quinta-feira, julho 22, 2004

Lukasiewicz, Aristóteles e o Princípio da Não-Contradição

Alphonse Van Worden - 1750 AD






Tenciono discutir, no presente artigo, algumas questões relativas ao célebre 'princípio da não-contradição' formulado por Aristóteles; para tanto, pretendo expor à consideração dos senhores um artigo sobre o supracitado tema, de lavra do notável lógico, matemático e filósofo polonês Jan Lukasiewicz (1878-1956), sem dúvida um dos expoentes, ao lado de Kazimierz Twardowski (1866-1938), Stanislaw Lesniewski (1886-1939) e Alfred Tarski (1902-1983), da renomada escola de lógica que se formou nas universidades de Lvov e Varsóvia. O estudo de Lukasiewicz, O ZASADZIE SPRECZNOSCI U ARYSTOTELESA: STUDIUM KRYTYCZNE, foi publicado originalmente em 1910, podendo, no entanto, ser encontrado no número XXIV da Review of Metaphysics, traduzido por Michael V. Wedin sob o título ON THE PRINCIPLE OF CONTRADICTION IN ARISTOTLE: A CRITICAL STUDY.

Aristóteles, no Livro IV da METAFÍSICA, apresenta o princípio da não-contradição de três maneiras distintas, que serão denominadas por Lukasiewicz como formulações 'ontológica', 'lógica' e 'psicológica'. O esforço analítico do lógico polonês, todavia, irá se concentrar sobretudo nas formulações ontológica e lógica. Para o Estagirita, elas são equivalentes, tendo-se em mente que uma proposição, para ser verdadeira, deve estar conforme à realidade objetiva. As formulações ontológica e lógica seriam, portanto, verdadeiras pela circunstância de o mundo ser, metafisicamente, tal como é. Devemos ainda ressaltar que o princípio da não-contradição é, na perspectiva de Aristóteles, uma lei final, indemonstrável. Exigir uma demonstração, uma fundamentação última do 'princípio', seria incidir num retrocesso que não poderia deixar de ser infinito, incidir numa exigência que, pela própria natureza da questão em pauta, não poderia ser satisfeita. E, se existe algo que pode ser conhecido sem provas, que haveria de mais ajustado a essa espécie de conhecimento do que a lei da não-contradição, um princípio do qual é impossível duvidar ao pensarmos?

Com o propósito, todavia, de evidenciar a necessidade do princípio da não-contradição, o Estagirita propõe uma série de argumentos que,refutando a possibilidade da contradição na ordem do Discurso, procuram justificar o princípio. Lukasiewicz denomina tais argumentos como 'demonstrações elênticas e apagógicas', muito embora Aristóteles, deve-se sublinhar, jamais tenha pensado neste conjunto de deduções em termos de demonstrações 'positivas' do princípio. Parece evidente, a meu juízo, que o objetivo da estratégia de Aristóteles é o de comprovar que, admitindo-se a contradição, destrói-se o Discurso, rompe-se a possibilidade de comunicação racional, uma vez que os símbolos deixam de atuar como símbolos, não mais podendo refletir a Realidade no Discurso. Além disso, Aristóteles procura evidenciar, especialmente nas demonstrações apagógicas, as conseqüências absurdas a que somos levados quando negamos o princípio da não-contradição.

Não sendo razoável, e nem tampouco desejável, reproduzir aqui todos os passos da minuciosa análise de Lukasiewicz, gostaria de examinar, no entanto, as considerações mais relevantes que o lógico polonês extraiu de seu percurso argumentativo.

Em primeiro lugar, Lukasiewicz constata que o princípio da não-contradição não pode ser demonstrado com base em sua evidência; com efeito, a 'evidência' em si mesma não constitui critério seguro de verdade. Também resultaria inconseqüente, por outro lado, a tentativa de se derivar o Princípio a partir de nossa estrutura psíquica, uma vez que leis psicológicas apenas são suscetíveis de comprovação através do método experimental, e este não nos autoriza sequer a formular a Lei da não-contradição como princípio válido em primeira aproximação. Uma terceira possibilidade, então, procurar deduzir o Princípio da definição de 'negação' ou de 'falsidade'. Se "A não é B" exprime, por exemplo, simplesmente a falsidade de "A é B", para natural concluir que essa definição acarreta o Princípio. Contudo, nos diz Lukasiewicz, isto não ocorre na realidade: mesmo que aceitemos como correta a definição precedente de falsidade, nada impede que as proposições "A é B" e "A não é B" sejam ambas verdadeiras; apenas se impõe, como conseqüência, que a proposição "A é B" é simultaneamente falsa e verdadeira. A Lei da não-contradição envolve a noção de conjunção, e não decorre unicamente da definição de falsidade ( ou negação ). O lógico polonês nos chama a atenção para outra definição de 'verdade' e 'falsidade' que, de uma certa maneira, parece ser mais fecunda que a tradicional: a proposição "A é B" é verdadeira se corresponde a algo objetivo; falsa, em caso contrário. Similarmente, "A não é B" é uma proposição verdadeira se representa vínculo objetivo; falsa, caso tal fato não se dê. Levando-se em consideração tais critérios, nada impede 'a priori' que as proposições "A é B" e "A não é B" sejam ambas verdadeiras, desde que representem situações objetivas.

Lukasiewicz também observa que qualquer defesa contemporânea do princípio da não-contradição deve levar em conta o fato de 'objetos contraditórios', como, por exemplo, o 'Círculo Quadrado' de Meinong, pode ser matematicamente concebidos. Para tais objetos, claro está que o Princípio não é válido. Obviamente o lógico polonês não pressupõe que Aristóteles pudesse ter trabalhado com base em tais considerações, que fazem parte de um acervo de estudos que começou a se desenvolver apenas a partir de meados do século XIX, no esteio do florescimento da lógica simbólica. Entretanto, isso não nos impede de salientar a relevância intrínseca da observação de Lukasiewicz: a existência de 'objetos contraditórios' foi confirmada pelos desdobramentos recentes da lógica, como a Lógica Paraconsistente, que se desenvolve a partir de uma teoria dos sistemas formais inconsistentes. Podemos hoje atestar a existência de construtos lógico-matemáticos onde aparecem objetos contraditórios e que, por conseguinte, derrogam o princípio da não-contradição. Tendo em vista tais perspectivas, o Princípio não se mostra tão absoluto e intocável quanto poderia parecer à primeira vista. Aliás, Lukasiewicz afirma que, mesmo para Aristóteles, o princípio da não-contradição não poderia ser uma lei suprema, ao menos na acepção de que constitui pressuposição necessária de todos os demais axiomas lógicos. Citando célebre passagem de Aristóteles nos ANALÍTICOS POSTERIORES (An. Post. A, 11, 77a 10-22), o lógico polonês assevera que o seguinte silogismo seria válido, de acordo com os postulados apresentados pelo Estagirita:


B é A ( e também não é não-A )
C, que é não-C, é B e não-B
_________________________

C é A (e não é também não-A)


O silogismo anterior é, portanto, válido, embora a lei da não-contradição seja violada; é imperativo, portanto, aceitarmos a existência de leis válidas de raciocínio que independem do princípio da não-contradição.

A questão central a que agora chegamos pode ser apresentada da seguinte forma: existem 'objetos' em relação aos quais estamos certos da vigência do princípio da não-contradição? Em sua análise, Lukasiewicz irá destinguir três tipos de objetos: 1) os objetos reais; 2) as 'abstrações construtivas',livres criações do intelecto, como, por exemplo, os objetos da matemática clássica; 3) as 'abstrações reconstrutivas', que são conceitos elaborados para representar coisas reais. No tocante às abstrações construtivas, paradoxos como o que o célebre matemático e lógico inglês Bertrand Russell (1872-1970) descobriu em 1901, ao considerar a questão do 'Conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmo', indicam que, na maioria dos casos, jamais teremos certeza de que não irão violar o princípio da não-contradição. No que concerne às abstrações reconstrutivas, que bem espelham o realidade objetiva, e aos objetos reais, eles parecem estar protegidos da contradição. Com efeito, parece haver certeza de que não existem contradições diretamente perceptíveis na Realidade, pois as negações correlacionadas a juízos de percepção não são elas mesmas perceptíveis, pelo menos em nossa experiência cotidiana. No atual estágio de nosso conhecimento, temos a tendência a admitir como correta a constatação de qualquer contradição 'real' só pode ser 'mediata', resultado de inferências. Por outro lado, no entanto, não podemos esquecer o fato de que, desde os primórdios da filosofia, é recorrente a tese de que conceitos como o de 'movimento' necessariamente envolvem contradições (a este respeito, podem ser mencionadas as aporias de Zenão de Eléia). Muito embora essas dificuldades lógicas tenham sido sempre eludidas por meio de esquemas teóricos, uma que decorrem de inferências, não parece haver nenhum prova definitiva de que não existam contradições no 'mundo' objetivo. Portanto, não existe, também, qualquer prova positiva e inequívoca de que o princípio da não-contradição possui plena vigência em relação aos objetos reais e abstrações reconstrutivas. Contudo, na medida em que podemos verificar que o Princípio é 'útil', devemos encará-lo apenas como suposição ou hipótese que norteia e confere forma à indagação científica, regulamentando certas teorizações do Real.

Para Lukasiewicz, pois, o princípio da não-contradição carece de qualquer dignidade lógica a priori; possui, não obstante, um valor ético e 'prático' sumamente importante. Como enfatiza o lógico polonês, se não aceitássemos a validade do Princípio para as atividades 'práticas', estaríamos sujeitos a toda sorte de problemas. Assim sendo, para a vida ordinária (atividades comunicativas, sociais, etc.), como Aristóteles já havia assinalado, o princípio da não-contradição constitui pressuposto fundamental. Todavia, é necessário sublinhar que imprescindibilidade prático-ética do Princípio é matéria totalmente distinta de sua validez lógico-teórica. A conclusão de Lukasiewicz a este respeito não deixa de ser assaz perturbadora: a necessidade de se reconhecer como 'válida' a lei da não-contradição é tão somente um sintoma da imperfeição ética e intelectual do Homem. O lógico polonês sustenta que Aristóteles percebeu a importância prático-ética do princípio da não-contradição, mesmo que tal constatação não tenha sido claramente formulada em sua obra. Numa época em que o declínio político da Grécia já era patente, o Estagirita tornou-se o fundador e principal promotor de um trabalho filosófico-científico sistemático e de grande rigor. É muito provável que o filósofo grego, especula Lukasiewicz, encarasse todo esse esforço intelectual como um instrumento poderoso para a futura grandeza de sua nação. A negação do Princípio, por conseguinte, deixaria livre o caminho para toda a sorte de falsidades e incertezas, abalando as então frágeis estruturas da investigação científica. Por esse motivo, observa o lógico polonês, Aristóteles voltou-se contra os oponentes do Princípio de modo fervoroso, com uma veemência de linguagem pouco habitual em sua obra. Numa analogia singular, Lukasiewicz nos diz que o filósofo grego combatia pelo princípio da não-contradição como se duelasse por bens pessoais. O lógico polonês argumenta, portanto, que Aristóteles, talvez justamente por ter percebido a fraqueza e a inconsistência de seus postulados, mas tendo plena consciência da importância 'prática' que ela envolvia, acabou por estabelecer o princípio da não-contradição como fronteira última que não poderia ser ultrapassada por um discurso racional.

quarta-feira, julho 07, 2004

Stanley Kubrick: o Cinema da Perplexidade

Alphonse van Worden - 1750 AD




De todos os grandes artistas da história da Sétima Arte, Kubrick talvez seja, de um ponto de vista formal, o mais imprevisível. É possível identificarmos claramente um estilo singular, uma sintaxe marcante em cineastas como, por exemplo, Godard, Dreyer, Resnais, Antonioni, Murnau ou Eisenstein. São autores que possuem uma assinatura formal característica , uma estilística que, de certo modo, enfeixa seus trabalhos num Opus coerente. Kubrick, ao contrário, é um cineasta que procede por rupturas, em uma série de filmes que possivelmente possuem em comum apenas uma profunda inquietação moral. Diríamos portanto que a assinatura de Kubrick não é formal, mas filosófica. É um cinema da crise, da desmesura e da desordem de universos em colapso; e de homens que, de algum modo, tentam encontrar um sentido, um objetivo nos meandros desse caos. O coronel Dax (Kirk Douglas em Paths of Glory - 1957), o delinqüente Alex (Malcom McDowell em A Clockwork Orange - 1971) ou o astronauta David Bowman (Keir Dullea em 2001: A Space Odyssey - 1968) são homens que procuram respostas numa realidade cada vez mais ameaçadora, brutal e incompreensível. Os filmes de Kubrick, através das mais diversas e surpreendentes reviravoltas estilísticas, falam da perplexidade do indivíduo frente a desumanização e alienação da sociedade contemporânea, diante do que não pode dominar ou compreender. É a angústia, a impotência perante o inconcebível. Nesse sentido, Full Metal Jacket (1987), sua penúltima fita, é uma das mais significativas e profundas de sua obra.

Trata-se de um filme dividido em 2 partes simétricas e complementares. Na primeira metade o cenário é o campo de treinamento militar de Parris Island, na Carolina do Sul, onde se preparam soldados para a Guerra do Vietnã. Do grupo de jovens recém-chegados, dois se destacam no enfoque de Kubrick: o tolo, delicado e algo ingênuo recruta "Gomer" Pyle (Vince D’Onofrio) e o irônico recruta "Joker" (Matthew Modine). A figura dominante, contudo, é o vulcânico sargento-instrutor Hartman (maravilhosamente interpretado por Lee Ermey). Hartman arrasta seus comandados para uma ritualização histriônica e absurda da dinâmica da guerra, num teatro de sombras onde a desrazão estabelece seu aterrorizante primado. A maneira como Kubrick registra esse peculiar treinamento tem algo do perturbador, ainda que hilariante, terrorismo cinético dos melhores desenhos animados de Tex Avery. O sargento é um cartoon ambulante, um chapeleiro-louco cheio de humor negro e sarcasmo ácido, que nos atrai e repele ao mesmo tempo.

O distanciamento crescente de Joker permite que ele suporte incólume a tirania delirante do sargento Hartman; o mesmo, entretanto, não acontece com o infantil recruta Pyle: transformado, em virtude de sua fragilidade, num alvo preferencial para o instrutor, Pyle vai se tornando gradativamente uma bomba-relógio carregada de ódio, paranóia e ressentimento. Na madrugada que precede o embarque para o Vietnã, o dócil adolescente convertido em insana máquina assassina devolve ao Sistema, com doses redobradas de destruição, tudo o que lhe foi oferecido como caminho de ‘retidão’.



Nesse momento, Kubrick nos conduz para a segunda metade do filme. Estamos agora em pleno teatro de operações no Vietnã, às vésperas da ofensiva do Tet. A encenação guerreira que o sargento havia apresentado a seus pupilos falha miseravelmente: a realidade é muito mais cruel e desumana que a pantomima caricatural de Hartman. Nada do que foi representado corresponde ao que efetivamente existe. O que se verifica é a perplexidade e o terror de homens despreparados, que não chegam jamais a compreender a estatura do que os envolve. Joker tenta inicialmente conservar seu distanciamento irônico como uma muralha invisível entre ele e o caos, mas acaba por perceber que seu auto-condicionamento não é mais possível. Era viável contrapor uma ilusão (Hartman e seu treinamento) a outra ilusão (um pretenso distanciamento), mas diante de um contexto onde todas as estruturas de referência são subvertidas, onde todas as certezas se desmancham no inefável, a dialética de Joker perde seus efeitos.

E é tão somente no final do filme que a realidade se mostra para Joker em toda a sua magnitude e inexorabilidade. Ele e seu pelotão recebem a missão de tomar uma posição vietcong, um conjunto de prédios em ruínas onde o inimigo ainda resiste. Um a um, os soldados que tentam avançar pelo pátio interno da edificação são metralhados e mortos. Os disparos parecem vir de todos os lados, e a desordem se instala entre o desarvorado pelotão. Depois de uma desesperada batalha, entretanto, o inimigo é silenciado. Os soldados remanescentes entram no prédio principal, e percorrem seus desolados e arruinados salões e corredores. Finalmente, acabam por encontrar, num dos aposentos, o terrível inimigo: uma esquálida e agonizante adolescente de não mais de 15 anos. A princípio, tentam fazer piada da situação, mas logo um silêncio espectral se impõe. A jovem combatente, com suas vísceras dilaceradas por estilhaços, ainda encontra forças para amaldiçoar seus algozes. O que fazer agora diante do pesadelo real, diante do verdadeiro Heart of Darkness, como enfrentar o incomensurável? Os soldados hesitam, impotentes. E é, por fim, do sarcástico recruta Joker, do distanciado e ausente Joker, que parte o tiro de misericórdia, em seu primeiro e único envolvimento com o Real em todo o filme.

A lição ministrada de modo magnífico por Kubrick assim se encerra. Saindo do edifício, os soldados caminham pela noite ao som de fragores distantes e de uma inocente música do Clube do Mickey. E nessa peregrinação através das brumas indistintas da perplexidade humana, talvez todos eles, e sobretudo Joker, estejam refletindo sobre a precariedade de nossa condição, sobre a ausência de respostas fáceis frente aos desígnios impenetráveis da existência, e também, num eco das meditações metafísicas do capitão Ahab de Moby Dick, sob o Mal intangível que há por trás da Máscara...