobre a Violência" (1908), estabelece uma distinção entre as noções de 'mito' - numa acepção político-ideológica do termo - e 'utopia / ideal', com o 'mito revolucionário' funcionando como 'profecia auto-realizável', no sentido de não depender de fatores transcendentes para ser levado a efeito; ou ainda o militante político e ensaísta peruano José Carlos Mariátegui (1894 -1930), que advogava, sob a influência do supracitado Sorel e de Charles Péguy, que "O mito move o homem na história. Sem um mito a existência do homem não tem nenhum sentido histórico. A história, fazem-na os homens possuídos e iluminados por uma crença superior, por uma esperança sobre-humana; os demais constituem o coro anônimo do drama. A crise da civilização burguesa mostrou-se evidente desde o instante em que esta civilização constatou a carência de um mito.(...) a força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. E uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito.” ("O Homem e o Mito" - 1925)

Mariátegui ressaltava, assim, a profunda emoção messiânica inerente a qualquer processo revolucionário, bem como seu caráter decididamente voluntarista e romântico; concebe, pois, o pensamento marxista não como tola pseudociência desprovida de fundamento epistemológico, mas como creación heroica da sociedade revolucionária. Destarte, o autor peruano insere-se inequivocamente na perspectiva de uma espécie de 'teologia messiânica' da ação revolucionária, onde, por um lado, o fervor religioso engendra a transformação política, e a consciência política, por outro, desperta a fé religiosa para a realidade concreta do Homem. É, em última análise, a concepção da política revolucionária como Mito e Mística, fome do Absoluto, construção mítica d’uma Nova Humanidade.

O expressionismo, por seu turno, renunciando a qualquer possibilidade de intervenção política, mergulha num turbilhão de pesadelos e aspirações caóticas.

Reparem, por exemplo, neste emblemático desígnio entranhado no imo do ethos expressionista: por um lado, celebra-se / exalta-se a ‘Ditadura do Espírito’ sobre a Matéria, ou, n’outros termos, a brutal disposição do Eu totalitário que, negando a realidade objetiva, molda o Universo a sua imagem e semelhança; e, por outro lado, tal visão de mundo revolta-se in limine contra qualquer autoridade socialmente constituída, justo porque tais autoridades emanam d’um ‘contrato coletivo’ objetivamente formulado, mas que não é sancionado por todos os indivíduos, e que vai especialmente de encontro às aspirações e desígnios daqueles que estão fora da esfera de convenções e procedimentos-padrão do ‘homem médio’. Percebe-se, pois, na cosmovisão expressionista, um inexorável sentimento de desconfiança, e mesmo de aversão, a qualquer forma de autoridade que não surja do livre jogo das subjetividades do EU.

A incapacidade de formular uma perspectiva transformativa do mundo radica na convicção de que o expressionista já não 'vê', mas tem 'visões'. Ou seja, a realidade não é mais contemplada segundo os dados dos sentidos, mas o homem consegue tão somente projetar visões subjetivas e interiorizantes do Real. A cadeia de fatos já não mais existe, existindo tão somente a visão interior que provocam. É preciso aprofundar sua essência, discernir o que há além de sua forma acidental. É o artista que, trespassando-os, se apodera da forma real que há por trás deles, e permite o conhecimento de sua essência verdadeira. O artista expressionista procura, em lugar de um efeito passageiro, o significado eterno dos fatos e objetos. Devemos - dizem os expressionistas -, nos desligar da natureza e tentar resgatar a “expressão mais expressiva de um objeto”, pois somente assim sua aura visível pode ser atravessada.

É preciso tratar ainda de outro ponto do expressionismo: a questão da abstração da realidade. O historiador Wilhelm Worringer, em seu "Abstraktion und Einfühlung" (1907), antecipa muitos preceitos do expressionismo, o que prova a que ponto esses axiomas estéticos estão próximos da weltanschauung alemã.

A abstração, argumenta Worringer, nasce da grande inquietação que experimenta o homem aterrorizado pelos fenômenos que constata a seu redor e dos quais é incapaz de decifrar as relações, os misteriosos contrapontos. Essa inquietação primordial diante do ilimitado faz com que o homem tenha o desejo de ‘arrancar’ o objeto de seu contexto original, libertá-lo de sua teia de relações com os demais objetos, com o objetivo de, tornando-o único, atingir seu absoluto. Consoante tal perspectiva, o homem nórdico sempre sentirá a presença de “um véu entre ele e a natureza”, e por isso aspira a uma arte abstrata. Os povos germânicos, atormentados por uma discordância interior, que encontra obstáculos quase insuperáveis, precisam desta patética agonia que conduz à enigmática “animação do inorgânico”, tema que, aliás, é central na produção literária do romantismo alemão, e que pode ser visto em alguns dos melhores relatos de E.T.A Hoffmann, tais como "O Homem de Areia" e "Os Autômatos", bem como desempenhará um papel fundamental em um filme como "O Gabinete do Dr. Caligari". A energia vital presente no inorgânico, o estado de animação suspensa em que se encontram os objetos, são o caminho para atingir a essência de seu absoluto, que independe do estabelecimento de quaisquer relações transitórias.

Worringer considera que o homem mediterrâneo, tão perfeitamente harmônico, jamais conhecerá esse êxtase da “abstração expressiva”; Edschmid, por seu turno, enfatiza ainda que tudo deve permanecer na condição de esboço e vibrar de tensão imanente, para que sejam salvaguardadas a efervescência e a excitação perpétuas. Trata-se, pois, d'um mundo paralelo, povoado por visões subjetivas, misteriosas agitações do inorgânico e profecias inquietantes sobre uma nova era, a aurora de milagres cruéis.










segunda-feira, novembro 01, 2010

Le Cimetière Marin (1920) - Paul Valéry

Ó egrégios irmãos d'armas:

Inelutavelmente uma das inteligências mais fulgurantes, lúcidas e rigorosas de todos os tempos, Paul Valéry é um autor cujo talento multiforme e surpreendente se manifestou, sempre com rara consistência e beleza, nas mais diversas esferas do conhecimento e da arte; ademais, como eixo central a lastrear toda a sua trajetória intelectual (sobretudo no espectro da vasta e ainda pouco explorada cosmogonia que são os Cahiers valeryanos), encontramos um esforço analítico sistemático e contínuo na compreensão dos processos operacionais da inteligência no âmbito da atividade criadora, isto é, a identificação de uma 'atitude central' a coordenar todas as operações criadoras do intelecto. Tal perspectiva, creio, delineia horizontes de capital importância no bojo da epistemologia, cujo alcance e profundidade mal começaram a ser mapeados.

Exemplo lapidar dessa refinada ars combinatoria é o célebre poema que aqui recito, composição estruturada com elegância e precisão matemáticas em suas requintados arabescos verbais:





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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte – Deserto dos Tártaros

XII Teses Nacional-Bolcheviques

Alphonse van Worden - 1750 AD






- Conceber, de forma clara e inequívoca, que tanto o socialismo quanto o liberalismo são tão somente as 'duas cabeças de Janus' do pior inimigo da Humanidade: o Iluminismo.

- Ter em mente que a oposição entre 'fascismo / nacional socialismo' - 'bolchevismo' já não possui hoje mais qualquer sentido, uma vez que se estribava em circunstâncias transitórias de índole política, econômica e cultural irrelevantes no mundo contemporâneo.

- Compreender o profundo elo metafísico que une as supracitadas perspectivas ideológicas: a ‘revolta do Coração contra a Razão’ (Dugin), do impulso romântico-messiânico e do sentido atávico da existência contra os falsos ídolos da razão. Lutar, portanto, pela superação da falsa dicotomia entre 'esquerda' e 'direita', que gerou as grandes tragédias políticas e militares da modernidade.

- Estudar, na medida do possível, o pensamento de numerosos autores e líderes políticos, provenientes de diversos países e contextos culturais (Corneliu Codreanu, Ernst Jünger, Julius Evola, Otto Strasser, Nikolai Ustrialov, Ernst Niekisch, Carl Schmitt, Giovanni Gentile, etc.), que começaram a lançar, já nas primeiras décadas do século XX, os alicerces filosóficos, espirituais e políticos desta ampla convergência entre grandes as correntes de pensamento anticapitalistas e antiburguesas, por um lado; e por outro, as principais tradições esotéricas da revolta irracionalista contra a 'Sociedade Aberta' ao longo da História.

- Pugnar contra o grande obstáculo no que concerne à materialização de nosso projeto, isto é, o facto de que expressiva parcela dos movimentos políticos contemporâneos, tanto à esquerda quanto à direita, não consegue romper com o rigor mortis dos esquematismos ideológicos, com a fixidez estéril dos dogmatismos monocromáticos.

- Ter a ciência de que admirar / advogar uma determinada característica / elemento de uma corrente ou regime político, NÃO significa que o indivíduo seja obrigado a, inexorável e necessariamente, ‘comprar’ o ‘pacote completo’ da perspectiva ideológica adjacente.

- Entender, d’uma vez por todas, que os sistemas ideológicos ‘fechados’ (comunismo, socialismo, anarquismo, fascismo, liberalismo, etc.) fracassaram redondamente, e já não correspondem às demandas e tarefas do presente. É preciso refundar todo o agir político em novas bases, incorporando o que há de aproveitável em cada perspectiva, e descartando o restante.

- Perceber que o Nacional-Bolchevismo não é apenas um movimento político, mas também parte integrante de um vasto e ambicioso esforço de compreensão do que há de mais recôndito, de mais arcano, de mais primordial, de mais fatal e inexorável em cada cultura; ou seja, do substrato simbólico, dos arquétipos fundamentais, dos mitos fundadores de cada civilização, com o fito de encontrar o 'elo perdido' na aurora da História, a remota unidade transcendente entre todas as grandes Tradições orientais e ocidentais. E tal processo envolve a busca pela seiva vital das tradições culturas e civilizações de índole telurocrática e / ou eurasiana, isto é, dos complexos civilizacionais cujos alicerces mais profundos vão de encontro ao 'atlantismo' talassocrático, à 'Sociedade Aberta', ao iluminismo, ao liberalismo e ao socialismo marxista.

- Incorporar o ideário distributivista de Chesterton e Belloc - perspectica que preconiza que os meios de produção devem pertencer ao maior número de indivíduos possível, e não permanecer sob o controle d'uma minoria proprietária (tal como no capitalismo), ou então sob a égide de um estamento gerencial (conforme ocorre no socialismo) – como ponto de partida para a concepção de um modelo de organização social alternativo.

-Estar de olhos abertos para a análise e incorporação de processos políticos revolucionários fora do horizonte ocidental. Exemplo emblemático: a Revolução Islâmica no Irã, quando o Ayatollah Khomeini, em lugar de canalizar politicamente o Islã para fazer a revolução iraniana, ou seja, fazer uso da religião para agir politicamente, lançou mão da política para atuar religiosamente em prol da regeneração espiritual e moral de seu país.

- Absorver uma sábia lição ministrada pelo pensador alemão Carl Schmitt: a distinção, de origem iluminista, entre ‘esfera privada’ (onde o cidadão poderia professar o credo que bem entendesse), de um lado, e uma ‘esfera pública’ (onde o cidadão deveria observar o pensamento oficialmente adotada pelo Estado), de outro, abriu espaço para o advento do liberalismo político, cujo centro de gravidade é justamente a conquista de garantias jurídicas para o exercício das liberdades individuais, em detrimento do raio de alcance do poder estatal. Hoje podemos de sobejo verificar quão precisa foi a diagnose schmittiana: a ‘atuação indireta’ empreendida pelos diversos movimentos de ação política (ONG’s, sindicatos, movimentos de ‘ação afirmativa’, lobbies empresariais, etc.) ligados à ‘Sociedade Civil’ organizada - ‘indireta’ por formalmente ser levada a efeito fora da esfera específica dos mecanismos e instâncias do aparato estatal (muito embora não raro nele inseridos, mormente por intermédio da via parlamentar) -, acaba por beneficiar-se da ausência de responsabilidade institucional inevitavelmente associada à ação de Estado. Tal circunstância permite, pois, aos supracitados movimentos usufruir de todas as ‘vantagens’ relacionadas ao exercício do poder e, simultaneamente, evitar o ônus que inexoravelmente recai sobre as autoridades constituídas.

- Compreender, por fim, a estreita ligação entre a filosofia do Nacional-Bolchevismo e o universo do Traditionswelt descrito por autores como o italiano Julius Evola. Trata-se, com efeito, da visão de mundo de um homem que vai decididamente de encontro ao caráter utilitário, pragmático e 'quantificável' da modernidade, em nome dos valores perenes d'uma Ordem transcendente, atemporal. É, portanto, a contraposição essencial, transfigurada em conflito político, entre a dimensão contingente, transitória, cambiável e finita do TEMPO e a esfera necessária, permanente, imutável e infinita da ETERNIDADE; ou então, nos termos d'uma belíssima declaração do líder taliban, Mullah Omar ("Não tememos a morte, pois já estamos mortos; assim sendo, combatemos no Tempo, mas vivemos na Eternidade"), do confronto entre 'guerreiros santos' sublimados pela lux aeterna da Tradição, e vacilantes 'homens ocos' (TS Eliot) sob a égide do materialismo espiritual do Ocidente contemporâneo, seres avessos ao substrato mítico e religioso que lastreia seus alicerces históricos e culturais, em ruptura flagrante com as raízes mais atávicas de sua própria existência.

sexta-feira, outubro 01, 2010

Begnagrad!




Uma das características mais fascinantes do chamado Rock in Opposition é sua capacidade ímpar de absorver não apenas formações de diferentes partes do mundo, mas sobretudo de integrar tradições musicais autóctones no âmbito da música de vanguarda. Desde o início do movimento, bandas como Univers Zero (Bélgica), Samla Mammas Manna (Suécia) ou Stormy Six (Itália) trabalharam, com extraordinários resultados artísticos, texturas sonoras de seus países num contexto avant garde; o mesmo ocorre com o trabalho desta banda eslovena que agora iremos examinar.

O Begnagrad iniciou suas atividades em 1976 na cidade de Ljubljana, capital da Eslovênia; seu primeiro disco, intitulado Tastare (gravado em 1977-78, mas lançado apenas em 1992), mapeia o trabalho desenvolvido pelo grupo entre 76 e 78, se caracterizando por uma sonoridade complexa e melódica, com farta presença de elementos da música folclórica eslovena, numa abordagem que lembra bastante os álbuns do Samla Mammas Manna e do Stormy Six. Todavia, em Konzert For a Broken Dance (lançado originalmente na Eslovênia em 1982, pela gravadora local Zalozba), percebem-se nítidas mudanças: a banda ganha bastante em peso e agressividade, com fortes traços de free jazz e música erudita contemporânea, num contexto que se aproxima dos trabalhos mais radicais do Henry Cow. Os elementos étnicos continuam tendo ampla e significativa presença, mas agora inseridos num contexto sombrio e muito mais complexo. Uma instrumentação mais elétrica, com guitarras distorcidas e bateria, contribui para uma atmosfera algo caótica, numa curiosa mescla com o caráter celebratório e espirituoso da tradição musical balcânica.

O disco abre em alta voltagem com a ‘stravinskiana’ Romanticna, que se caracteriza por um intrincado dueto de clarinete e acordeom, emoldurado por uma bateria descompassada e golpes percussivos de contrabaixo; seguimos com Pjanska, bem agressiva, que principia numa atmosfera frenética e espirituosa e evolui numa caótica levada de free jazz, acabando por desembocar num velocíssimo solo combinado de clarinete e bateria; a terceira faixa, Bo Ze (Ce Bo), transfigura o contexto de uma etílica festa camponesa, com muitos ruídos desconexos, irônicas intervenções vocais e um ritmo fragmentário; a ambiência etílica permanece em Cosa Nostra , só que agora num registro mais sombrio e pesado, de ressonância ‘bartokiana’, com destaques para o acordeom de Bibic e o contrabaixo de Gleria, ambos ótimos; a orgia campestre prossegue, cada vez mais ensandecida e violenta, nas duas músicas seguintes: Narodna / Kmetska se caracteriza por súbitas e inusitadas mudanças de andamento, com magníficas tramas de sopros, acordeom e vocais alucinados, enquanto Cocn Rolla, mais turbulenta, explode na violência rítmica da bateria de Rendla e na potência da guitarra maníaca de Romih. O clima torna-se mais suave na sétima faixa, Zvizgovska, com belos arpejos de guitarra acústica, sofisticadas harmonias de assovios e o sempre marcante acordeom de Bibic. Jo di di Jo, uma breve vinheta vocal em clima tirolês, prepara o terreno para a fantástica música de encerramento, Tazadnatanova: em seus 5 minutos iniciais, o Begnagrad nos presenteia com um magnífico tema fusion, com grandes passagens de sopros e bateria, tema esse que irá se transformar, nos 3 minutos finais, em mais uma lisérgica e caótica festança celebratória destes campônios pós-modernos da Eslovênia.

Em suma: Konzert For a Broken Dance é uma obra-prima, uma fusão sublime entre a genial psicose vanguardista do R.I.O e um sério trabalho de recuperação das tradições musicais centro-europeias, numa eloqüente e autêntica demonstração de como o ‘velho’ e o ‘novo’ podem se conjugar para estabelecer o ETERNO.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros


O périplo de um PROFETA

Alphonse van Worden - 1750 AD







Dirigido por Paloma Rocha e Joel Pizzini, Anabazys (2007) não é apenas um filme; é, como seu próprio subtítulo aponta, o “Terceiro Testamento de Glauber Rocha”, o eloqüente testemunho do assombroso périplo de um Profeta em seus últimos passos sobre a Terra.

Anabazys a princípio se propõe como documentário sobre as circunstâncias que cercaram a produção, os bastidores e a recepção de A Idade da Terra (1980); não obstante, trata-se d’algo muito mais ambicioso e essencial, vale dizer, de um verdadeiro ‘Segundo Advento’ da última e mais abrangente profecia glauberiana.

Não poderia continuar a discorrer sobre o filme de forma objetiva, não sem antes pelo menos fazer um registo pessoal: Anabazys emocionou-me muitíssimo, não apenas por celebrar a magnitude d’um gênio de ciclópicas proporções, que perdemos tragicamente cedo, e que se calhar jamais será igualado, mas, sobretudo, (e por isto mesmo saliento a índole subjetiva desta observação) por fortalecer-me ainda mais a convicção de que o opus glauberiano (mormente a partir do manifesto Eztetyka do Sonho - 1971­, mas já com certas alusões presentes em Terra em Transe - 1967) é a verdadeira transfiguração estético-alegórica do projeto de refundação mística e mítica do agir político que há tempos venho acalentando, vale dizer, a superação da falsa dicotomia entre 'esquerda' e 'direita' (que gerou as grandes tragédias políticas, militares e culturais da modernidade) através da intuição profunda de que a política não é apenas conflito ideológico ou administração pública, mas essencialmente MITO e MÍSTICA, mergulho abissal na imponderabilidade das paixões revolucionárias.

Transcender o falso 'dilema' acima mencionado é, sem dúvida, a grande tarefa a que se propõe a chamada Terza Posizione, termo cunhado em 1978, com a criação do movimento político homônimo em Itália, sob a liderança de Peppe Di Mitri, e tendo como principais ideólogos Roberto Fiore e Gabriele Adinolfi.

Torna-se cada vez mais evidente, pois, a existência d'uma oposição irreal, já que ditada por meras circunstâncias transitórias de índole 'política', 'econômica' e 'cultural', entre dois campos semânticos e simbólicos unidos por um profundo elo metafísico: a revolta sagrada do Espírito contra a ditadura ‘funcionalista’ da Razão ‘instrumental’; do impulso romântico-messiânico contra os falsos ídolos do pragmatismo burguês; da esfera necessária, permanente, imutável e infinita da ETERNIDADE contra a dimensão contingente, transitória, cambiável e finita do TEMPO (ou então, nos termos d'uma belíssima declaração do líder taliban mullah Omar: "não tememos a morte, pois já estamos mortos; assim sendo, vivemos no Tempo, mas combatemos na Eternidade."); enfim, do rutilante fulgor da TRADIÇÃO contra a pseudoconsciência errática e fragmentária da MODERNIDADE.

E malgrado Di Mitri, Fiore e Adinolfi tenham cunhado o termo e, de certa forma, delineado os aspectos gerais do pensamento Terza Posizione,penso que o filósofo russo Aleksandr Dugin (tido, aliás, como um dos principais conselheiros políticos de Vladimir Putin, ex-presidente e atual primeiro-ministro da Rússia)  é hoje o pensador mais ousado no âmbito de tal perspectiva ideológica.

A grande 'estratégia' duginiana, por assim dizer, é justamente trabalhar, no âmbito da noção de 'geografia sagrada', categorias de análise tradicionalmente empregues na reflexão geopolítica. E em que consiste tal noção?  Enquanto a geopolítica opera na esfera do cálculo econômico, das relações comerciais, do paralelogramo das forças políticas em ação, a 'geografia sagrada' mergulha no universo dos Arquétipos Tradicionais e Mitos Fundadores, isto é, no escopo do substrato simbólico presente na origem de cada complexo civilizacional. E tal processo envolve, na esfera mais especificamente político-ideológica, a busca pela seiva vital das tradições culturais e civilizações de índole telurocrática e / ou eurasiana, isto é, dos complexos civilizacionais cujos alicerces mais profundos vão de encontro ao 'atlantismo talassocrático’, à 'Sociedade Aberta', ao iluminismo e ao liberalismo.

Muito embora jamais tenha sido associado, mesmo que remotamente, a qualquer corrente de pensamento Terza Posizione, evrasiana ou 4tp, não hesito em afirmar que o cineasta, pensador e escritor brasileiro Glauber Rocha (1939-1981) enveredou, tanto no que se refere ao arcabouço estético de seus filmes quanto no que tange à suas idéias políticas, por sendas que inequivocamente tangenciam a GRANDE SÍNTESE. Foi, antes de mais nada, um homem de horizontes largos, delirantemente ambiciosos, artista e pensador de fôlego profético, cujas realizações sempre transcenderam a injunções limitadas de um dado contexto histórico para arrojar-se na transcendência fulgurante das visões ESSENCIAIS. Não seria, pois, inusitado afirmar que Glauber opera, ao longo de sua trajetória, uma espécie de 'transubstanciação alquímica' da 'Geografia Sagrada' em arte cinematográfica.

Com efeito, a obra de Glauber flui numa linha ascendente, tanto no plano estético e artístico quanto no sentido da evolução progressiva de um projeto a um só tempo ideológico, espiritual e existencial. A cada filme e texto são agregados novos elementos, novas perspectivas a este work in progress, que vai expandindo suas coordenadas, revestindo-se de aspectos cada vez mais multifacetados e complexos, até o seu surpreendente coroamento final com A IDADE DA TERRA (1980). 

É, pois, fascinante observar como esse work in progress glauberiano vai se processando ao longo de sua trajetória. Em BARRAVENTO (1962) e DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL (1964), seus primeiros longas-metragens, podemos observar um cinema ainda determinado por parâmetros narrativos e estéticos tradicionais, caudatário, sobretudo, do 'cinema dialético' do soviético de Sergei Eisenstein (1898-1948) e do neo-realismo italiano, não podendo também deixar de ser mencionada, especialmente no que concerne ao trabalho de direção dos atores, uma substancial influência da dramaturgia de Bertolt Brecht. Já em TERRA EM TRANSE (1967), por exemplo, pode se calhar ser encarado como o marco inicial desse verdadeiro processo de transfiguração estético-alegórica do projeto de refundação mística e mítica da ação política. E se a princípio é patente o influxo dos modelos europeus de cinematografia e dramaturgia,  Glauber se afasta paulatinamente de tais influências em direção a uma estética totalmente original, fusão de alegoria barroca, pajelança antropofágica e cristianismo libertário, num processo que acompanha o seu desligamento progressivo das categorias racionalistas da ortodoxia marxista em direção a um conceito de revolução messiânica, cujo veículo de transformação é precisamente o êxtase místico convertido em agir político.




A partir da trinca de longas que dirigiu no exterior (CABEZAS CORTADAS - 1970; DER LEON HAS SEPT CABEZAS - 1970; CLARO - 1975) e, por fim, em A IDADE DA TERRA, obra que é muito mais uma experiência, um ensaio aberto, do que a estrutura fechada com ‘início-meio-fim’ que tradicionalmente entendemos como um 'filme', a dimensão ritualística da obra de Glauber, presente como embrião já nos primeiros curtas, atinge o seu ponto máximo de realização. A IDADE DA TERRA é  uma 'missa bárbara', que celebra a ascensão de uma nova divindade, o Cristo do Terceiro Mundo, que é o próprio povo em seu êxtase místico. Um Cristo que não é o do martírio na cruz, mas o Cristo da ressurreição, da libertação. Fazendo uso de linguagens tão diversas como a poesia, o teatro, a entrevista, a farsa, o documentário, Glauber registra o percurso desse Cristo plural, que emana dos anseios mais profundos do povo cristão, que é, ao fim e ao cabo, a materialização simbólica de seu inconsciente coletivo.

A ruptura do cineasta com as engessadas estruturas ideológicas da esquerda 'oficial', e também com a interpretação materialista da História, se torna, com este filme, irreversível. O Cristo do Terceiro Mundo é, pois, o surgimento de uma nova dimensão revolucionária, o advento da civilização fundada no amor. Como diz o próprio cineasta, em extraordinário texto publicado alguns anos antes (Eztetyka do Sonho - 1971), "a revolução é uma mágica porque é o imprevisto dentro da razão dominadora"; e outrossim acrescenta: “na medida em que a desrazão planeja a revolução, a razão planeja a repressão”. A dimensão do delírio, transformada em arma do povo, escapa ao entendimento do dominador, que apenas pode compreender o que atua dentro de sua própria lógica. Só o irracionalismo das massas iluminadas pelo êxtase místico pode romper o círculo vicioso da razão moderna. O racionalismo é, pois, um instrumento de legitimação do Sistema, é a linguagem do dominador. Só a lógica, melhor dizendo, a anti-lógica do sonho, o ‘desreinado’ delirante do sonho, pode inverter as polaridades e provocar um curto circuito nas estruturas de dominação da racionalidade materialista/capitalista. Trata-se, por conseguinte, da formulação última de seu messianismo revolucionário, onde o povo, sem mediações teóricas ou políticas, se converte em sujeito histórico de sua própria libertação na fé do Cristo, encarnação coletiva da liberdade.

Glauber sintetiza de forma magistral a natureza messiânica e mítica da Revolução, a dimensão mística, irracional, imprevisível e emocional presente intrinsecamente em todo processo revolucionário. É a 'revolução' como categoria mítica, fenômeno que pode ser interpretado por uma analítica científica, não se enquadra em nenhum dos pressupostos epistemológicos e metodológicos da razão científica; ao contrário, afigura-se muito mais como fenômeno de cunho mítico-religioso, impermeável a análises racionalistas, o que fica patente em outras passagens memoráveis de Eztetyka do Sonho: "As revoluções se fazem na imprevisibilidade da prática histórica que é a cabala do encontro das forças irracionais das massas pobres (...) a revolução, como possessão do homem que lança sua vida rumo a uma idéia, é o mais alto astral do misticismo." Revolução, portanto, não como processo meramente político-ideológico, mas sim como Arte, Delírio, Sonho, Mito e Mística, espiral estratosférica em direção à Grande Síntese.

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Por fim, postarei aqui a íntegra de Eztetyka do Sonho, bem como do magnífico monólogo de Glauber em A IDADE DA TERRA, textos-chave para o entendimento de sua cosmovisão.

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 Eztetyka do Sonho (1971)

(...) Este congresso em Columbia é uma oportunidade que tenho para desenvolver algumas idéias a respeito de arte e revolução. O tema da pobreza está ligado a isto.

As Ciências Sociais informam estatísticas e permitem interpretações sobre a pobreza.
As conclusões dos relatórios dos sistemas capitalistas encaram o homem pobre como um objeto que deve ser alimentado. E nos países socialistas, observamos a permanente polêmica entre os profetas da revolução total e os burocratas que tratam o homem como objeto a ser massificado. A maioria dos profetas da revolução total é composta por artistas (...).

Arte revolucionária foi a palavra de ordem no Terceiro Mundo nos anos 60 e continuará a ser nesta década. Acho, porém, que a mudança de muitas condições políticas e mentais exige um desenvolvimento contínuo dos conceitos de arte revolucionária.

O primarismo muitas vezes se confunde com os manifestos ideológicos. O pior inimigo da arte revolucionária é sua mediocridade.

Diante da evolução sutil dos conceitos reformistas da ideologia imperialista, o artista deve oferecer respostas revolucionárias capazes de não aceitar, em nenhuma hipótese, as evasivas propostas.

E, o que é mais difícil, exige uma precisa identificação do que é arte revolucionária útil ao ativismo político, do que é arte revolucionária lançada na abertura de novas discussões do que é arte revolucionária rejeitada pela esquerda e instrumentalizada pela direita (...).

(...) Uma obra de arte revolucionária deveria não só atuar de modo imediatamente político, como também promover a especulação filosófica, criando uma estética do eterno movimento humano rumo à sua integração cósmica.

A existência descontínua desta arte revolucionária no Terceiro Mundo se deve fundamentalmente às repressões do racionalismo.

Os sistemas culturais atuantes, de direita e de esquerda, estão presos a uma razão conservadora. O fracasso das esquerdas no Brasil é resultado deste vício colonizador.

A direita pensa segundo a razão da ordem e do desenvolvimento (...). As respostas da esquerda, exemplifico outra vez no Brasil, foram paternalistas em relação ao tema central dos conflitos políticos: as massas pobres.

O Povo é o mito da burguesia.

A razão do povo se converte na razão da burguesia sobre o povo.
(...) A razão de esquerda revela-se herdeira da razão revolucionária burguesa européia. A colonização, em tal nível, impossibilita uma ideologia revolucionária integral, que teria na arte sua expressão maior, porque somente a arte pode se aproximar do homem na profundidade que o sonho desta compreensão possa permitir.

A ruptura com os racionalismos colonizadores é a única saída.

(...) A revolução é a anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais irracional de todos os fenômenos que é a pobreza.

Nenhuma estatística pode informar a dimensão da pobreza.

A pobreza é a carga autodestrutiva máxima de cada homem, e repercute psiquicamente de tal forma que este pobre se converte num animal de duas cabeças: uma é fatalista e submissa à razão que o explora como escravo. A outra, na medida em que o pobre não pode explicar o absurdo de sua própria pobreza, é naturalmente mística.

A razão dominadora classifica o misticismo de irracionalista, e o reprime à bala. Para ela, tudo que é irracional deve ser destruído, seja a mística religiosa, seja a mística política. A revolução, como possessão do homem que lança sua vida rumo a uma idéia, é o mais alto astral do misticismo. As revoluções fracassam quando esta possessão não é total (...), quando, ainda acionados pela razão burguesa, método e ideologia se confundem a tal ponto que paralisam as transações da luta.

Na medida em que a desrazão planeja as revoluções a razão planeja a repressão. (...)

Há que tocar, pela comunhão, o ponto vital da pobreza que é seu misticismo. Este misticismo é a única linguagem que transcende o esquema racional da opressão. A revolução é uma mágica porque é o imprevisto dentro da razão dominadora. No máximo é vista como uma possibilidade compreensível (...).

O irracionalismo libertador é a mais forte arma do revolucionário. E a libertação, mesmo nos encontros da violência provocada pelo sistema, significa sempre negar a violência em nome de uma comunidade fundada pelo sentido do amor ilimitado entre os homens. Este amor nada tem a ver com o humanismo tradicional, símbolo da boa consciência dominadora.

As raízes índias e negras do povo latino-americano devem ser compreendidas como única força desenvolvida deste continente. Nossas classes médias e burguesias são caricaturas decadentes das sociedades colonizadoras.

A cultura popular não é o que se chama tecnicamente de folclore, mas a linguagem popular de permanente rebelião histórica.

O encontro dos revolucionários desligados da razão burguesa com as estruturas mais significativas desta cultura popular, será a primeira configuração de um novo significado revolucionário.

O sonho é o único direito que não se pode proibir.

(...)Hoje recuso falar em qualquer estética. A plena vivência não pode se sujeitar a conceitos filosóficos. Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não mais suporte viver nesta realidade absurda.

Borges, superando esta realidade, escreveu as mais libertadoras irrealidades de nosso tempo. Sua estética é a do sonho. Para mim é uma iluminação espiritual que contribuiu para dilatar minha sensibilidade afro-índia na direção dos mitos originais da minha raça.

Esta raça, pobre e aparentemente sem destino, elabora na mística seu momento de liberdade. Os Deuses Afro-índios negarão a mística colonizadora do catolicismo, que é feitiçaria da repressão e da redenção moral dos ricos.

Não justifico nem explico meu sonho porque ele nasce de uma intimidade cada vez maior com o tema dos meus filmes, sentido natural de minha vida.

Glauber Rocha
Columbia University – New York
Janeiro de 1971

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Discurso final, em off, de A Idade da Terra

"No dia em que Pasolini, o grande poeta italiano, foi assassinado, eu pensei em filmar a vida de Cristo no Terceiro Mundo. Pasolini filmou a vida de Cristo na mesma época em que João XXIII quebrava o imobilismo ideológico da Igreja Católica em relação aos problemas dos povos subdesenvolvidos do Terceiro Mundo e também em relação à classe operária européia. Foi um renascimento. A ressurreição de um Cristo que não era adorado na cruz, mas um Cristo que era venerado, revivido, revolucionado num êxtase da ressurreição.

Sobre o cadáver de Pasolini, eu pensava que o Cristo era um fenômeno novo, primitivo numa civilização muito primitiva, muito nova. (...)

São quinhentos anos de civilização branca, portuguesa, européia, misturada com índios e negros e são milênios além da medida dos tempos aritméticos ou da loucura matemática que não se sabe de onde veio nem mesmo a nebulosa do caos, no nada. Ou seja, Deus ou nada, quem não acredita em Deus, acredita no nada. Se nada for Deus...

Então, é muito rápida a história. É uma história de uma velocidade fantástica, é um desespero lisérgico. (...)

Aqui, por exemplo, em Brasília, neste palco fantástico no coração do planalto Brasileiro, forte irradiação, luz do Terceiro Mundo, numa metáfora que não se realiza na história, mas preenche um sentimento de grandeza, a visão do paraíso, essa pirâmide, esta pirâmide que é a geometria dramática do estado social, no vértice o poder, embaixo, as bases e depois os labirintos intrincados das mediações...

Toda essa ideologia do amor se concentraria no cristianismo, que é uma religião linda dos povos africanos, asiáticos, latino-americanos, dos povos totais, um cristianismo que não se realiza somente na Igreja Católica, mas em todas as religiões que encontram seus símbolos mais profundos, mais recônditos, mais eternos , mais subterrâneos, mais perdidos, na figura do Cristo, um Cristo que não está morto, mas está vivo espalhando amor e criatividade.

A busca da eternidade e a vitória sobre a morte, porque a morte é uma estruturação determinada por um código fatalista, talvez de origens sexuais ou genéticas, quien lo sabe... pero se pode vencer a morte.

Então, a civilização é muito pequena. Antes de Cristo e depois de Cristo. Um desenvolvimento tecnológico na Europa, econômico, o mercantilismo, capitalismo, neocapitalismo, socialismo, o transcapitalismo, o trans-socialismo, o anarco-construtivismo, todo um desespero de uma humanidade em busca de uma sociedade perfeita, as utopias, a marcha... Conflitos religiosos entre católicos e protestantes provocaram explosões, navegações, guerras, invasões mouras na Europa, invasões cristãs na África do Norte; Espanha, Portugal e Inglaterra ocupam a América no outro lado. Índios massacrados, negros importados, guerras de independência, latifúndios e indústrias, guerras de latifúndios e indústrias, guerras de indústrias e latifúndios, guerras civis, levantes, caudilhos, guerras, guerrilheiros, revoluções, golpes de estados, democracias, regressões, avanços, recuos, sacrifícios, martírios, América. América do Norte se desenvolve.

O desenvolvimento tecnológico americano leva a civilização ao mundo do século XX. A Revolução Soviética, a Revolução Soviética, a Re-volução Soviética de 1917 comandada por Lenine, Trotski e Stalin subverte completamente o discurso capitalista norte-americano. Enquanto isso, os povos subdesenvolvidos da América Latina, da África e da Ásia pagam o preço do desenvolvimento tecnológico da Europa, dos Estados Unidos, da Europa capitalista, da Europa socialista, da Europa católica, da Europa protestante, da Europa atéia, dos Estados Unidos.

Os povos subdesenvolvidos estão na base da pirâmide. Não podem fazer nada. Todos buscam a paz. Todos devem buscar a paz. Existirá uma síntese dialética entre o capitalismo e o comunismo, estou certo disso. E do Terceiro Mundo. Seria o nascimento da nova, da verdadeira democracia. A democracia não é socialista, não é comunista, não é capitalista. A democracia não tem adjetivos.

A democracia é o reinado do povo. A de-mo-cra-cia, a democracia é o desreinado do povo. Sabemos todos que morremos de fome nos terceiros mundos, sabemos todos das crianças pobres, dos velhos abandonados, dos loucos famintos, tanta miséria, tanta feiúra, tanta desgraça, sabemos todos disso.

É necessária uma revolução econômica, social, tecnológica, cultural, espiritual, sexual, a fim de que as pessoas possam realmente viver o prazer. O Brasil é um país grande, a América Latina, África, não se pode pensar num só país. Temos que multinacionalizar, internacionalizar o mundo dentro de um regime interdemocrático, com a grande contribuição do cristianismo e de outras religiões, todas as religiões. O cristianismo e todas as religiões são as mesmas religiões. Entre o entendimento dos religiosos e dos políticos convertidos ao amor... "




quarta-feira, setembro 01, 2010

O 'Problema da Indução' em Bertrand Russell

Alphonse van Worden - 1750 AD





Conforme estabelece a lógica clássica, a partir de premissas verdadeiras, em uma dedução válida, a conclusão é sempre verdadeira; ou, em outras palavras: uma inferência dedutiva é correta se e somente se não é possível que de premissas verdadeiras se siga uma conclusão falsa.

O mesmo não pode ser afirmado, entretanto, acerca de uma inferência indutiva: de premissas verdadeiras podem-se extrair conclusões falsas. Todavia, ao constatarmos, como anteriormente o fizemos, que o raciocínio dedutivo efetivamente não nos faculta a possibilidade de formular previsões sobre ocorrências futuras, na medida em que seus enunciados necessariamente derivam de generalizações já estabelecidas, de que maneira seria possível o conhecimento científico, que se estrutura precisamente mediante hipóteses elaboradas a partir de observações empíricas no passado e no presente?

No âmbito de uma inferência indutiva, não é condição imperativa que a conclusão obtida seja universal, mas é fundamental que possa chegar a ser universalizável: isto é, ainda que de uma indução não seja possível a obtenção de uma conclusão absolutamente verdadeira, é possível a obtenção de enunciados com menor ou maior de probabilidade.

Examinemos, pois, a esse respeito, as concepções e propostas elaboradas por Bertrand Russell (1872-1970. O matemático, lógico e filósofo inglês aborda, no capítulo VI de seu The Problems of Philosophy (1912), o problema da justificação das inferências indutivas. Nas palavras do autor:


"É preciso que nos seja demonstrado que a existência de alguma coisa, como A, é sinal da existência de alguma coisa como B, não importa se ao mesmo tempo do que A, ou algum tempo antes ou depois como, por exemplo, o trovão é um sinal da existência anterior de um relâmpago. Se isto não fosse por nós conhecido, jamais poderíamos ampliar nosso conhecimento para além da esfera de nossa experiência pessoal."


Russell está preocupado em examinar, do mesmo modo que Hume, se a repetição de um fenômeno, num dado número de experiências no passado, constitui ou não uma garantia de sua ulterior ocorrência no futuro. Esta investigação preliminar o conduz a formular duas outras questões: (a) as experiências passadas são a fonte de nossas expectativas futuras? (b) Como justificar tais expectativas? Vejamos como o filósofo apresenta a questão:



"A constatação de um determinado número de ocorrências de uma lei sendo satisfeita no passado fornece evidência de que a mesma leia continuará a ser satisfeita no futuro? Se não, torna-se evidente que não temos nenhum fundamento para esperar que o sol nasça amanhã, ou para esperar que o pão que comeremos em nossa próxima refeição não nos envenenará, em suma, para esperar a repetição de qualquer uma das expectativas diárias das quais somos apenas ligeiramente conscientes. Devemos observar que tais expectativas são apenas prováveis; portanto não devemos buscar uma prova de que devem ser satisfeitas, mas apenas por algum argumento a favor da concepção de que provavelmente serão cumpridas."


O pensador inglês sustenta que à medida que os mesmos eventos se repetem, sua ocorrência no futuro tornar-se-á mais provável. Assim sendo, sua argumentação inclina-se a substituir a justificação da indução pela justificação da probabilidade da indução, a mesma postura conceitual que orientará, vale dizer, autores do Círculo de Viena como Hans Reichenbach e Carl Gustav Hempel.

Nossa experiência com a natureza tem demonstrado até agora, nos diz Russell (aqui em estrita consonância com Hume), que a freqüente repetição de uma sucessão ou coexistência de eventos tem sido a causa de esperarmos que a mesma a sucessão ou coexistência de eventos continue a ocorrer no futuro:


"E esse tipo de associação não está restrito aos homens; nos animais também é muito forte. Um cavalo que tenha sido sempre conduzido ao longo de uma certa estrada, resiste à tentativa de levá-lo numa direção diferente. Animais domésticos esperam comida ao ver a pessoa que habitualmente os alimenta. Sabemos que todas essas experiências primárias de uniformidade são capazes de nos enganar. O homem que alimentou a galinha durante todos os dias da vida dela, no final, em vez disso, torce o seu pescoço, mostrando que uma visão mais refinada da uniformidade da natureza teria sido útil para a galinha. Mas apesar dessas expectativas nos iludirem, elas no entanto existem. O simples fato de que alguma coisa aconteceu certo número de vezes causa nos animais e nos homens a expectativa de que acontecerá novamente. Portanto, nossos instintos certamente nos levarão a crer que o sol nascerá amanhã, mas podemos estar numa posição não muito melhor do que a da galinha, que inesperadamente tem seu pescoço torcido. Temos portanto que diferenciar o fato da uniformidade passada provocar expectativas quanto ao futuro, da incerteza se há alguma base razoável que dê peso a tais expectativas, depois que a questão de sua legitimidade foi levantada."


Russell prossegue na mesma perspectiva delineada por Hume e questiona: há alguma razão para acreditarmos no que pode ser denominado como uniformidade da natureza, isto é, para crermos que tudo o que ocorreu ou ocorrerá é instância de uma Lei geral para a qual não existem exceções? Para Hume somos conduzidos a tal concepção por influência de um determinado hábito mental, que converte nossa observação, no passado e no presente, de conjunções constantes entre fenômenos naturais, na crença da existência de uma conexão necessária, de uma regularidade que rege a dinâmica da Natureza. A inferência da conjunção limitada que observamos para a conjunção universal envolvida em nossa crença causal assume, pois, que o inobservado assemelhar-se-á continuamente ao já observado ou, em termos mais amplos, que a natureza é uniforme e, por conseguinte, constituída por regularidades fenomênicas. Essa suposição, todavia, argumenta o filósofo escocês, assim como o princípio geral de causalidade, não é auto-evidente, nem demonstrável. O inobservado é, desde sempre, potencialmente distinto do observado: ele pode assumir qualquer forma que seja, bem como, eventualmente, continuar compatível com o já observado; tampouco podemos estabelecê-la indutivamente a partir de que até agora, pelo menos, o fenômeno que estivermos a examinar continua reproduzindo os efeitos observados em experiências anteriores. Proceder deste modo seria, vale dizer, argumentar em círculo, assumir a validade da suposição como instância autocomprovável.

Russell admite que muitas de nossas expectativas, tais como as que exemplificou nas passagens supracitadas, estão sujeitas a exceções e, dessa forma, são passíveis de frustrar as expectativas daqueles que as acalentam; contudo, também procura nos chamar atenção para uma outra forma possível de uniformidade:


"A ciência habitualmente assume, ao menos como hipótese de trabalho, que regras gerais que possuem exceções podem ser substituídas por regras gerais sem exceções. ‘Corpos sem sustentação no ar caem’ é uma regra geral para a qual balões e aeroplanos são exceções. Mas as leis do movimento e a lei da gravidade, que respondem pelo fato de que a maioria dos corpos caem, também são responsáveis pelo fato de balões e aeroplanos alçarem vôo; portanto as leis do movimento e a lei da gravidade não estão sujeitas a essas exceções. A crença de que o sol nascerá amanhã pode ser adulterada se a terra entrar subitamente
em contato com um grande corpo que destruiu sua rotação; mas as leis do movimento e a lei da gravidade não teriam sido infringidas por tal acontecimento. O objetivo da ciência é encontrar uniformidade, tais como as leis do movimento e a lei da gravidade, para as quais, ao menos até onde vai a nossa experiência, não há exceções. Nessa busca a ciência tem tido muito sucesso, e podemos admitir que tal uniformidade até aqui têm sido mantida. Isso nos leva de volta à pergunta: teremos algum motivo, assumindo que isso sempre se manteve no passado, para crer que assim será no futuro?"


O que Russell, pois, está discutindo é a pertinência ou não de nossa convicção sobre a regularidade permanente entre passado e futuro, que se baseia na constatação de que o futuro continuamente se converteu em passado, tendo sempre terminado por ser similar ao passado, de modo que se possa afirmar a presença de uma experiência de futuro em nossa percepção, em termos mais precisos, de tempos que formalmente foram futuro, e que podemos denominar, nos servindo da terminologia empregue por Russell, de futuros passados. Esse tournant conceitual, contudo, não é capaz de eludir a questão: temos, é verdade, experiência de futuros passados; o que não significa dizer, salientemos, que tenhamos experiência de futuros futuros. A pergunta lançada pelo filósofo inglês passa a ser, portanto, a seguinte: os futuros futuros serão semelhantes aos futuros passados? Tal questão, claro está, não pode ser respondida por recurso a argumentos que se lastreiem tão somente em experiências passadas; faz-se mister, assim sendo, que perseveremos na busca de um princípio que nos permita afirmar que o futuro seguirá as mesmas leis do passado.

A referência ao futuro, muito embora seja uma excelente perspectiva de abordagem, não é, ressalta Russell, essencial para o tratamento deste tópico, pois o problema ressurge quando aplicamos as leis que regem nossa experiência a eventos idos dos quais não podemos ter experiência; a pergunta central pode ser então mais uma vez reformulada:



"Quando duas coisas estão freqüentemente associadas e não se encontra nenhuma instância de uma ocorrendo sem a outra, e em outro exemplo, verificamos a ocorrência de uma das duas, teremos uma boa base para esperar pela ocorrência da outra? Em nossa resposta a essa questão assentar-se-á a validade do todo de nossas expectativas quanto ao futuro, a totalidade dos resultados obtidos por indução e, de fato, praticamente todas as crenças sobre as quais repousa nossa vida cotidiana."


Devemos ter mente, desde o princípio de nossas considerações (Hume e Russell estando de acordo no que se refere a este ponto), que o fato de duas coisas terem sido vistas constantemente conjugadas e jamais separadas, não pode ser considerado, em si mesmo, como evidência suficiente para provar de forma demonstrativa que as referidas coisas serão encontradas juntas na próxima instância futura que observarmos; o que nos é lícito esperar, assevera Russell, é que quanto maior for a freqüência de instâncias em que as supracitadas coisas forem encontradas em conjunção, mais provável a possibilidade de serem encontradas juntas na próxima ocasião; tal probabilidade poderá ainda transformar-se numa quase-certeza à medida que a ocorrência de eventos que a falsifiquem tende ao zero. Dessa maneira, o que devemos buscar é a maior ou menor probabilidade de nossas experiências futuras validarem o conjunto de nossas observações passadas e presentes.

O princípio que estamos buscando para fundamentar o conjunto de nossas expectativas acerca da maior ou menor probabilidade de ocorrência de um evento pode, portanto, ser denominado como princípio de indução, e seus dois elementos constitutivos podem ser assim definidos:


"(a) Quanto maior o número de casos nos quais uma coisa do tipo A tem sido encontrada associada com uma coisa do tipo B, o mais provável é (se nenhum caso de falha na associação for conhecido) que A estará sempre associado a B;


(b) Sob as mesmas circunstâncias, um número suficiente de casos da associação de A com B tornará quase uma certeza que A está sempre associada a B, e fará com que a lei geral se aproxime da certeza sem limites."


Devemos sublinhar que a probabilidade de um evento está sempre relacionada a um determinado conjunto de dados; no caso estabelecido por Russell, os dados levados em conta são as instâncias conhecidas da coexistência entre A e B; podem contudo estar presentes, argumenta o filósofo inglês, outros dados capazes de alterar seriamente a probabilidade em tela:



"Por exemplo, um homem que tivesse visto um grande número de cisnes brancos poderia afirmar, segundo nosso princípio, que de acordo com seus dados, era provável que todos os cisnes fossem brancos e esse seria um argumento muito sólido. O argumento não é desmentido pelo fato de haver alguns cisnes negros, porque uma coisa pode muito bem acontecer apesar de alguns dados a tornarem improvável. No caso dos cisnes, um homem pode saber que a cor é uma característica muito variável em muitas espécies de animais e que, portanto, uma indução quanto à cor é especialmente capaz de levar a um erro."


A constatação de que existem cisnes negros é um dado novo que, mesmo demonstrando que nem todos os cisnes são brancos, não implica de modo algum a conclusão de que nossos dados anteriores tenham sido erradamente avaliados. O fato de que as coisas por vezes falhem em corresponder à nossas expectativas não é evidência de que nossas expectativas provavelmente não serão preenchidas num dado caso futuro ou num dado conjunto de casos.

O princípio indutivo, salienta Russell, não é passível, pois, de comprovação por um apelo à experiência. O recurso à experiência poderia embasar o raciocínio indutivo no que diz respeito a exemplos já examinados; no que tange, entretanto, a casos futuros, somente a crença no princípio indutivo poderia, obviamente sem qualquer apelo à experiência, justificar qualquer inferência que ateste a regularidade entre o já observado e o inobservado. Assim sendo, todos os argumentos que, lastreados em experiências, extraiam conclusões quanto ao futuro, e também no que se refere a passagens não experienciadas do passado e do presente, estão necessariamente assumindo como válido o raciocínio indutivo; logo, conclui Russell, ou aceitamos o princípio indutivo embasado em sua evidência intrínseca ou então devemos abandonar qualquer tentativa de justificar nossas expectativas futuras:


"Se o princípio não é sólido, não temos motivos para esperar que o Sol nasça amanhã, para esperar que o pão seja mais nutritivo que uma pedra ou para calcular que se nos atirarmos do telhado, cairemos. Quando vemos o que parece ser nosso melhor amigo se aproximando, não temos nenhuma razão para supor que seu corpo não esteja habitado pela mente de nosso pior inimigo, ou pela de um completo estranho. Toda a nossa conduta está baseada em associações que funcionaram no passado, e que nós, portanto, cremos ser provável que funcionem no futuro; e essa probabilidade depende, para sua validade, do princípio indutivo."


Uma observação relevante, entretanto, se faz aqui necessária: ao tratarmos da noção de probabilidade, que fundamenta a supracitada argumentação de Bertrand Russell, devemos verificar se o eventual número de resultados repetidos num evento qualquer aumenta ou não o grau de probabilidade envolvida, isto é, constar qual o tipo de probabilidade que está em pauta. Por exemplo, lançando ao ar um dado comum, a probabilidade de obtermos os algarismos 1, 2, 3, 4, 5 ou 6 será de 1/6 para cada face do dado. Se ao cabo de 10 tentativas obtivermos oito vezes o algarismo 5 e duas vezes o algarismo 3, poderemos dizer então que a freqüência de sucessos do algarismo 5 foi de 0,8 e a do algarismo 3, de 0,2; no entanto, como cada tentativa sucessiva é independente da anterior, a probabilidade de obtermos o algarismo 5 em uma nova experiência continuará sendo de 1/6, do mesmo modo que a de obtermos o algarismo 3. Ou seja, a relação de probabilidade permanece a mesma. Pensemos agora em outra hipótese , proposta pelo astrônomo, físico e matemático francês Pierre Simon de Laplace (1749-1827): consideremos uma urna com 20 esferas negras e 20 esferas brancas. O experimento é realizado da seguinte forma: apanhamos uma esfera de cada vez da urna, e as esferas retiradas não são repostas. Perante tais condições, estamos na presença de um caso de probabilidade condicionada, uma vez que a probabilidade de conseguirmos esferas de uma determinada cor irá variar de acordo com a quantidade de esferas negras ou brancas que eventualmente forem sendo retiradas. O mesmo não ocorre com o exemplo anterior, na medida em que cada ocorrência, conforme verificamos, independe da antecedente: se a probabilidade de que aconteça um evento E é independente em cada ocasião, sua probabilidade não irá aumentar por mais que se repitam os casos em que E se verifique. Se a probabilidade de que E ocorra pudesse ser explicada em termos de variação probabilística, então ela seria condicionada, e precisaríamos demonstrar se tal relação é estatística ou necessária. Se a relação for estatística ou necessária, sua demonstração envolverá uma petitio principii, uma vez que a relação em tela é pré-determinada e, dessa forma, não passível de demonstração. Assim sendo, em nenhum caso é possível demonstrar que a probabilidade de E é condicionada; sendo, portanto, independente, a probabilidade de E se mantém constante em qualquer que seja o número de casos considerados.

Em Human Knowledge: it’s scope and limits (1948), Bertand Russell volta a discutir a relação entre probabilidade e indução, questão que desta feita está inserida no âmbito de um ambicioso projeto teórico: a tentativa de estabelecer um cânon sólido e abrangente de princípios para a formulação de inferências não-demonstrativas.

O filósofo inglês toma como ponto de partida para sua empreitada uma constatação cabal: uma vez que tanto o senso comum quanto a Ciência servem-se largamente do raciocínio indutivo, bem como de outras modalidades de inferência não-demonstrativa, torna-se imperiosa a necessidade de se elaborar um conjunto de regras precisas que determinem as formas válidas para a inferência não-demonstrativa. Em 1943, num esboço (Project for a Future Work) para o supracitado livro, Russell irá enunciar a questão principal: em que circunstâncias o método científico nos permite induzir a existência de algo inobservado a partir de algo já observado? Vale mais uma vez sublinhar que tais inferências, muito embora não sejam passíveis de justificação em termos de lógica demonstrativa, são amplamente legitimadas no espectro da experiência cotidiana e da ciência. Para Russell, um criterioso estudo analítico dos procedimentos utilizados pelo método científico, nos permitirá elaborar, pois, um conjunto de princípios que funcionem como cânon para as modalidades válidas de inferência não-demonstrativa.

Tendo concluído que o problema da indução consiste, de uma maneira geral, na justificativa de nossas expectativas quanto à maior ou menor probabilidade de nossas experiências futuras validarem o conjunto de nossas observações passadas e presentes, Russell irá se preocupar agora em definir o tipo de probabilidade com que estamos lidando:


"Se a indução deve servir a propósitos de elaboração científica, o conceito de “probabilidade” deve então ser interpretado como um enunciado de probabilidade que assevera um fato; tal acepção requer que o tipo de probabilidade envolvido seja derivado das noções de verdade e falsidade; e isto, conseqüentemente, também torna de certo modo inevitável a interpretação de probabilidade enquanto freqüência finita."


Russel argumenta que se considerássemos a noção de probabilidade de modo indefinido, não poderíamos determinar com segurança o grau de probabilidade de um evento e, portanto, as proposições indutivas não nos informariam nada a respeito da natureza. Se tal concepção fosse adotada, o princípio indutivo poderia muito bem ser válido e, ainda assim, cada inferência feita sob seus auspícios resultar falsa; tal conclusão, diz-nos Russel, é sobremaneira improvável, mas não impossível. Se não pudéssemos, pois, determinar o grau de probabilidade de um evento qualquer, um mundo onde os raciocínios indutivos fossem verdadeiros seria empiricamente indiscernível de outro onde fossem falsos. Dessa maneira, não poderia existir qualquer evidência favorável ou contrária à validade do princípio indutivo e, portanto, o supracitado princípio não nos permitiria estabelecer inferências confiáveis a respeito de acontecimentos futuros; se o princípio em tela, por conseguinte, deve ser capaz de levar a cabo sua finalidade precípua, vale dizer, o de permitir a passagem do observado para o inobservado, faz-se mister interpretarmos a maior ou menor probabilidade de um dado evento como o que de fato usualmente acontece ou não, ou seja, como a variação periódica com que um determinado fenômeno ocorre ou não; assim sendo, a noção de probabilidade, sublinha o filósofo e matemático inglês, deverá ser equivalente à noção de freqüência, perspectiva que, mais uma vez, também será compartilhada por autores ligados ao Círculo de Viena, mormente Hempel.

Como podemos observar, Russell procura definir o problema da indução em termos de freqüência provável de ocorrência de um evento; contudo, voltamos a enfatizar, semelhante solução só encontra aplicabilidade em casos de indução condicionada. No contexto de uma probabilidade independente, nada pode empiricamente demonstrar a existência de um caráter condicional: a possibilidade que tenhamos A¬A é de 0,5 em todos e cada um dos casos em que se possa obter A e ¬ A de forma exclusiva e excludente.

A análise do lógico britânico lastreia-se no supracitado exemplo das esferas brancas e negras, onde as esferas, uma vez retiradas, não retornam à urna; assim procedendo, Russell estabelece condições artificiais que não se manifestam em diversos casos de indução; oferece, portanto, uma resposta probabilística para processos indutivos condicionados, mas não encontra uma solução para o problema lançado por Hume.