segunda-feira, agosto 01, 2011

Tratado Geral do HOMEM-FUNÇÃO - II: O Decálogo do Homem-Função




(Segue abaixo um excerto do Livro de Ouro do Homem-Função, apresentando o Decálogo desta blasfema religião)


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1) Só me interessarei pelo que for útil.


2) Só é útil o que gera dinheiro.


3) Não terei opiniões próprias, apenas conveniências.


4) Não terei amigos irresponsáveis.


5) Não terei relacionamentos amorosos que não sejam pautados pelo binômio maturidade / utilidade.


6) Estudarei para todos os concursos públicos que aparecerem.


7) Farei todos os cursos de especialização e reciclagem profissional da minha área.


8) Gastar tempo de forma inútil é imperdoável.


9) 'O patrão falou, tá falado'.


10) Se tudo der errado, prometo suar ainda mais a camisa.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte – Deserto dos Tártaros





Tratado Geral do HOMEM-FUNÇÃO - I

Alphonse van Worden - 1750 AD





Excelsos irmãos d'armas:

Dada a extrema gravidade que a proliferação incontrolável do Homem-Função representa para o futuro da Humanidade, dar-vos-ei alguns subsídios para que possais conhecer melhor essa ominosa, metuenda ameaça que paira sobre todos nós.



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A noção de Utilidade  é a pedra basilar tanto do modo de vida quanto da ideologia funcionalista. Com efeito, a característica mais emblemática de um 'função' é a total incapacidade de analisar qualquer coisa sem o princípio da Utilidade como parâmetro determinante (e não raro único) de juízo. Assim sendo, a utilidade está acima de tudo (amor, prazer, conhecimento, amizade, etc.) no universo mental do Homem-Função.


Quando a doutrina ética denominada 'utilitarismo' foi proposta pelos filósofos ingleses Jeremy Bentham e John Stuart Mill nos séculos XVIII e XIX, fazia-se presente na reflexão de tais autores um vínculo insofismável, inequívoco, entre a noção de 'utilidade', de um lado, a de 'prazer / bem estar', de outro. Assim sendo, ações, normas e processos seriam considerados 'bons' na medida em que que fossem compatíveis com o Greatest Happiness Principle, isto é, na medida em que proporcionassem ao homem o máximo de felicidade, prazer e bem-estar possível. Em suma: por mais que eventualmente possamos condenar a ausência de um princípio ético transcendente, capaz de pautar a ação humana através de critérios universalmente válidos em qualquer circunstância, ao menos o utilitarismo em sua configuração original estabelecia, portanto, um amálgama entre 'utilidade', 'prazer' e 'bem-estar'.  


Tal vínculo, todavia, foi destruído na prática pela modernidade liberal, sendo a noção de 'utilidade' inexorável e exclusivamente atrelada à noção de LUCRO, no sentido mais pragmático e materialista do termo. 


Muito bem: ao contrário dos chamados 'Cidadãos de Bem', facilmente discerníveis, os Homens-Função não raro logram camuflar-se com rara habilidade, o que os torna ainda mais perigosos.


O 'cidadão de bem' encarna / defende um conjunto de valores, d'entre os quais se destacam a manutenção da ordem, a vida em família, os bons costumes e a autoridade patriarcal; o 'homem-função', por seu turno, pode até eventualmente advogar tais valores, caso isto lhe seja conveniente, ou seja, útil. Em suma: o 'cidadão de bem' pauta-se por convicções (quer elas sejam corretas ou não), ao passo que o Homem-Função pauta-se invariavelmente por conveniências, vale dizer, pelo que lhe pareça ser a atitude mais útil  em cada circunstância.  Percebe-se, portanto, que o 'cidadão de bem' tem um perfil ideológico relativamente nítido, bem definido; o Homem-Função, por outro lado, é uma criatura de contornos indistintos, um ser amorfo, que se adapta, sempre a partir da noção-clave de utilidade, às circunstâncias que lhe forem mais favoráveis. Por exemplo: se for conveniente para um 'função' defender o casamento gay, ou a política de cotas no meio universitário, ele o fará sem quaisquer hesitações; o mesmo, todavia, não ocorre com o 'cidadão de bem'. Destarte, é perfeitamente possível, e até mesmo corriqueiro, ver o mais pragmático Homem-Função metamorfoseando-se de 'progressista'. 
A esse respeito, poderíamos mencionar a título de ilustração os grandes corifeus do Silicon Valley, isto é,  os jovens bilionários norte-americanos que revolucionaram a tecnologia da informação a partir da década de 70. Com efeito, o imaginário que difundiram sobre si mesmos se erige a partir de dois eixos fundamentais: por um lado, o de grandes empreendedores que 'suam a camisa' em busca de um sonho, os notáveis self-made men d'uma nova era tecnológica; por outro, o de herdeiros bem-sucedidos da contracultura californiana dos anos 60, que souberam dar sentido, sustentação e viabilidade ao que inicialmente era mero devaneio.  

Do acima exposto, conclui-se, outrossim, que o 'cidadão de bem' costuma engajar-se, pelo menos na esfera puramente verbal, na defesa de suas idéias, em geral de modo deveras enfático, saliente-se. Já o  Homem-Função rarissimamente se envolve em discussões, pois não tem interesse pela arte da argumentação, ou até mesmo pelo prazer pueril de 'vencer' uma discussão. E isto ocorre pelo seguinte: no mundo contemporâneo, sobretudo na esfera corporativa, o debate só é estimulado na medida em que se limite à 'maximização de lucros' e / ou 'minimização de custos'. Quaisquer outros tópicos são tidos como rigorosamente inúteis, e portanto, excluídos a fortiori do campo de interesses do Homem-Função.

Os Homens-Função são excessivamente esquemáticos, interpretando, por exemplo, as noções de Responsabilidade e Seriedade de forma estereotipada, Tornam-se impermeáveis à ironia e ao humor, o que acaba prejudicando sua capacidade crítica. Assim sendo, também distorcem a noção de Maturidade, que passa a ser sinônimo de um estilo de vida cinzento e monótono.


Tais criaturas estão sempre preocupadas com o que os outros pensarão a propósito de seus atos, tornando-se, assim, desprovidas de espontaneidade. Suas metas estão permanentemente ligados ao trabalho.


É importante sublinhar que o conceito de Utilidade é um subproduto do Iluminismo, e está presente no DNA tanto do socialismo quanto do liberalismo, respectivamente sob os rótulos de bem-estar social ou individual,, ambos capturados pelo Funcionalismo como justificativa ao culto da utilidade.


A personalidade funcional desenvolve, já partida, o hábito de converter MEIOS (trabalho, dinheiro) em FINS; deseja, tão somente o infinitamente possível e jamais fará algo que saia da esfera dos padrões estabelecidos.


A contrapelo do que muitos estudiosos da questão soem afirmar, sustentamos que Liberalismo não é per si capaz de explicar a raison d'être  do Homem-Função, visto que este vê na teoria do livre mercado não um modelo econômico necessariamente mais eficaz, mas sim algo cono una 'carta de alforria' para seus atos. O socialismo, por seu turno, tampouco dá conta da questão, pois concebe o trabalho como condição necessária à existência humana,, sem por isso convertê-lo em dogma central d'uma espécie de 'religião secular', tal como  faz o 'função'.



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Isto posto, egrégios confrades,  é de bom alvitre que todos saibamos identificar essas perniciosas criaturas o mais rapidamente possível; para tanto, elencarei aqui algumas características que, em geral, são de grande auxílio na correta identificação de um Homem-Função:


1) Qualquer pessoa que passe 99,99% de seu tempo lendo editais para concursos públicos; avaliando relação candidato / vaga; estudando em cursinhos preparatórios; ou simplesmente torrando a paciência de outros seres humanos com sua monomania por concursos públicos é, por definição, um 'função';


2) se por ocasião das festas de fim de ano, o indivíduo desejar vos desejar um "PRÓSPERO ano novo" em lugar da prosaica e inofensiva expressão "feliz ano novo", atentai bem: é bem possível que seja um 'função';


3) o emprego recorrente de expressões como 'reciclagem profissional', 'reengenharia', 'otimização de recursos', 'Empreendedorismo' e termos análogos denota, sem sombra de dúvidas, a presença  d'um Homem-Função;


4) máximas como "o trabalho dignifica o homem" e suas múltiplas variantes são emblemáticas do pensamento funcionalista;


5) QUALQUER referência elogiosa à 'pensadora' Ayn Rand é um indício insofismável, incontrastável e irreprochável de que o cidadão que a proferiu é um Homem-Função de altíssima periculosidade;


6) a idolatria acéfala por qualquer coisa proveniente do primeiro mundo e, analogamente, o desprezo pelas características de países latinos ou do terceiro mundo, sói caracterizar o indivíduo 'função'.