sábado, dezembro 19, 2015

Epistolário Transfinito IV (excertos...)

Alphonse van Worden - 1750 AD




 Ó diletíssimos e preclaríssimos irmãos d'armas: (...) há já alguns lustros tenho experimentando um vasto e crescente sentimento de distanciamento, deslocamento, desprendimento, dissociação, supremo alheamento no tocante a todos os meus atos, pensamentos e circunstâncias; é como se pertencessem a outro, e não a mim. Eu não sou mais eu mesmo, compreendeis? Sou um outro. É o outro quem pensa, age, sente. Ora sou tão somente espectador desse outro que por acaso, apenas por mero acaso, vive em mim.




sábado, novembro 14, 2015

Comunicado urgente às Legiões do Império Transfinito

Alphonse van Worden - 1750 AD




Diletíssimos irmãos d'armas:

A 'boa consciência' demo-liberal-secularista não estabelece como imperativo humanitário (ou seria, na verdade, para atender às necessidades do mercado de trabalho num continente com taxas de natalidade cada vez mais baixas?) receber os 'refugiados'? Pois bem, o que ocorre agora na França é apenas consequência.

Não há alternativa: ou a Europa volta a ser a Societas Christiana por excelência, o propugnáculo da fé cristã sob a égide de ECCLESIA ET IMPERIVM, ou mergulhará numa espiral crescente de caos e violência.

quinta-feira, novembro 05, 2015

República Popular da China: o enigma dentro de um enigma

 Alphonse van Worden - 1750 AD

*artigo para o MBA em Relações Internacionais da FGV.




Expressiva parcela dos economistas e cientistas políticos preocupa-se em demasia com a dimensão ‘protocolar’, o ordenamento formal da política; ou, n’outras palavras, com sua superfície jurídico-institucional, mas não com a essência do fenômeno político, ou seja, com a natureza substancial das estruturas de poder que se cristalizam ou não num determinado Estado / formação social ao longo do tempo.

A esse respeito, reveste-se de suma utilidade observar, mesmo que sumariamente, dois casos emblemáticos: o chinês e o russo.

Reiterando o que acima asseveramos, devemos estar sempre atentos, pois, ao que está por trás do mero aspecto formal do ordenamento jurídico-institucional numa dada sociedade: em praticamente 5000 anos de História, por exemplo, a China jamais mudou de sistema de governo: sempre foi e, até onde se pode fazer qualquer previsão, sempre será um império governado por um imperador e seus mandarins, a despeito deste ou daquele modelo de organização econômica, etc. Mao Zedong ou Deng Xiaoping nada mais foram que imperadores sob outro título e protocolo, assim como o PCCh é tão somente um 'mandarinato vermelho'. Portanto, ainda que a organização política específica denominada ‘PCCh’ venha a acabar, será substituída por outra oligarquia de mandarins com as mesmíssimas características e atribuições, sob a égide d'um imperador, seja qual for o título ou designação que venha a assumir.

O caso russo, outrossim, é análogo ao caso chinês: desde o momento em que o país se constituiu como entidade estatal, não conheceu qualquer sistema de governo de caráter não-autoritário. E isto rigorosamente nada tem a ver com o modelo de organização econômica vigente em cada período: tanto sob o modo de produção asiático quanto sob o feudalismo, o capitalismo emergente, o socialismo ou a restauração capitalista, a Rússia viveu sob um sistema político autocrático, vertical e centralizado. Por conseguinte, jamais conheceu qualquer sistema de governo 'democrático', e qualquer governante que eventualmente cometer o catastrófico erro de tentar modificar isto, decerto malogrará fragorosamente; Gorbachev, por exemplo, que chegou a timidamente ensaiar algo nesse sentido, teve menos de 5% dos votos válidos ao candidatar-se à presidência russa em 1996, e é até hoje figura deveras impopular no panorama político do país.

Em suma: da mesma forma que Mao Zedong ou Deng Xiaoping foram tão somente 'imperadores vermelhos', Stalin & Cia. foram nada mais que 'tzares vermelhos'. E tal panorama não se modifica através de mudanças de modelo de organização econômica: sob as reformas capitalistas, a China continua governada por um 'Imperador vermelho' e seu 'mandarinato vermelho' (o PCCh); do mesmo modo, a Rússia pós-restauração da economia de mercado segue governada por um 'tzar presidencial' e seu aparato burocrático-administrativo rigidamente hierarquizado e omnipresente (antes a burocracia tzarista, depois o PCUS e agora a coalizão de 'partidos-fantoche' organizada por Vladimir Putin).

Destarte, quero crer que o problema consiste em acreditar, pois, que as sociedades humanas são determinadas em última instância pelo fator econômico, ignorando, portanto, as fundamentais esferas da cultura, do substrato simbólico-religioso e da política como instância específica. Tal viés analítico leva seus proponentes a hiperdimensionar as diversas possibilidades de organização institucional de um Estado em detrimento da substância político-cultural que informa este mesmo Estado, isto é, o que é passível de mudança em detrimento dos elementos permanentes no seio do Ethos nacional. Enfim: as formas institucionais mudam, mas, n’alguns contextos, a substância política permanece.

Mas concentremo-nos doravante na Rep. Popular da China, que é o objeto precípuo de análise neste artigo.

A partir de todo o interesse despertado pela China nas últimas décadas, mormente no que se refere às marcantes especificidades do modelo chinês, proponho as reflexões que se seguem como locus privilegiado para debatermos, aquele que é, sem dúvida alguma, o país mais enigmático e paradoxal do mundo contemporâneo.

Não há hoje, creio, país que suscite tamanho número de indagações a um só tempo complexas e fascinantes, tanto para economistas quanto cientistas políticos, sociólogos e historiadores; trata-se, com efeito, d'uma portentosa dor de cabeça para as ciências sociais compreender o que realmente se passa no 'Império do Centro', sobretudo nos termos da seguinte questão, também de âmbito mais geral: quais as verdadeiras relações ou, em outras palavras, como se dão as interconexões entre Política, Economia e Sociedade Civil?

A República Popular da China, a partir da onda de choque, tanto simbólico-institucional quanto político-administrativa, desencadeada pela morte de Mao Zedong em 1976, deu início, já em 1978, a um amplo programa de reestruturação econômica. Desde então, o processo chinês, ainda que com movimentos pendulares de maior ou menor intensidade, tem se caracterizado por um norte estratégico nítido: abertura econômica + manutenção do monopólio do poder político por parte do PCCh. Trata-se, portanto, de liberalizar a atividade econômica, de flexibilizar relações trabalhistas e mecanismos de gestão, sem, contudo, renunciar ao controle operacional de todo o processo por parte do mandarinato vermelho. Assim sendo, todas as iniciativas de abertura econômica são estritamente condicionadas pelos desígnios e necessidades estratégicas do Estado chinês; há que frisar, aliás, o sucesso do regime na implementação dessa sutil dialética, pois o Partido não apenas conservou intacto o monopólio do poder, mas logrou fazê-lo ao mesmo tempo em que promove um duradouro ciclo de intensíssimo desenvolvimento econômico capitalista.

Ainda que se possa indagar a propósito da viabilidade ulterior de tal dinâmica, ou seja, sobre por quanto tempo mais o PCCh, que tão hábil vem se revelando na improvável dialética de, a um só tempo, centralizar o poder político e abrir a economia, conseguirá tão prodigiosa mágica socioeconômica, há que reconhecer que, até o momento, tudo está ocorrendo conforme o talante do aparato dirigente. Mesmo o desafio representado, por exemplo, pela comunicação em tempo real, com a massificação da internet, tem sido enfrentado com eficácia pelo Estado, que estabelece um maciço bloqueio do conteúdo online disponível. Além de limitar o acesso a determinados sites, o governo chinês também logra impedir a pesquisa de certos assuntos em mecanismos de busca. Os dispositivos de controle passam ainda pelo redirecionamento de páginas para sítios equivalentes; pela necessidade de autorização prévia do governo para o funcionamento de provedores de internet; e pela canalização de todo o conteúdo online para ‘portas da entrada’, as gateways, onde ocorre uma fiscalização / filtragem geral do tráfego internético. Mesmo o emprego de sistemas de comunicação por VPN (Virtual Private Network), isto é, a criação de redes privadas de acesso, com trocas constantes de endereço de IP para burlar os mecanismos de controle, não garante a privacidade dos usuários, como bem o demonstra o número constante de detenção de dissidentes políticos por intermédio de dados colhidos pela chamada Great Firewall of China.

Não obstante, não há como ignorar as consideráveis tensões e contradições inerentes ao processo chinês. Com efeito, é patente hoje que o PCCh está cada vez mais enredado num dilema de resolução sumamente intrincada: o Partido sabe que, a intensificar-se o processo de abertura, sua inexorável conseqüência lógica na esfera política será a perda do monopólio do poder, o que com razoável grau de certeza é passível de mergulhar o país numa crise de proporções inimagináveis; ao mesmo tempo, a melhor, mais sólida e inquestionável justificativa para a manutenção do regime de partido único é justamente o progresso econômico logrado pelo processo de abertura; assim sendo, o aparato dirigente do Império do Centro tem a seu cargo uma empreitada das mais árduas e intrincadas: conservar a unidade territorial do país e o domínio do Partido sem arrefecer a força motriz do desenvolvimento material.

Conseguirá o PCCh levar a bom termo tal intento? Trata-se d'outra complexa questão.

Outro aspecto, de índole a meu ver crucial para o debate que aqui nos entretêm, passa sem dúvida pelas relações que se estabelecem entre o Estado e a Sociedade. Penso não haver grandes dúvidas, por exemplo, a propósito da constatação que, em termos estritamente econômicos, a China é hoje um país estruturado em bases capitalistas: malgrado o Estado ainda atue como grande indutor e fiador do processo econômico, há vários setores importantes da economia já nas mãos da iniciativa privada; o país adota uma legislação deveras flexível e favorável às atividades do setor financeiro; as leis trabalhistas praticamente inexistem (licença-maternidade, férias e folgas remuneradas, ou outros direitos trabalhistas do mesmo jaez), não havendo, portanto, a estrutura de seguridade social presente, em maior ou menor medida, já há décadas nas grandes economias mundiais (tanto assim que há hoje uma facção do PCCh, tida como a 'esquerda' do Partido, que está a bater-se pela implementação d'uma legislação trabalhista e d'uma rede de previdência social veramente efetivas); total ausência de controle no emprego de energias ‘sujas’, o que está a gerar um crescente problema ambiental no país; estímulo contínuo e sistemático ao consumo interno, de maneira a equilibrar a balança comercial e gerar superávit fiscal de forma artificial; maciço subsídio estatal a diversos setores produtivos, assim propiciando às mercadorias chinesas preços imbatíveis na arena do comércio internacional; política de tolerância velada relação à pirataria e falsificação de produtos, inclusive suscitando de denúncias a respeito do suposto envolvimento de agências governamentais com redes ilegais de atacado e varejo; um panorama, enfim, a exibir todas as características ultrapredatórias de um modelo ‘hipercapitalista’ , cuja agressividade e voracidade são de fazer inveja à Inglaterra vitoriana.

Por outro lado, e porventura em conseqüência do que foi adrede exposto, não se pode de forma alguma considerar a sociedade chinesa como uma sociedade liberal; muito pelo contrário: o ordenamento institucional vigente continua adotando o monopólio da representação política pelo PCCh, que exerce rígido controle sobre todos os mecanismos e instâncias administrativas do país, tanto na esfera executiva quanto em termos de poder legislativo e judiciário. Trata-se, outrossim, d’uma sociedade rigidamente hierárquica e controlada de cima para baixo, com presença maciça da autoridade estatal em todos os níveis, mormente na educação e nos meios de comunicação. Então, pergunta-se: é possível a convivência entre uma economia liberal e uma sociedade sob forte controle do Estado?

A essa altura alguém poderia trazer à baila o notório exemplo chileno, pois de fato o regime autoritário de Pinochet implementou no país políticas econômicas de cunho decididamente monetarista durante as décadas de 70 e 80. Todavia, é mister sublinharmos dois aspectos importantes: a) a economia chilena era e é infinitamente menos complexa e multifacetada que a chinesa; b) muito embora o regime 'pinochetista' possa ser classificado como um regime autoritário, não me parece cabível qualificá-lo como 'totalitário', pois jamais houve no Chile algo sequer vagamente similar à estrutura de controle social, cultural, político e econômico do PCCh, cujo imperativo sobre a sociedade chinesa se capilariza uniformemente em todos os níveis. De maneira que a indagação permanece em pauta: é possível o convívio entre totalitarismo político e liberalismo econômico? Se possível, seria um modelo estável e duradouro ou, pelo contrário, um contexto inevitavelmente fadado a gerar, porventura já a médio prazo, pontos de estrangulamento insuperáveis?

Por fim, é mister assinalar que, em termos geoestratégicos, descortina-se para a sempiterna Catai um cenário deveras alvissareiro: a progressiva consolidação dos laços estabelecidos pela SCO-Shanghai Cooperation Organisation, tratado de segurança mútua firmado em 2001 entre os governos de Rússia, China, Casaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão, envolvendo cooperação militar de alto nível entre os Estados signatários. Vale também sublinhar que, d'entre os países que participam da organização na condição de 'Estados-observadores' inclui-se a República Islâmica do Irã, que já pleiteou seu ingresso definitivo na entidade; consta, enfim, que receberá o status de país-membro em 2016.

Será este porventura, aqui fazendo um despretensioso exercício de futurologia, o embrião d'um futuro Imperium euro-asiático, supina encarnação do ethos telurocrático?

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Muito bem: tendo em vista os elementos que apresentei nos parágrafos anteriores, proponho por fim as seguintes indagações:

1) Tendo em vista que, no horizonte da China contemporânea, Política e Economia evoluem em direções opostas, quais seriam as verdadeiras relações ou, em outras palavras, como se dão as interconexões entre Política, Economia e Sociedade Civil?

2) Logrará o PCCh conservar a unidade territorial do país e o domínio do Partido sem arrefecer a força motriz do desenvolvimento material?

3) É possível a convivência entre uma economia liberal e uma sociedade totalitária?

4) Se possível, seria um modelo estável e duradouro ou, pelo contrário, um contexto inevitavelmente fadado a gerar, quiçá já a médio prazo, pontos de estrangulamento insuperáveis?



sábado, outubro 31, 2015

A propósito da parábola "Diante da Lei", de Franz Kafka

 Alphonse van Worden - 1750 AD




DIANTE DA LEI (1919) - Franz Kafka

Diante da Lei há um guarda. Um camponês apresenta-se diante deste guarda, e solicita que lhe permita entrar na Lei. Mas o guarda responde que por enquanto não pode permitir-lhe a entrada. O homem reflete, e pergunta se mais tarde o deixarão entrar. “É possível”, diz o guarda, “mas não agora”. A porta que conduz à Lei está aberta, como de costume; quando o guarda se põe de lado, o homem inclina-se para espiar. O guarda vê isso, ri-se e lhe diz: “Se tão grande é o teu desejo, experimenta entrar apesar de minha proibição. Mas lembra-te de que sou poderoso. E sou somente o último dos guardas. Entre os salões também existem guardas, cada qual mais poderoso que o outro. Já o terceiro guarda é tão terrível que não posso suportar seu aspecto”. O camponês não havia previsto tais dificuldades: a Lei deveria ser sempre acessível para todos, ele pensa; não obstante, ao observar o guarda, com seu abrigo de pele, seu grande e aquilino nariz, sua barba longa de tártaro, rala e negra, resolve que mais lhe convém esperar. O guarda dá-lhe um banquinho, e permite-lhe sentar-se a um lado da porta. Ali espera, dias e anos. Tenta infinitas vezes entrar, e fatiga o guarda com suas súplicas. Com freqüência, este entretém com ele breves palestras, faz-lhe perguntas sobre seu país, e sobre muitas outras coisas; mas são perguntas indiferentes, como as dos grandes senhores, e para terminar, sempre lhe repete que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que se abasteceu de muitas coisas para a viagem, sacrifica tudo, por mais valioso que seja, para subornar o guarda. Este aceita tudo, com efeito, mas lhe diz: “Aceito para que não julgues ter omitido qualquer esforço”. Durante esses longos anos, o homem observa quase continuamente o guarda: esquece-se dos outros, e parece-lhe que este é o único obstáculo que o separa da Lei. Maldiz sua má sorte, durante os primeiros anos temerariamente e em voz alta; mais tarde, à medida que envelhece, apenas murmura para si. Retorna à infância, e, como em sua longa contemplação do guarda, chegou a conhecer até as pulgas de seu abrigo de pele, também suplica às pulgas que o ajudem e convençam ao guarda. Finalmente, sua vista se enfraquece, e já não sabe se realmente há menos luz, ou se apenas o enganam seus olhos. Mas em meio à obscuridade distingue um resplendor, que surge inextinguível da porta da Lei. Já lhe resta pouco tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências desses longos anos se confluem em sua mente numa só pergunta, que até agora não formulou. Faz sinais ao guarda para que se aproxime, já que o rigor da morte endurece seu corpo. O guarda vê-se obrigado a baixar-se muito para falar com ele, porque a disparidade de estatura entre ambos aumentou bastante com o tempo, em detrimento do camponês. “Que queres saber ainda?”, pergunta o guarda, “és insaciável!”. “Todos aspiram à Lei”, diz o homem ; “como é possível então que durante tantos anos ninguém além de mim pretendesse entrar?”. O guarda compreende que o homem já está para morrer e, para que seus agonizantes sentidos percebam suas palavras, diz-lhe junto ao ouvido com voz tonitruante: “Ninguém mais poderia pretender isso, pois esta entrada estava destinada somente para ti. Agora vou fechá-la.


*


A LEI, que emana das instâncias superiores do TRIBUNAL, parece revelar-se como esfera remota, etérea, de todo inacessível; assim sendo, o camponês desiste de lutar para acessá-la, abandonando por completo qualquer esperança de lograr a própria possibilidade de salvação / redenção, e resignando-se a aceitar expedientes sibilinos e intermediários (os presentes para o Guarda), cuja natureza tão somente pode ser definida como eminentemente inútil, fátua, e até mesmo, ao fim e ao cabo, diabólica. Há que mencionar ainda a profunda influência que o filósofo francês Blaise Pascal (1623 - 1662) exerceu sobre Kafka. Destarte, conforme o crítico literário austro-brasileiro Otto Maria Carpeaux (1900 - 1978) salienta, o problema com que o escritor tcheco se depara em sua obra “teria sido o da Justiça e da Graça. A religião judaica não conhece o dogma que mais preocupou Pascal, o do pecado original; por isso desconhece a Graça divina e só conhece a Justiça divina”. Em outras palavras: se o cristianismo predica a existência de um ‘pecado original’, ele também contempla sua possibilidade de redenção, que é o batismo em Cristo; no judaísmo, por outro lado, se não há ‘pecado original’, somente haverá redenção para os pecados humanos com o advento do Messias. Para o excelso crítico literário, aliás, a obra de Kafka não visa meramente o efeito da expressão ‘literária’, mas se configura como manifestação de sua metafísica, uma “metafísica do terror cósmico”, tal como Carpeaux admiravelmente a define.


quarta-feira, setembro 09, 2015

Presença de Francisco Campos - parte I

 Alphonse van Worden - 1750 AD





Como temos amiúde salientado em diversas ocasiões, o processo da GRANDE SÍNTESE, vale dizer, da ampla convergência entre as principais correntes de pensamento anticapitalistas, antiliberais e antiburguesas, por um lado; e, por outro, as principais tradições esotéricas (mormente as de cunho não-dualista) da revolta gnóstica contra o 'racionalismo político' (iluminismo, liberalismo, 'Sociedade Aberta', marxismo ortodoxo, etc.) ao longo da História, reverbera essencialmente a Geografia Sagrada de cada complexo civilizacional, isto é, seu conjunto de Arquétipos Tradicionais e Mitos Fundadores,  que, por seu turno, fornecerão os alicerces das formas políticas, valores espirituais, paradigmas existenciais e tendências culturais de cada nação.

Destarte, se queremos levar a efeito tal dinâmica no Brasil, é mister indispensável estarmos atentos não só aos elementos acima elencados, mas também aos homens que, d’uma forma ou d’outra, encarnam, pois, esta ‘geografia sagrada’  de nosso povo, de nossa nação.  A esse respeito, por exemplo, assoma em plano de destaque a fulgurante figura de Glauber Rocha, grande profeta da revolução messiânica brasileira em seus filmes e textos incandescentes, onde a fusão entre Política, Mito e Mística é demonstrada / vivenciada à perfeição.

No presente texto, não obstante, trataremos d’um autor que, assim como o insigne artista baiano, não somente compreendeu profundamente os meandros da alma brasileira, mas também refletiu de forma heurística e ousada sobre as formas políticas  propícias ao desenvolvimento nacional,  muito embora n’outra clave, de índole sistemática, argumentativa: o jurista e político mineiro Francisco Luís da Silva Campos (1891 - 1968).

Deputado federal (1921 - 1926); criador da Legião de Outubro (1930), primeiro movimento político de índole terza posizione organizado no Brasil; Ministro da Educação (1931 - 1932); Ministro da Justiça (1932 / 1937 - 1942); autor de numerosas obras no campo do Direito, da Filosofia Política e da Educação; redator da Constituição de 1937 e do A-1 (1964), nosso 'Chico Ciência' (epíteto que recebeu em virtude da assombrosa erudição e agudeza d'espírito) esteve no centro de gravidade da vida política nacional por quase meio século, apresentando uma plêiade de contributos exponenciais não só no plano da ação institucional, mas também no âmbito da batalha das ideias.

O objetivo deste artigo consiste em delinear principais idéias esposadas pelo autor em sua obra mais importante no campo da filosofia política, O Estado Nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico (1940), onde Campos lança em nosso país as bases doutrinárias d'uma 'revolução conservadora' de natureza decididamente antiliberal e centralizadora.  A esse respeito, vale sublinhar que as ideias abraçadas pelo prócer mineiro se desenvolvem no esteio das teorias formuladas pelo jurista, politólogo e filósofo alemão Carl Schmitt (1888 - 1985), onde a esfera da política é definida como sendo o terreno privilegiado da contraposição fundamental, da disjuntiva 'amigo/inimigo', sem apelo a quaisquer injunções de cunho ético ou racional. Em Legalität und Legitimität (“Legalidade e Legitimidade” - 1932), o pensador alemão leva a efeito um minucioso trabalho de desmonte das ficções jurídicas e políticas do Iluminismo e do liberalismo político, assestando suas baterias contra o mero formalismo institucional que informa a democracia moderna em sua forma parlamentar. Encontra-se aí, bem como em outras obras do autor,  uma brilhante análise dos paradoxos da democracia parlamentar e de sua tendência em substituir a decisão política pela exclusiva valorização da maioria quantitativa dos votos. O que está em jogo, portanto, tanto para Schmitt quanto para Campos, é o processo pernicioso de substituição da legitimidade, que emana de seu guardião (o soberano), pela legalidade, fazendo-se desta última condição suficiente para legitimar a decisão. Assim sendo, o ponto mais fraco do sistema de representação parlamentar consiste na transformação de questões político-substanciais em processos de mera quantificação dos votos, sem que se possa impedir a tomada de decisões que atentem contra os interesses do Estado. Para Schmitt, e também para Campos, a força concentrada em um ‘Estado total’ é a única saída para a teia de contradições geradas pelo pluralismo de partidos e lobbies econômicos, que o jurista alemão define “como os contratorpedeiros da ordem institucional”.  A modernização do Estado brasileiro, conforme crê o autor mineiro, tão somente poderá ser lograda de forma vertical e orgânica, libertando o país da influência perniciosa da política partidária, isto é, do ‘balcão de negócios’ das assembleias legislativas, onde prevalência dos interesses particulares dos diferentes grupos políticos sobre os imperativos nacionais prejudica ou até mesmo impede a atuação eficaz dos órgãos técnicos da administração estatal: tornam-se impraticáveis, salienta Campos, a “disciplina e trabalho construtivo num sistema [o da democracia de partidos] que, na escala dos valores políticos, subordina os superiores aos inferiores e o interesse do Estado às competições de grupos.”

Destarte, as concepções de Francisco Campos, como ideólogo precípuo do Estado Novo, se inserem no contexto geral d’uma crítica às instituições da democracia liberal e seus pressupostos teóricos. A esse respeito, reveste-se de especial importância a conferência A política e as características espirituais do nosso tempo, proferida pelo autor no salão da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro em 28 de setembro de 1935.

Já a partida Campos define a época em que vive como um período de ‘transição’, onde as velhas certezas e convicções já não mais funcionam como d’antes, e toda uma nova maneira de encarar a realidade se faz dramaticamente necessária. Ilustra à perfeição tal estado de coisas, salienta o autor, a situação em que então se encontra o processo educacional:

“O que caracteriza a educação, em nossos dias, é que ela não é uma educação para este ou aquele fim, para um quadro fixo, para situações mais ou menos definidas, mas não sei para que mundo de possibilidades indeterminadas; não uma educação para tais ou quais problemas, porém uma educação para problemas, uma educação que se propõe não a fornecer soluções, mas uma atitude funcional do espírito, isto é, uma atitude para o que vier, seja o que for e de onde quer que venha, como a sentinela atenta, noite escura, às sombras e aos rumores”. 

Atente-se, todavia, para o problema das gerações que, tendo que forçosamente atuar no mundo presente, já foram ou estão a ser educadas numa atmosfera de contornos e soluções definidas, um mundo de ordem e hierarquia fixadas, de modelos preestabelecidos, e que, portanto, não estão devidamente preparadas para enfrentar o turbilhão continuamente cambiante do mundo contemporâneo. Trata-se, reflete Campos, do “aspecto trágico das chamadas épocas de transição”.  É uma época em que “o passado continua a interpretar o presente”, em que se agudiza o confronto entre as formas tradicionais do espírito, mediante as quais o homem se acostumou a formular sua perspectiva sobre o mundo, e as formas inéditas, que o demônio do tempo estabelece d’um modo acelerado sob o olhar atônito da Humanidade. Destarte, o homem precisaria aprender a se adaptar a essa realidade, visto terem sido postas em questão todas as soluções que herdara.


quinta-feira, maio 07, 2015

"Uma Visita de Alcibíades" - análise crítica

Alphonse van Worden - 1750 AD





O conto Uma Visita de Alcibíades, de Machado de Assis, se insere à perfeição em um gênero literário presente há muitos séculos no panorama da literatura ocidental, mas que viria a ser  definitivamente consagrado nos séculos XVIII e XIX: a narrativa satírica de caráter fantástico. Podemos encontrar exemplos similares nos mais diversos autores , dentre os quais se destaca aquele que talvez tenha sido o maior representante do gênero: o romântico alemão E.T.A Hoffmann, que conseguiu fundir fantasia e humor de modo irretocável em relatos memoráveis como Princesa Brambilla , Senhor Formica, O Conselheiro Krespel, O Pequeno Cinábrio Chamado Zacarias e, sobretudo, na extraordinária coleção de novelas e crônicas enfeixadas no romance Vida e Opiniões do gato Murr, onde o irônico felino é o contraponto satírico dos delirantes devaneios de seu dono, o Maestro Kreisler. Poderíamos ainda destacar outros escritores que praticaram de forma notável a sátira de corte fantástico:  nomes do porte de Jan Potocki, Nikolai Gogol, Gustavo Adolfo Becquer, Gerard de Nerval, Villiers de L’Isle-Adam, Marcel Schwob, Ambroise Bierce, Robert Louis Stevenson,  Oscar Wilde; mais recentemente, no século XX, o gênero continuou a ser cultivado por autores como Karel Tchapek, Gilbert Keith Chesterton, Sigismund Krzyzanowski, Macedônio Fernandez, Bioy-Casares,  Stanislaw Lem, Italo Calvino.

A modalidade literária de que estamos tratando se caracteriza principalmente por dois elementos: o uso do insólito, do fantástico, como instrumento para surpreender e seduzir o leitor, capturando sua atenção; e o desfecho irônico como desenlace aparentemente inusitado, mas pretendido desde o início da narrativa. Os elementos supracitados constituem, no âmbito da estrutura textual, as duas etapas complementares de uma estratégia narrativa: tendo sua imaginação despertada pelo sobrenatural, o leitor está preparado para ingressar numa suspension of disbelief à moda de S.T.Coleridge, condição indispensável para transitar numa zona de sombra  onde as  leis da natureza e da lógica deixam de vigorar; mergulhado, pois, na disposição mental própria do fantástico, o leitor é surpreendido pela irrupção do elemento satírico,  que subverte, no apagar das luzes  do  texto, as expectativas progressivamente acalentadas pelo desenrolar da fantasia.

Em Uma visita de Alcibíades, o Desembargador X..., preguiçosamente estirado em seu sofá depois do jantar, folheia  as Vidas Paralelas de Plutarco; o acaso escolhe como destino as páginas que discorrem sobre a vida de Alcibíades, o célebre general ateniense. Com o livre fluxo dos pensamentos ao sabor do fortuito, o cultor das letras helênicas especula sobre as impressões que o vestuário moderno causaria em Alcibíades; adepto do espiritismo (que considera como o mais “criativo” dentre sistemas de idéias que são “puras nulidades”), decide, entre a pilhéria e a vaidade, evocar o espírito do lendário ateniense.  Neste preciso momento, o autor coloca em cena o Fantástico: Alcibíades aparece, não apenas como espectro, mas em carne e osso. Machado de Assis, vale dizer, introduz o componente  extravagante de modo casual, sóbrio,  sem malabarismos estilísticos e fogos de artifício verbais,  de acordo com os procedimentos consagrados por Hoffmann,  primus  inter pares do gênero.  O advento de Alcibíades é, pois, ainda que extraordinário, de certo modo natural.  

Estupefacto,  nosso personagem não está mais preocupado em questionar Alcibíades sobre a moda moderna; na conversação que em seguida entabulam, relata ao general helênico alguns dos principais acontecimentos históricos que movimentaram  a Grécia no decorrer dos séculos. A presença tangível de tão remota figura, entretanto, longe de ser fonte de contentamento,  provoca crescente aflição no atabalhoado desembargador. Pretextando ter de ir a um baile, procura livrar-se do incômodo visitante. Alcibíades, todavia, ainda que abalado pela revelação de que os deuses olímpicos não mais constituem objeto de devoção, manifesta vontade de acompanhar seu anfitrião. Este, descorçoado,  procura argumentar que o general não poderia sair à rua  em seus trajes de ateniense antigo. Alcibíades, decidido, replica: “Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira do século. Não tens alguma roupa que me emprestes?”. O helenista acaba por concordar, convencendo-se de que esta pode ser a melhor forma de se livrar do fantasma. Dirigem-se os dois então para os aposentos íntimos do dono da casa, que começa a vestir-se. Alcibíades não pode conter seu espanto ante os “canudos fechados”, as calças, e os “canudos abertos”, a casaca, que o outro veste, ambos de sombria e uniforme cor negra: “És a cousa mais singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo côr de noite (...). O mundo deve andar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma côr tão morta e tão triste. Nós éramos mais  alegres; vivíamos....”.  Quando o desembargador termina de trajar-se, a singular consternação do helênico não poderia ser maior. Perguntando se nada restava a ser acrescentado, se aquilo tudo era o que restava da elegância pelos gregos legada à posteridade,  nosso anfitrião lembra-se então de colocar seu chapéu. Alcibíades, contudo, não resiste a este último golpe desferido contra a singela e serena  excelência formal dos ideais estéticos clássicos; tomba, morto pela “segunda vez”, aos pés do assombrado desembargador.

No desenlace da fantasia  tramada por Machado, irrompe, coroando a narrativa, a surpreendente, patética e tragicômica dimensão satírica: Alcibíades resiste à morte dos Deuses e da polis ateniense, mas não à morte da beleza. Lembremos, de passagem,  que para o pensamento grego, o que pode ser constatado através da leitura de uma obra capital como a Ética a  Nicômaco de Aristóteles,  as noções de belo, bom e verdadeiro estão intimamente associadas; assim sendo, se a beleza desaparece do horizonte humano, também o bem e a verdade deixam de existir...  Mas será tão somente esta a mensagem que Machado de Assis  pretendeu nos comunicar  com o hábil e caprichoso devaneio farsesco aqui considerado? Se  porventura não é necessária, conforme os mestres do estilo nos ensinaram, a preocupação em detalhar as circunstâncias do aparecimento do fantástico, por que motivos deveríamos nos entregar a inúteis cavilações sobre os  possíveis níveis de leitura, subtextos,  cadeias significativas que uma sátira pode encerrar?  Contentemo-nos, pois, em concluir que Machado, em Uma Visita de Alcebíades,  executou com felicidade a tarefa precípua do gênero narrativo em pauta: recorrendo ao fantástico, atraiu a atenção de seu leitor para depois surpreende-lo com o advento de um inesperado desfecho satírico.