quinta-feira, dezembro 01, 2011

Ad Majorem Dei Gloriam II - Arnaud Amalric et Godefroy de Bouillon


Na breve nota que se segue, excelsos irmãos d'armas, gostaria de prestar um tributo a dois miríficos paladinos da Igreja.

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Arnaud Amalric (? - 1225)


















Abade de Cîteaux e Legado Papal durante a cruzada contra os albingenses, foi sem dúvida um dos grandes próceres da Cristandade. Em 1209, por ocasião do assalto final à cidade de Béziers, ao ser inquirido pelo comandante das tropas da Igreja sobre como distinguir entre hereges e inocentes, o venerável monge cisterciense deu-lhe a seguinte resposta:


Caedite eos. Novit enim Dominus qui sunt eius.
(Matai-os todos, Deus reconhecerá os seus)



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Godefroy de Bouillon (1058 - 1100)

























Falemos agora d'um ínclito entre ínclitos, o ático Godefroy de Bouillon, Senhor do burgo de Bouillon e Duque da Baixa Lorena. Descendente de Charlemagne, Godefroy de Bouillon foi o principal comandante militar das armas cristãs na Primeira Cruzada. Sua liderança, coragem, abnegação, inteligência e, sobretudo, sua imorredoira e indomável fé na palavra do Altíssimo, foram elementos decisivos em batalhas de suma importância, tais como as de Dorylaeum, Arsuf, Nicaea, Ascalon, Antiochia, etc. Cito, por fim, um episódio que demonstra a supina humildade de que só os grandes próceres são capazes: ao ser nomeado Rei de Jerusalém, Bouillon declinou da honraria, dizendo:



O único Rei de Jerusalém é Jesus Cristo. Sou apenas um defensor do Santo Sepulcro.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte – Deserto dos Tártaros

A propósito do caráter não-científico do marxismo - parte VII (final)

Alphonse van Worden - 1750 AD
















Reparem os senhores que, no tocante à problemática abordada no encerramento da VI parte de nosso ensaio, o marxista ortodoxo nada pode fazer senão perseverar num círculo vicioso. Consoante são obrigados a admitir, sob pena de recair em total insensatez, o fenômeno social que denominamos como 'revolução' inexoravelmente pode ou não ocorrer; tampouco há, é mister também reconhecer, qualquer instrumental científico disponível capaz de determinar com exatidão seu comportamento, carência que se deve a uma razão muito simples: é impossível prever com rigor científico qual será o procedimento de um fenômeno social no futuro, uma vez que tais eventos estão sujeitos ao caudal fortuito, contingente, e adventício da ação humana.

 Destarte, não seria descabido afirmar que o marxismo pretende responder de forma não somente satisfatória, mas definitiva, a indagações tão metafisicamente vagas, inefáveis e rarefeitas como as abordadas ao longo deste escrito; ora, seria necessário então informar aos marxistas que apenas o pensamento religioso é passível de formular respostas cabais (escusado dizer que inverificáveis) para tais questões.

O conhecimento científico, por seu turno, sem dúvida está apto para identificar a causa e a origem de um vasto número de fenômenos, mas não é capaz de determinar com precisão ocorrências e desdobramentos futuros, uma vez que generalizações a partir de inferências indutivas não possuem consistência lógico-demonstrativa absoluta - o célebre e complexo 'problema da indução'. Vejamos aqui um exemplo clássico de tal problema, apresentado pelo filósofo escocês David Hume:


O Sol nasceu todos os dias no passado 
O Sol continua nascendo no presente 
Se o Sol nasceu todos os dias no passado e continua nascendo hoje, 
Logo, nascerá também amanhã 


É do conhecimento de todos que o Sol nasce todos os dias desde o princípio da História, mas isto não nos fornece nenhuma prova cabal de que irá ou não nascer amanhã. É possível, por exemplo, imaginarmos o advento de uma divindade que impeça o nascimento do Sol amanhã. Hume argumenta que não embora não tenhamos qualquer evidência que indique o aparecimento de semelhante divindade, tampouco possuímos uma evidência contrária. Assim sendo, não podemos afirmar com certeza se o Sol nascerá ou não amanhã. Uma vez que inferências indutivas não podem ser assentadas sobre critérios de verdade como os que asseguram a validade das inferências dedutivas, o que fazer? Talvez pudéssemos concluir, num primeiro momento, que a indução deve ser abandonada enquanto processo de raciocínio legítimo, e que devemos nos limitar aos procedimentos dedutivos. Todavia, considerando-se que o raciocínio dedutivo não nos permite fazer previsões sobre ocorrências futuras, na medida em que suas assertivas derivam de generalizações já estabelecidas, como seria possível o conhecimento científico, que se constitui precisamente através de hipóteses formuladas a partir de observações empíricas no passado e no presente? Sem o recurso aos processos indutivos de raciocínio, a constituição do conhecimento científico se tornaria, como podemos constatar, uma tarefa impossível.

É patente, pois, a conclusão de que o Homem não pode abdicar do uso de métodos indutivos em seu processo cognitivo. Entretanto, de que modo podemos fundamentar, justificar as crenças obtidas por intermédio da indução, uma vez que se baseiam em hipóteses sobre eventos ainda não verificados? Diversas respostas para tal dilema foram postuladas ao longo do tempo, algumas sobremaneira engenhosas, nenhuma delas definitiva, dentre as quais podemos destacar as seguintes: a solução em termos de probabilidade estatística da indução, proposta pelo britânico Bertrand Russell; a probabilidade da inferência indutiva em termos de credibilidade racional, lavrada pelo alemão Carl Gustav Hempel; a justificação pragmática do indutivismo científico, a cargo do também alemão Hans Reichenbach; a pertinência dos processos indutivos de raciocínio em termos de predicados projetáveis ou não projetáveis, avançada pelo norte-americano Nelson Goodman.

Pois bem, meus caríssimos confrades: como exigir do pensamento social respostas para as questões esboçadas por gerações de autores marxistas, se nem mesmo a racionalidade científica, sobremaneira mais rigorosa e exata, pode solucioná-las por completo? Concluo asseverando que o pensamento social não pode e muito menos precisa respondê-las; deixemo-lo, pois, desempenhar a contento sua importante e cardinal tarefa: formular estratégias pragmáticas, necessária e inevitavelmente transitórias, para a satisfação, também provisória, de demanda sociais igualmente transitivas e cambiantes. Insomma: cabe somente a nós, por conseguinte, escolher a melhor trilha a seguir: podemos (conforme o próprio Marx nos ensinou, diga-se de passagem) optar pelo caminho da transformação política da realidade social, ou então, emaranhando-nos em intermináveis e estéreis circunlóquios conceituais a propósito de teorizações pseudocientíficos, marcar passo e nem sequer chegar à linha de partida.

Por fim, gostaria de fazer uma breve consideração a propósito dos extremos de insanidade a que o marxismo pode chegar. Como todos sabemos, critérios epistemológicos e parâmetros de racionalidade científica não são burgueses, proletários, aristocráticos ou camponeses, mas sim categorias UNIVERSAIS, válidos por definição ou comprovação empírica. Muito bem: durante o período mais 'ortodoxo' do regime stalinista, falava-se na URSS, com toda a seriedade, na necessidade de se criar uma 'ciência proletária', em contraposição à 'ciência burguesa'. Não é necessário, creio, tecer maiores comentários: qualquer um que tenha ao menos uma vaga nação das hediondas teratologias conceituais a que chegaram os delírios pseudocientíficos de um Ivan Vladimirovich Michurin, de um Trofim Denisovich Lysenko ou de um Abram Moiseyevich Deborin, sabe qual é o real significado d'uma 'ciência proletária'...

terça-feira, novembro 01, 2011

A propósito dos gibelinos e do advento da Reforma protestante.


























*O propósito desta breve nota é demonstrar, em linhas gerais, que a perspectiva advogada pelo movimento gibelino, caso prevalecente, teria salvo a Cristandade do flagelo que a Reforma representou; ademais, trata-se d'uma espécie de proêmio para um escrito de maior fôlego a respeito do célebre tratado De Monarchia (1313), onde o insigne poeta florentino Dante Alighieri sintetiza os aspectos fulcrais do catolicismo gibelino.

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 Como de sobejo o sabeis, excelsos irmãos d'armas, a degeneração do princípio de potestas em plenitude potestatis foi justamente o foco da tensão progressiva que se desenvolveu, a partir do século XI, entre a Igreja e o Sacro Império (com a 'Questão das Investiduras'), culminando no século XIV, durante o papado de Avignon, com o assalto capitaneado por João XXII e Benedito XII contra os legítimos direitos do Imperador e dos príncipes-eleitores.

Os argumentos favoráveis ao partido dos 'Imperiais', longe de se circunscreverem ao momento histórico em que a supracitada controvérsia aflorou, remontam a autores da escola patrística. Consoante estabelece Eusébio de Cesaréia (o panegirista de Constantino o Grande), por exemplo, a monarquia, enquanto forma política, corresponderia a uma expressão secular do monoteísmo religioso, conclusão também abonada por um teólogo da estatura de Santo Agostinho e, mais tarde, outorgada por Dante (como veremos n'outra ocasião); acrescente-se , ainda, conforme salienta o bardo florentino, que a noção d'um Império Universal corresponde à própria estrutura da Realidade, qual seja, uma esfera harmônica e ordenada sob o primado do Criador. Ockham e Marsiglio da Padova, por seu turno, já à época da heresia avignonense, contestaram o princípio da Plenitudo Potestatis, consoante o qual o Sumo Pontífice detinha, de forma unilateral, o poder de conferir ou não legitimidade a qualquer governante da Cristandade. Destarte, ambos sustentavam a tese de que a autoridade do Papa é limitada pela Lei de Deus, pelo direito natural e pela liberdade dos liderados, posição que está lastreada nos Evangelhos; propugnavam, outrossim, a autonomia, no que concerne às questões temporais, do Imperador e demais governantes em relação à Igreja.

Em seu Defensor Pacis (1324), o teológo padovano assevera, inclusive, que o Imperador é o líder supremo da Cristandade. Para alicerçar tal ponto de vista, recorreu, entre outros argumentos, à tradição da 'unção real': o soberano, ao ser ungido, passava a ser depositário d'uma missão tanta política quanto religiosa, cabendo-lhe, inclusive, zelar pela retidão espiritual e moral da Societas Christiana.

Assim sendo, a perspectiva gibelina, longe de enfraquecer, como muitos outrora alegaram ,e 'inda hoje alegam, o poder da Igreja, era a única possibilidade CONCRETA de fornecer-lhe um alicerce político poderoso e estável. Não me parece irrazoável especular, por exemplo, que, justo ao contrário do que ocorreu, um processo de convergência entre a Igreja e o Império nos séculos XIV e XV teria anulado as circunstâncias que viabilizaram a Reforma protestante. Infelizmente, contudo, o Papado optou pelo caminho oposto: privilegiar França e Espanha, onde a presença da Igreja como força política era considerável, em detrimento do Sacro Império e da Inglaterra, onde a Igreja vinha perdendo poder e prestígio pelo menos desde o século XII.

 A corrupção desavergonhada, desenfreada do período avignonense, mormente nos pontificados de João XXII e Bento XII, com gravíssimos episódios de simonia, venda de indulgências, etc., foi, sem sombra de dúvida, o grande pretexto, o 'ovo da serpente' que permitiu a homens como Martinho Lutero, Calvino, Zwingli, etc. não só explorar insidiosamente a indignação dos simples, mas, sobretudo, capitalizar a legítima insatisfação dos príncipes-eleitores e outros potentados do Império em relação aos desmandos do Papado.

Católicos não raro bem intencionados, malgrado ingênuos, soem afirmar que Lutero foi sobremaneira influenciado pelas ideias políticas de Marsiglio da Padova e Ockham. Ora, ele apenas fez o que qualquer conspirador astuto faria em seu lugar: distorceu deliberadamente as teses dos teólogos imperiais, que denunciavam, de modo pertinente e corajoso, o crescente processo de degeneração do 'alto comando' da Igreja, para delas extrair os mais pérfidos sofismas.

E acrescento: o retorno do Papado a Roma não logrou reverter o processo de degradação da Cúria e do Colégio dos Cardeais. Um século após homens como os supracitados Ockham e Marsiglio da Padova, e também Michele di Cesena e outros notáveis franciscanos, erguerem suas vozes contra as terríveis iniquidades perpetradas em nome da Igreja, a ira santa de um frade dominicano, Girolamo Savonarola, fez-se ouvir em Florença.

As prédicas do bravo religioso ferraresi são textos impressionantes, não só em virtude da intensidade flamejante de sua fé, mas também pela beleza rutilante de suas imagens literárias e, claro está, pelo ousado caráter de suas idéias políticas. Savonarola foi um paladino pela libertação do povo contra a tirania de prelados e príncipes corruptos. sem no entanto indulgir, tal como a tragicamente equivocada 'Teologia da Libertação', por exemplo, em qualquer forma de relaxamento moral e lassidão dos costumes, pois propugnava o mais rigoroso ascetismo como norma de conduta pessoal e social. O excelso dominicano advogava uma maior participação do povo nas questões de Estado, por intermédio do "Grande Conselho", bem como a adoção d'um regime constitucional de caráter republicano, tudo isto sem no entanto abdicar, o que é de fundamental importância, da crença de que qualquer forma de poder temporal tão somente pode ser definida como LEGÍTIMA caso desfrute de lastro teológico.

Seu Trattato circa il Reggimento di Firenze (publicado somente em 1848) é, se calhar, o que de mais importante escreveu em termos de reflexão política. É uma obra de leitura sumamente interessante, pois transfigura a perspectiva não d'uma teoria abstrata, mas d'um programa político de ação concreta sob a luz da Teologia. Não se trata, é mister salientar, d'um pensamento a predicar a mera instrumentalização política da religião para fins mundanos, mas sim d'uma reflexão que emerge do próprio imo da consciência religiosa ou, melhor dizendo, d'um impulso de transformação social que nasce não da razão política, mas dos postulados transcendentes da fé, convertendo a religião em agir político, e não o contrário.

Em 1498, Savonarola foi queimado vivo, por ordem do Papa Alexandre VI, um dos pontífices mais depravados, sob todos os aspectos, da História da Igreja; 19 anos mais tarde, Lutero afixava suas célebres 95 teses em Wittenberg.

Os factos falam por si sós, meus diletos confrades: houvesse triunfado a perspectiva gibelina, a reforma protestante jamais teria ocorrido ou, na PIOR das hipóteses, teria sido esmagada no nascedouro.

























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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

A propósito do caráter não-científico do marxismo - parte VI


Alphonse van Worden - 1750 AD







O problema radica, mais uma vez salientamos, na abstrusa pertinácia em enquadrar o pensamento social  nas exigências da racionalidade científica e aos critérios de cientificidade, justamente porque tais modalidades de pensamento não envolvem tautologias verdadeiras por definição e nem tampouco enunciados empiricamente verificáveis, pela série de motivos que já enumerei ao longo deste ensaio. Tenho, por conseguinte, plena certeza, na contramão do que afirmam certos marxistas, de que o pensamento social pode e deve evoluir muito bem fora dos quadrantes da razão científica, uma vez que sua dinâmica constitutiva dela prescinde.

Não pretendo, pois, que as asserções do pensamento social tenham validade atemporal e universal, estejam submetidas aos mesmos parâmetros que regem tautologias verdadeiras por definição (2+2 = 4) ou enunciados sintéticos empiricamente (a molécula da água é formada por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio). Tenciono, na verdade, ver o pensamento social livre de tais amarras epistemológicas, voltado exclusivamente para aquele que é seu precípuo mister: atuar como ‘guia para a ação’, ou seja, como saber capaz de interpretar corretamente os sinais emitidos pelas cambiantes conjunturas sociais. Para tanto, não é necessário estar sob o primado da razão lógico-demonstrativa, mas também somente a capacidade de criar instrumentos pragmáticos eficazes para a ação humana. Devemos ter em mente que a finalidade do pensamento social não é formular uma sistematização analítica da realidade empírica, mas uma dinâmica transformativa do universo social.

Insisto: qual a necessidade, para efeito de sua efetiva aplicação como instrumento de luta política, de o marxismo ser considerado uma teoria científica? A resposta parta esta questão nos remete, a meu juízo, para outra indagação: por que atribuir ao estatuto científico primazia em termos de instância de legitimação para os saberes humanos? Examinemos este ponto com mais vagar: dentre todos os sistemas conceituais elaborados pela humanidade, qual logrou conquistar a maior legitimidade social, política e histórica ao longo do tempo? O pensamento religioso, isto é, precisamente a modalidade de saber mais refratária aos ditames da racionalidade científica! E como atua o pensamento teológico? Como modelo para a conduta humana, tanto em termos individuais quanto sociais. 

É, portanto, nesse horizonte que o marxismo deve também se inserir: como guia para ação social humana, como instrumento político-ideológico para a ação revolucionária. Para tanto, não se faz necessária a gestação de uma hermenêutica científica da realidade empírica, mas a elaboração de estratégias pragmáticas capazes de conquistar corações e mentes para um determinado objetivo político. 

 É mister admitir que há, de facto, um grande fetichismo no que tange à racionalidade científica como nec plus ultra definitivo da cultura universal; com efeito, não podemos negar que a noção de que a ciência fala a 'linguagem da verdade' é bastante difundida. Todavia, volto a frisar: em seu caráter precípuo de guia político para ação revolucionária, o marxismo prescinde por completo de qualquer pretensão de legitimidade científica: revoluções, enquanto processos sociais, são um fenômeno messiânico e largamente irracionalista, que não pode ser sintetizado/descrito/analisado a partir de categorias racionais.

Por outro, não se pode extrair de minhas considerações a assertiva de que os pressupostos e concepções do pensamento social seriam, por assim dizer, meros 'palpites'. Consoante a perspectiva que advogo, tais saberes, quando adequadamente empregues, são capazes de interpretar com eficácia os indícios emitidos pelas diversas formações e instâncias sociais, gerando, desta forma, dispositivos pragmáticos de orientação para a ação humana. Para desempenhar esta tarefa, ou seja, para configurar-se como dinâmica transformativa do universo social, o pensamento marxista não precisa de modo algum satisfazer a critérios de cientificidade, mas tão somente funcionar como uma espécie de sismógrafo da História.  

Prossigamos, contudo, com as objeções que um marxista eventualmente poderia  apresentar. Digamos que nosso interlocutor imaginário afirme o seguinte: 'um objeto único - a sociedade - e em constante mutação não invalida um arcabouço científico se este assume a variabilidade da dinâmica interna do objeto. No final o objeto é sempre o mesmo, quer tratemos do século XIX, quer abordemos a época atual'.

Peço a atenção dos senhores para as considerações acima esboçadas. O que seria um 'objeto único'? Um ente unívoco, que não envolve contradições internas ou ambigüidade conceitual em sua formulação, que é sempre idêntico a si mesmo, pois o que foi ontem é o que hoje é e também o que amanhã será. Um objeto, portanto, como o oxigênio, sem dúvida preenche todos esses requisitos: é únivoco, não envolve ambigüidade em sua definição e é sempre idêntico a si mesmo no espaço-tempo. 

Examinemos agora o termo 'sociedade'. À partida há que assinalar que, ao contrário de 'oxigênio', não estamos diante de um objeto dado, mas sim de um objeto construído, isto é, d'uma generalização indutiva elaborada a partir da observação sobre agrupamentos de indivíduos que habitam um determinado espaço geográfico num determinado lapso temporal. Trata-se, aliás, como podemos verificar, muito mais de um conceito que um objeto; admitamos todavia, somente para efeito da discussão em tela, que 'sociedade' é um objeto, para então sujeitá-lo ao mesmo escrutínio enfrentado pelo objeto 'oxigênio'. É 'sociedade', assim como 'oxigênio, uma entidade inequívoca?  À partida já podemos constatar que a definição de nosso objeto envolve conceitos polissêmicos como 'grupo' e 'habitar', para os quais dificilmente poderíamos oferecer determinações inequívocas. É 'sociedade' um objeto sempre idêntico a si mesmo? Talvez sua definição o seja, mas não o que ela designa: a sociedade dos zulus, por exemplo, é distinta da dos esquimós, assim como a sociedade londrina do século XVIII é distinta da do século XXI. Seria destarte mais correto falarmos não em 'sociedade' mas em 'sociedades', uma vez que são múltiplas no espaço e no tempo as entidades que tal termo pode significar.  O mesmo não ocorre, contudo, com o objeto 'oxigênio': 'oxigênio' foi, é e sempre será 'oxigênio', seja entre zulus, esquimós, londrinos do século XVIII ou do século XXI. Retornando às exigências da razão lógico-demonstrativa, podemos com certeza afirmar como o objeto 'oxigênio' irá comportar-se dadas certas condições pré-determinadas; em outras palavras, podemos gerar conhecimento científico a partir da observação de 'oxigênio'. O mesmo procedimento, entretanto, não pode ser dispensado ao objeto construído 'sociedade', cuja índole polissêmica e metamórfica nos faculta tão somente a formulação de considerações provisórias e assistemáticas. O conhecimento científico, portanto, não trabalha com objetos variáveis e equívocos, mas tão somente com aqueles passíveis de definição únivoca e universalmente válida em qualquer contexto espaço-temporal. 





sábado, outubro 01, 2011

Os argumentos neo-dualistas na perspectiva 'fisicalista' de John Perry - I

Alphonse van Worden - 1750 AD
































No primeiro capítulo de seu livro Knowledge, Possibility and Consciousness (2001), John Perry nos diz que sua estratégia geral no decorrer da obra será a de defender uma versão do fisicalismo que adote as visões do senso comum sobre a realidade e a importância do caráter subjetivo da experiência. O autor denomina sua versão da concepção fisicalista como fisicalismo antecedente. A tese central de Perry procura evidenciar que os argumentos neodualistas fatalmente impingem ao fisicalismo doutrinas de que ele prescinde.

 Logo na abertura do livro Perry afirma que uma maneira de explicar o objetivo de seu livro seria dizer que ele constitui uma tentativa de demonstrar a coerência filosófica de uma passagem do filme Fantastic Voyage (Richard Fleischer, 1966). Na passagem supracitada os personagens estão atravessando, em seu microscópico submarino, o cérebro do cientista que devem salvar. Há uma espécie de vapor azul que surge em certa parte do cérebro, atraindo a atenção da equipe de resgate. Estarrecido Arthur Kennedy diz para Rachel Welch: “Veja, somos os primeiros a verdadeiramente ver pensamentos humanos”.

O episódio apresentado no filme de Fleischer assume ser concebível a possibilidade de que alguém observe, usando seus sentidos físicos, pensamentos ou experiências de outrem. Para Perry, essa é uma constatação óbvia, uma vez que acredita que nossos pensamentos e experiências constituem eventos em nossos cérebros. No entanto, como salienta o autor, a tradição filosófica consideraria como absurda semelhante concepção. Leibniz nos convida a imaginar um cérebro do tamanho de um moinho, que poderíamos percorrer e examinar tudo que estivesse acontecendo. De acordo com o filósofo alemão não veríamos nada semelhante a um pensamento ou experiência. O filósofo inglês A. C. Ewing, endossando o ponto de vista de Leibniz, afirma que conhecemos através da experiência o que significa sentir uma dor, as reações fisiológicas a essa dor, sabendo que essas duas instâncias são totalmente diferentes. As características mentais e fisiológicas de um estado cerebral podem pertencer a uma mesma substância, mas são diferentes em termos qualitativos, no sentido em que são dois conjuntos de qualidades distintos.

No entender de Perry, Leibniz e Ewing enfatizam o fato de que estar tendo uma experiência é inteiramente diferente daquilo que se supõe ser a percepção do que poderia ser um estado ou processo cerebral; ambos concluiriam que experiências e pensamentos não são estados ou processos cerebrais. Perry define essa concepção da seguinte maneira: dizer que isto, a sensação que estou percebendo quando, por assim dizer, olho para dentro, é isto, a coisa sobre a qual estou lendo, parece apenas um disparate. O absurdo derivará de quão diferente são as propriedades que notamos – as características subjetivas de nossa experiência - daquelas que imaginamos ver ou ler sobre. Esse argumento será denominado por Perry como argumento do lapso da experiência (experience gap argument, no original em em inglês).

O argumento do lapso da experiência poderia ser inicialmente rejeitado, nos diz Perry, pelo seguinte motivo: se tudo que acontece no universo é físico, então minha consciência deve ser física, e esta sensação deve ser física, a despeito de quão estranho isso pareça. No entanto, como o próprio autor reconhece, o supracitado argumento estabelece alguns problemas filosóficos que devem ser analisados mais acuradamente.

 Em primeiro lugar, deve ser destacado o problema apresentado pela relação de identidade. Identidade, tal como Perry a define, é simplesmente a relação que um objeto tem consigo mesmo e com nenhum outro. É, pois, a relação que se estabelece entre a e b quando existe apenas uma coisa que é simultaneamente a e b; se a e b são idênticos, devem então compartilhar suas propriedades, pois há apenas uma coisa cujas propriedades estão em questão.

À partida, tal definição parece favorecer o argumento do lapso da experiência. De facto, as propriedades que encontramos num estado do qual estamos subjetivamente conscientes, a sensação de dor, parecem bastante diferentes das propriedades associadas a qualquer estado cerebral identificado fisicamente. Um estado cerebral irá, por exemplo, envolver certas partes do cérebro, enquanto minha sensação de dor parece estar localizada em minha mão na medida em que possui uma localização corporal. No entanto, nos diz Perry, se atentarmos mais uma vez para a questão suscitada pelo problema da identidade, veremos que as coisas não são tão simples quanto pareciam à primeira vista. Não é suficiente demonstrar que as que as propriedades que descobrimos sobre a, considerado de uma maneira, são distintas das propriedades que associamos a b, considerado de uma outra forma. É necessário que demonstremos claramente que a não possui uma propriedade existente em b. escreve o autor: suponhamos que Arthur Kennedy e Raquel Welch estão em meu cérebro tendo sensações visuais sobre as diversas coisas que nele estão ocorrendo. Eu tenho uma sensação de dor. A questão não é saber se suas sensações visuais e minha sensação de dor são sensações de uma mesma coisa; é, ao contrário, saber se minha sensação em si mesma, a dor, é o estado, propriedade ou processo sobre o qual suas sensações visuais se referem. A dor que tenho é o estado cerebral que eles observam? Um mero apelo à lógica da identidade e à intuição de Ewing não são suficientes para provar o dualismo de propriedades, isto é, que características fisiológicas e mentais podem hipoteticamente pertencer a uma mesma substância, mas diferem em qualidades; nem tampouco, assevera Perry, um apelo à possibilidade de identidades informativas e até mesmo surpreendentes, porém verdadeiras, será suficiente para refuta-lo. A questão permanece: podemos realmente conceber a idéia de que esta sensação, este aspecto do que ocorre dentro de mim, seja ela uma dor de dente, uma dor de cabeça, o perfume de uma gardênia ou o sabor de um nabo, é um aspecto de meu cérebro que alguém, uma Raquel Welch em miniatura, poderia, a princípio, ver?

Perry afirma que tal concepção é plausível. A partir deste o ponto, o cerne de sua argumentação será dirigido contra três argumentos de filosóficos analíticos contemporâneos, que Perry encara como desenvolvimentos elaborados e variações do argumento do lapso da experiência: o argumento do zumbi, o argumento do conhecimento e o argumento modal. A posição sustentada por tais argumentos é denominada pelo autor como neo-dualismo.

domingo, setembro 11, 2011

Longa vida à Morte!!!


Alphonse van Worden - 1750 AD


Cá celebro e exalto homenagear os 19 ínclitos mujahideen  que, há 10 anos atrás, magnificamente golpearam o GRANDE SATÃ no dia refulgente dia 11/09/2001!!!

Ei-los aqui, distribuídos respectivamente consoante as aeronaves que tomaram de assalto por ocasião da supracitada operação de jihad:


AMERICAN AIRLINES #11 BOEING 767

1)Satam M.A. Al Suqami - Possible Saudi national
-Dates of birth used: June 28, 1976; Last known address: United Arab Emirates

2)Waleed M. Alshehri - Possible Saudi national
-Dates of birth used: September 13, 1974; January 1, 1976; March 3, 1976; July 8, 1977; December 20, 1978; May 11, 1979; November 5, 1979
-Possible residence(s): Hollywood, Florida; Orlando, Florida; Daytona Beach, Florida
-Believed to be a pilot

3)Wail M. Alshehri
-Date of birth used: September 1, 1968
-Possible residence(s): Hollywood, Florida; Newton, Massachusetts
-Believed to be a pilot

4)Mohamed Atta - Possible Egyptian national
-Date of birth used: September 1, 1968
-Possible residence(s): Hollywood, Florida; Coral Springs, Florida; Hamburg, Germany
-Believed to be a pilot
-Alias: Mehan Atta; Mohammad El Amir; Muhammad Atta; Mohamed El Sayed; Mohamed Elsayed; Muhammad Muhammad Al Amir Awag Al Sayyid Atta; Muhammad Muhammad Al-Amir Awad Al Sayad

5)Abdulaziz Alomari - Possible Saudi national
-Dates of birth used: December 24, 1972 and May 28, 1979
-Possible residence(s): Hollywood, Florida
-Believed to be a pilot


AMERICAN AIRLINES #77 BOEING 757

1)Khalid Almihdhar - Possible Saudi national
-Possible resident of San Diego, California, and New York
-Alias: Sannan Al-Makki; Khalid Bin Muhammad; 'Addallah Al-Mihdhar; Khalid Mohammad Al-Saqaf

2)Majed Moqed - Possible Saudi national
-Alias: Majed M.GH Moqed; Majed Moqed, Majed Mashaan Moqed

3)Nawaf Alhazmi - Possible Saudi national
-Possible resident of Fort Lee, New Jersey; Wayne, New Jersey; San Diego, California
-Alias: Nawaf Al-Hazmi; Nawaf Al Hazmi; Nawaf M.S. Al Hazmi

4)Salem Alhazmi - Possible Saudi national
-Possible resident of Fort Lee, New Jersey; Wayne, New Jersey

5)Hani Hanjour -
-Possible resident of Phoenix, Arizona, and San Diego, California
-Alias: Hani Saleh Hanjour; Hani Saleh; Hani Hanjour, Hani Saleh H. Hanjour


UNITED AIRLINES #93 BOEING 757

1)Saeed Alghamdi
-Possible residence: Delray Beach, Florida
-Alias: Abdul Rahman Saed Alghamdi; Ali S Alghamdi; Al- Gamdi; Saad M.S. Al Ghamdi; Sadda Al Ghamdi; Saheed Al-Ghamdi; Seed Al Ghamdi

2)Ahmed Ibrahim A. Al Haznawi - Possible Saudi national
-Date of birth used: October 11, 1980
-Possible residence: Delray Beach, Florida
-Alias: Ahmed Alhaznawi

3)Ahmed Alnami
-Possible residence: Delray Beach, Florida
-Alias: Ali Ahmed Alnami; Ahmed A. Al-Nami; Ahmed Al- Nawi

4)Ziad Samir Jarrah
-Believed to be a pilot
-Alias: Zaid Jarrahi; Zaid Samr Jarrah; Ziad S. Jarrah; Ziad Jarrah Jarrat, Ziad Samir Jarrahi

UNITED AIRLINES #175 BOEING 767


1)Marwan Al-Shehhi
-Date of birth used: May 9, 1978
-Possible residence(s): Hollywood, Florida
-Believed to be a pilot
-Alias: Marwan Yusif Muhammad Rashid Al-Shehi; Marwan Yusif Muhammad Rashid Lakrab Al-Shihhi; Abu Abdullah

2)Fayez Rashid Ahmed Hassan Al Qadi Banihammad
-Possible residence(s): Delray Beach, Florida
-Alias: Fayez Ahmad; Banihammad Fayez Abu Dhabi Banihammad; Fayez Rashid Ahmed; Banihammad Fayez; Rasid Ahmed Hassen Alqadi; Abu Dhabi Banihammad Ahmed Fayez; Faez Ahmed

3)Ahmed Alghamdi
-Alias: Ahmed Salah Alghamdi

4)Hamza Alghamdi
-Possible residence(s): Delray Beach, Florida
-Alias: Hamza Al-Ghamdi; Hamza Ghamdi; Hamzah Alghamdi;
Hamza Alghamdi Saleh

5)Mohand Alshehri
-Possible residence(s): Delray Beach, Florida
-Alias: Mohammed Alshehhi; Mohamd Alshehri; Mohald Alshehri





quinta-feira, setembro 01, 2011

A propósito do conceito de KATECHON na Cristandade contemporânea


Alphonse van Worden - 1750 AD






 Em entrevista a respeito do pensador católico Joseph de Maistre, o também francês Philippe Sollers faz uma observação severa, malgrado deveras pertinente, sobre a situação da maior parte dos católicos na sociedade contemporânea:


Les catholiques ne veulent pas être catholiques. Ils font du bricolage, mais ne savent rien. L’ignorance sur les questions religieuses est quasiment totale. Je passe mon temps à voir des gens qui ne savent pas ce que c’est. Alors, ils voient à peu près les fêtes, encore que savoir ce qu’est l’Ascension, l’Assomption, la Pentecôte… Ils ne peuvent même pas écouter une messe, car ils ne savent pas de quoi ça parle. Ils sont donc extérieurs à la culture occidentale. 


É emblemático atentar para o facto de que Sollers, mesmo tendo recebido educação religiosa, está longe de ser o que se poderia chamar de um 'escritor católico'; mesmo assim, ao afirmar justamente que os católicos que desconhecem a substância mais profunda de sua religião culturalmente não fazem parte do Ocidente, diagnostica com precisão cirúrgica um dos mais graves problemas enfrentados hoje pela fé católica.

Tais reflexões nos conduzem, parece-me claro, à seguinte assertiva: sem Ocidente não existe Igreja, da mesma maneira que sem Igreja não há Ocidente. Recorrendo aqui às Escrituras, quero crer que a afirmação acima fica mais cabal a partir do que está disposto em 2 Tessalonicenses 2: 3-7:


3 Ninguém de modo algum vos engane. Porque primeiro deve vir a apostasia, e deve manifestar-se o homem da iniqüidade, o filho da perdição,

4 o adversário, aquele que se levanta contra tudo o que é divino e sagrado, a ponto de tomar lugar no templo de Deus, e apresentar-se como se fosse Deus.


5 Não vos lembrais de que vos dizia estas coisas, quando estava ainda convosco?


6 Agora, sabeis perfeitamente que algo o detém, de modo que ele só se manifestará a seu tempo.


7 Porque o mistério da iniqüidade já está em ação, apenas esperando o desaparecimento daquele que o detém. 



 Trata-se, com efeito, da célebre passagem bíblica em que S. Paulo menciona a figura do Katechon, isto é, 'aquele' ou 'aquilo' que detém o 'adversário'. O caráter notoriamente críptico dos supracitados versículos suscitou, claro está, diversas interpretações: qual seria, enfim, a força capaz de deter, durante sua permanência ao longo dos séculos, o advento do Anticristo: O Império Romano? A Igreja? o Papado? O Sacro Império?

Seja qual for a interpretação adotada, contudo, verifica-se que natureza primordial de o Katechon consiste num poder que seria a própria seiva vital da Cristandade. A meu juízo, tal poder é a Civilização Católica, sob a égide dos ‘dois gládios’: o Império e Igreja.

 Isto posto,áticos irmãos d'armas, indago: o progressivo afastamento entre tal civilização e seu alicerce espiritual não simbolizaria, de certo modo, o encerramento do ciclo histórico do Katechon e, portanto, a aproximação do Final dos Tempos?

 Muitos católicos, a meu juízo, desconsideram, ou pelo menos subestimam, o caráter da Igreja como instituição histórica, humana. O próprio Cristo, como Filho de Deus, está fora do Tempo, mas Seu advento constitui inequivocamente um facto histórico, que engendrou circunstâncias analogamente históricas. A Igreja é a manifestação da providência divina no curso da História; outrossim, Seu destino não pode ser dissociado do contexto histórico-civilizacional em que surgiu.

 A Igreja, Corpo Místico de Cristo, é a dimensão espiritual e teológica que informa o Katechon. Não obstante, para ser protegida na esfera temporal, a Igreja carece d'uma salvaguarda, que é a civilização católica sob a égide d'um Império. O Katechon emerge, portanto, como a unidade orgânica entre Igreja, Civilização Católica e Império. E tal unidade enfraquece a olhos vistos desde o século XVIII.

 Poder-se-ia argüir a hipótese, de todo cabível no âmbito da omnipotência divina, d’uma Cristandade estabelecida n’outro contexto e circunstância; todavia, é mister admitir que a Societas Christiana; efetivamente existente não pode ser dissociada das instituições históricas em que se encarna; do contrário, estaríamos a considerar meras possibilidades, e não a realidade.

 Sob a égide da Igreja, encarnação histórica do Corpo de Cristo, e do Sacro Império, herdeiro político do Império Romano, forja-se a Cristandade. Com o Cisma de 1054, a Cristandade se divide entre a civilização católica, à oeste, e a ortodoxa, à leste. Ainda assim, contudo, conservam-se os elementos centrais da fé cristã, tanto no Ocidente católico quanto no 'Oriente' ortodoxo. Permanece intacto, com efeito, o Katechon durante todo o transcurso do Medievo. A Reforma Protestante constitui, entretanto, um trágico ponto de inflexão, vale dizer, o início de um processo paulatino, malgrado contínuo, de 'descristianização' do Ocidente, que se acentuaria significativamente com o advento da Hidra Iluminista, filha dileta das ignomínias de Lutero e Calvino.

Hoje, no século XXI, perante uma Igreja cada vez menos influente no seio da civilização que deveria ser sua salvaguarda, talvez não seja irrazoável dizer que, muito em breve, deixaremos de contar com a proteção do Katechon. Há que sublinhar que o termo final da descristianização do Ocidente seria - que o Altíssimo nos livre disto! - o dobre de finados da Igreja, a morte do Katechon; e, portanto, a clave para a vinda do Anticristo.

 Ainda há tempo, não obstante, para lutar: muito embora a civilização católica forjada pela Igreja seja hoje, em larga escala, parte do passado, é preciso salientar que a Santa Madre (apesar de todos os 'modernismos') segue atuando sob a égide dos princípios, rituais e ordenamentos que nortearam a Civiltá Catolica. Assim, o verdadeiro 'Ocidente', como conjunto de valores e visão de mundo, continua a existir, ainda que precariamente, no seio da Igreja. Estejamos, contudo, em guarda: caso a Santa Madre perca seu propugnáculo temporal, a substância primordial que a informa não logrará sobreviver.



 

segunda-feira, agosto 01, 2011

Tratado Geral do HOMEM-FUNÇÃO - II: O Decálogo do Homem-Função




(Segue abaixo um excerto do Livro de Ouro do Homem-Função, apresentando o Decálogo desta blasfema religião)


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1) Só me interessarei pelo que for útil.


2) Só é útil o que gera dinheiro.


3) Não terei opiniões próprias, apenas conveniências.


4) Não terei amigos irresponsáveis.


5) Não terei relacionamentos amorosos que não sejam pautados pelo binômio maturidade / utilidade.


6) Estudarei para todos os concursos públicos que aparecerem.


7) Farei todos os cursos de especialização e reciclagem profissional da minha área.


8) Gastar tempo de forma inútil é imperdoável.


9) 'O patrão falou, tá falado'.


10) Se tudo der errado, prometo suar ainda mais a camisa.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte – Deserto dos Tártaros





Tratado Geral do HOMEM-FUNÇÃO - I

Alphonse van Worden - 1750 AD





Excelsos irmãos d'armas:

Dada a extrema gravidade que a proliferação incontrolável do Homem-Função representa para o futuro da Humanidade, dar-vos-ei alguns subsídios para que possais conhecer melhor essa ominosa, metuenda ameaça que paira sobre todos nós.



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A noção de Utilidade  é a pedra basilar tanto do modo de vida quanto da ideologia funcionalista. Com efeito, a característica mais emblemática de um 'função' é a total incapacidade de analisar qualquer coisa sem o princípio da Utilidade como parâmetro determinante (e não raro único) de juízo. Assim sendo, a utilidade está acima de tudo (amor, prazer, conhecimento, amizade, etc.) no universo mental do Homem-Função.


Quando a doutrina ética denominada 'utilitarismo' foi proposta pelos filósofos ingleses Jeremy Bentham e John Stuart Mill nos séculos XVIII e XIX, fazia-se presente na reflexão de tais autores um vínculo insofismável, inequívoco, entre a noção de 'utilidade', de um lado, a de 'prazer / bem estar', de outro. Assim sendo, ações, normas e processos seriam considerados 'bons' na medida em que que fossem compatíveis com o Greatest Happiness Principle, isto é, na medida em que proporcionassem ao homem o máximo de felicidade, prazer e bem-estar possível. Em suma: por mais que eventualmente possamos condenar a ausência de um princípio ético transcendente, capaz de pautar a ação humana através de critérios universalmente válidos em qualquer circunstância, ao menos o utilitarismo em sua configuração original estabelecia, portanto, um amálgama entre 'utilidade', 'prazer' e 'bem-estar'.  


Tal vínculo, todavia, foi destruído na prática pela modernidade liberal, sendo a noção de 'utilidade' inexorável e exclusivamente atrelada à noção de LUCRO, no sentido mais pragmático e materialista do termo. 


Muito bem: ao contrário dos chamados 'Cidadãos de Bem', facilmente discerníveis, os Homens-Função não raro logram camuflar-se com rara habilidade, o que os torna ainda mais perigosos.


O 'cidadão de bem' encarna / defende um conjunto de valores, d'entre os quais se destacam a manutenção da ordem, a vida em família, os bons costumes e a autoridade patriarcal; o 'homem-função', por seu turno, pode até eventualmente advogar tais valores, caso isto lhe seja conveniente, ou seja, útil. Em suma: o 'cidadão de bem' pauta-se por convicções (quer elas sejam corretas ou não), ao passo que o Homem-Função pauta-se invariavelmente por conveniências, vale dizer, pelo que lhe pareça ser a atitude mais útil  em cada circunstância.  Percebe-se, portanto, que o 'cidadão de bem' tem um perfil ideológico relativamente nítido, bem definido; o Homem-Função, por outro lado, é uma criatura de contornos indistintos, um ser amorfo, que se adapta, sempre a partir da noção-clave de utilidade, às circunstâncias que lhe forem mais favoráveis. Por exemplo: se for conveniente para um 'função' defender o casamento gay, ou a política de cotas no meio universitário, ele o fará sem quaisquer hesitações; o mesmo, todavia, não ocorre com o 'cidadão de bem'. Destarte, é perfeitamente possível, e até mesmo corriqueiro, ver o mais pragmático Homem-Função metamorfoseando-se de 'progressista'. 
A esse respeito, poderíamos mencionar a título de ilustração os grandes corifeus do Silicon Valley, isto é,  os jovens bilionários norte-americanos que revolucionaram a tecnologia da informação a partir da década de 70. Com efeito, o imaginário que difundiram sobre si mesmos se erige a partir de dois eixos fundamentais: por um lado, o de grandes empreendedores que 'suam a camisa' em busca de um sonho, os notáveis self-made men d'uma nova era tecnológica; por outro, o de herdeiros bem-sucedidos da contracultura californiana dos anos 60, que souberam dar sentido, sustentação e viabilidade ao que inicialmente era mero devaneio.  

Do acima exposto, conclui-se, outrossim, que o 'cidadão de bem' costuma engajar-se, pelo menos na esfera puramente verbal, na defesa de suas idéias, em geral de modo deveras enfático, saliente-se. Já o  Homem-Função rarissimamente se envolve em discussões, pois não tem interesse pela arte da argumentação, ou até mesmo pelo prazer pueril de 'vencer' uma discussão. E isto ocorre pelo seguinte: no mundo contemporâneo, sobretudo na esfera corporativa, o debate só é estimulado na medida em que se limite à 'maximização de lucros' e / ou 'minimização de custos'. Quaisquer outros tópicos são tidos como rigorosamente inúteis, e portanto, excluídos a fortiori do campo de interesses do Homem-Função.

Os Homens-Função são excessivamente esquemáticos, interpretando, por exemplo, as noções de Responsabilidade e Seriedade de forma estereotipada, Tornam-se impermeáveis à ironia e ao humor, o que acaba prejudicando sua capacidade crítica. Assim sendo, também distorcem a noção de Maturidade, que passa a ser sinônimo de um estilo de vida cinzento e monótono.


Tais criaturas estão sempre preocupadas com o que os outros pensarão a propósito de seus atos, tornando-se, assim, desprovidas de espontaneidade. Suas metas estão permanentemente ligados ao trabalho.


É importante sublinhar que o conceito de Utilidade é um subproduto do Iluminismo, e está presente no DNA tanto do socialismo quanto do liberalismo, respectivamente sob os rótulos de bem-estar social ou individual,, ambos capturados pelo Funcionalismo como justificativa ao culto da utilidade.


A personalidade funcional desenvolve, já partida, o hábito de converter MEIOS (trabalho, dinheiro) em FINS; deseja, tão somente o infinitamente possível e jamais fará algo que saia da esfera dos padrões estabelecidos.


A contrapelo do que muitos estudiosos da questão soem afirmar, sustentamos que Liberalismo não é per si capaz de explicar a raison d'être  do Homem-Função, visto que este vê na teoria do livre mercado não um modelo econômico necessariamente mais eficaz, mas sim algo cono una 'carta de alforria' para seus atos. O socialismo, por seu turno, tampouco dá conta da questão, pois concebe o trabalho como condição necessária à existência humana,, sem por isso convertê-lo em dogma central d'uma espécie de 'religião secular', tal como  faz o 'função'.



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Isto posto, egrégios confrades,  é de bom alvitre que todos saibamos identificar essas perniciosas criaturas o mais rapidamente possível; para tanto, elencarei aqui algumas características que, em geral, são de grande auxílio na correta identificação de um Homem-Função:


1) Qualquer pessoa que passe 99,99% de seu tempo lendo editais para concursos públicos; avaliando relação candidato / vaga; estudando em cursinhos preparatórios; ou simplesmente torrando a paciência de outros seres humanos com sua monomania por concursos públicos é, por definição, um 'função';


2) se por ocasião das festas de fim de ano, o indivíduo desejar vos desejar um "PRÓSPERO ano novo" em lugar da prosaica e inofensiva expressão "feliz ano novo", atentai bem: é bem possível que seja um 'função';


3) o emprego recorrente de expressões como 'reciclagem profissional', 'reengenharia', 'otimização de recursos', 'Empreendedorismo' e termos análogos denota, sem sombra de dúvidas, a presença  d'um Homem-Função;


4) máximas como "o trabalho dignifica o homem" e suas múltiplas variantes são emblemáticas do pensamento funcionalista;


5) QUALQUER referência elogiosa à 'pensadora' Ayn Rand é um indício insofismável, incontrastável e irreprochável de que o cidadão que a proferiu é um Homem-Função de altíssima periculosidade;


6) a idolatria acéfala por qualquer coisa proveniente do primeiro mundo e, analogamente, o desprezo pelas características de países latinos ou do terceiro mundo, sói caracterizar o indivíduo 'função'.

sexta-feira, julho 15, 2011

Pela ressurreição da Sagrada Aliança

Alphonse van Worden - 1750 AD

Diletos irmãos d'armas: e com indizível gáudio que vos apresento este mirífico pedaço d'escrita, de lavra de meus áticos confrades ARRS e Gabriel Schmitt.


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Pelo ressurreição da Sagrada Aliança






A maioria das coisas que vemos são, em verdade, o reverso do que aparentam. O individuo movido por idéias nobres hoje é alvo de escárnio, jamais de louvor. O consumo desenfreado; a boçalidade coletiva deliberadamente planejada; o imperativo de saber cada vez mais sobre menos coisas: eis os três eixos da sociedade contemporânea.

Se todo o Universo coubesse num grão de ervilha, a mente do homem moderno seria uma molécula desse grão. O ‘funcionalismo’ que impera em nossos dias pode ser muito confortável; afinal, não pensar em nada é cômodo. É a era do escapismo em massa. O Século XXI constitui, sob todos os aspectos, o apogeu desse nefasto processo. A sociedade atual é uma eterna fuga de si mesma, porque não mais se reconhece.

Para aqueles que têm fome do absoluto entranhada em seu âmago, todavia, isso não é suficiente. Pois se a razão por vezes logra explicar processos e dinâmicas do Homem, é sempre um impulso inefável, inexorável e fatal que os engendra.

O reino crepuscular do ceticismo, toda a pompa e circunstancia tão característica da mentalidade cientificista do Ocidente contemporâneo, caminham na direção oposta de nossos mais caros anseios: o reencantamento do mundo sob a égide do Mito e da Mística.

Não obstante, a revolta contra os descaminhos da modernidade, os frutos da hidra iluminista é, nos dias que correm, pouco mais que a flébil luz d’uma vela num aposento escuro.

Mas este lume, confrades, é o archote que nos resta contra as trevas da modernidade, ‘inda que grande parte da Humanidade tenha optado pelas sendas da escuridão. Eis o mundo gestado pelo Iluminismo, a cosmovisão que pugnava pelo esclarecimento através dos ditames da razão, mas que, ao fim e ao cabo, conduziu-nos a um orco cinéreo, onde multidões vagueiam sem rumo ou propósito.

Alguns poucos, no entanto, tentam buscar janelas nesse ominoso aposento e, para sua grata surpresa, elas estavam ali todo o tempo. Pois além da masmorra descortina-se a fímbria do Sol no horizonte.

A razão científica descreve o Sol como ente natural, uma estrela que tem a função a de iluminar e aquecer nosso planeta, assim permitindo a manutenção da vida existente. Trata-se d’algo comprovado empiricamente.

O mito, contudo, vai além, pois não somente compreende, mas também ACREDITA no Sol como símbolo magno do Primo Mobile, Pater Omnis Telesmi, Gloriam Totius Mundi.

A razão questiona; a fé convicta, não obstante, está sempre um passo além de qualquer questionamento, por uma razão muito simples: ela não tem necessidade de formular a questão. Consoante sabiamente afirma Carl Schmitt:


“Não há cadeia de argumentação lógica capaz de resistir à força de imagens míticas, primordiais.”


Mito que tanto pode ser compreendido como potência divina quanto, recuperando aqui uma expressão de Georges Sorel, 'profecia auto-realizável', no sentido de não depender de fatores transcendentes para ser levado a efeito. Vale frisar, aliás, que um insigne pensador de orientação marxista como, por exemplo, o peruano José Carlos Mariátegui, não apenas subscreve a concepção soreliana, mas também acaba por conferir-lhe caráter ainda mais radical, enfatizando decisivamente a profunda emoção messiânica inerente a qualquer processo revolucionário.

Assim sendo, contemplamos hoje um planeta cindido entre duas cosmovisões antagônicas e irreconciliáveis: a Objetivista e a Messiânica. Uma é funcionalista e pragmática; a outra, mística e poética.

O Objetivista, mesmerizado pelo dimensão contábil e pelo horizonte do visível, ou atenta somente para a esfera de seus interesses, perdendo, destarte, a visão do conjunto; ou então, agrilhoado à rigidez dos processos lógicos, compreende os Meios, mas nunca os Fins.

O Messiânico, por sua vez, não carece de evidências ou relações de causa / efeito para sustentar suas crenças, pois vive sob o império de convicções lastreadas por tradições milenares e não há, como salientamos antes, argumento que não possa ser desacreditado pela força da Fé, e muito menos alegações racionais capazes de obliterar o poder do Mito.

Não somos contra o avanço da humanidade, mas sim contra o avanço cego, hipnotizado pela miragem do ‘Reino da Quantidade’; afinal, já sublinhava Roger Bacon, o excelso Doctor Mirabilis:


“O plano divino passará um dia para a ciência das máquinas, que é magia natural e santa.” 


Devemos, não obstante, permanecer atentos às perigosas ilusões do credo positivista: aquilo que amiúde nos é apontado como ‘progresso’ nada mais é que retrocesso.

Não marcharemos, portanto, de olhos vendados em direção ao abismo. O progresso material do ser humano é tão somente um instrumento, jamais um fim em si mesmo; analogamente, que é a argumentação racional senão uma casca vazia quando destituída de convicção? O valor maior deve subjugar o valor menor. Sem a presença ativa, heurística, das tradições espirituais como centros de gravidade da vida social, não há esperança para a humanidade.

Somos, pois, pensadores, revolucionários, poetas, místicos e guerreiros que não se prosternarão parente o deus Mammon, tampouco à tribulação febril da Modernidade. O homem carece de Mito e Mística, de impulso criativo, de arrebatamento lírico e fervor messiânico frente à tirania da razão. Os parâmetros da sociedade contemporânea não atendem a nossos desígnios. É nosso dever resgatar a Humanidade do pesadelo iluminista, romper com a ‘Sociedade Aberta’, retomar as tradições da comunidade orgânica e integrada.

A instrumentalização mercantil das relações humanas; a busca desenfreada pelo progresso material; o primado do saber desvinculado de elevação espiritual, eis os grandes males que enfermam o mundo. Como frisa Novalis:


“O ódio à Religião (...) transforma a música do universo, infinita e criadora, em um matraquear uniforme de um moinho monstruoso que é impulsionado pela tempestade do acaso e, nadando sobre ela, é um moinho em si, sem arquiteto ou moleiro, e na verdade um autêntico perpetuum mobile, um moinho que mói a si mesmo.”


Peregrinando solenemente pela alvorada dos milagres cruéis no campo de batalha, noite adentro celebrando Mitos e Tradições no altar da Fé, pugnaremos pela harmonia perdida da Societas Christiana, capaz de assegurar a reconciliação do Homem decaído com seu destino transcendente. Para tanto, há que restaurar a sagrada aliança entre o Poder Temporal e o Espiritual Por isso temos como insígnia a CRUZ – a lux perpetua da autoridade espiritual, sob o ínclito concento dos Eleitos - e a ESPADA – a ingente força do poder temporal, encarnado na figura daquele cuja ação é iluminada pelo Altíssimo.

Trata-se, enfim, da indissolúvel unidade entre o Espírito de Deus e o Poder do Soberano:


“Nada havendo de maior sobre a Terra, depois de Deus, que os príncipes soberanos, e sendo por Ele estabelecidos como seus representantes para governar os outros homens, é necessário lembrar-se de sua qualidade, a fim de respeitar-lhes e reverenciar-lhes a majestade com toda a obediência, a fim de sentir e falar deles com toda a honra, pois quem desacata seu príncipe soberano, ofende a Deus, de Quem ele é a imagem na Terra.”
(Jean Bodin).


Entrelaçadas, a CRUZ e a ESPADA forjam a sacrossanta e inabalável aliança entre ECCLESIA et IMPERIUM. O povo, prenhe de inquietação e angústia, clama aos céus pelo retorno dos ‘dois gládios’: a plena convicção da autoridade espiritual - a ECCLESIA -, depositária da sabedoria das Leis Eternas, e a força política da autoridade temporal - o IMPERIUM -, que, sob a égide do Soberano, propicia a seus súditos as bênçãos da segurança, do bem-estar social e da paz civil.



Alfredo RR de Sousa
Gabriel Schmitt

segunda-feira, julho 04, 2011

Breve nota a propósito da figura do VERDUGO no pensamento de Joseph de Maistre





Egrégios irmãos d'armas:

Baudelaire certa feita afirmou que Joseph de Maistre (1753 - 1821) ensinou-lhe "a pensar". O célebre poeta francês dificilmente poderia ter escolhido melhor modelo: ao advogar uma perspectiva, ou mesmo no mero ato de elencar uma hipótese, de Maistre não somente as submete à precisão cirúrgica de seu escrutínio crítico, considerando-as meticulosamente sob todos os aspectos, mas também logra, sem uma falha sequer no encadeamento lógico da argumentação, conduzi-las às suas últimas conseqüências.

Trata-se, vale dizer, de apenas uma das múltiplas virtudes deste magnífico escritor, pensador católico e filósofo político que foi Joseph de Maistre, figura de proa na linhagem de autores que vai de Jean Bodin e Thomas Hobbes até Carl Schmitt.

Isto posto, gostaria de sublinhar aqui um dos tópicos mais originais e importantes do pensamento de Maistre: a figura do verdugo na manutenção da ordem social.

A questão é discutida pelo conde saboiano no primeiro capítulo de sua indisputável obra-prima, Les Soirées de Saint-Petersbourg (1821). Combinando o rigor analítico e a excelência estrutural dos diálogos de Platão; numerosas passagens pejadas da mais refinada e corrosiva ironia; e o estilo majestoso, categórico e imperativo - tão característico das mais augustas tradições das letras clássicas em França -, de Maistre aborda vastíssima plêiade de temas nos Soirées: o princípio dos ‘dois gládios’ (Igreja / Império); o direito divino dos reis (que defende com o mesmo poder de fogo e veemência que encontramos no venerável Bossuet); o papel exercido pela Divina Providência na História; uma crítica contundente à teoria do conhecimento de John Locke (crítica que me parece improcedente, mas, em todo caso, muito bem urdida); o caráter salvífico da guerra como rito sacrificial; etc., etc.

Pois bem: consoante frisei anteriormente, J. de Maistre leva a efeito a apologia do Verdugo (isto é, do poder puramente punitivo / coercitivo do Estado), ao lado do Soberano e do Papa, como uma das três vigas de sustentação do aparato estatal, mormente em situações de grave crise institucional.

Com efeito, o pensador francês demonstra que, em última análise, tão somente o primado do Terror, iluminado pela fé católica, detém a capacidade de restaurar a ordem pública e a estabilidade política numa sociedade convulsionada pela anarquia, seja em virtude da ação do inimigo (interno ou externo), seja por intermédio da circulação de idéias dissolventes.

Creio, sobretudo, que a tese advogada por de Maistre ajusta-se particularmente bem às circunstâncias do Brasil contemporâneo. Um país onde a mais elevada instância do poder judiciário é sobremaneira leniente mesmo com os crimes mais hediondos, consagrando um mecanismo infame como a 'progressão de regime'; onde demandas que vão de encontro aos valores da grande maioria de nosso povo, como a legalização da união civil entre homossexuais, são aprovadas com inaceitável leviandade; onde até mesmo manifestações risíveis, como a realização de 'marchas pró-maconha', recebem anuência unânime do STF, percebe-se claramente que o Estado abdicou de seus deveres precípuos: a manutenção da ordem pública e a promoção do bem-estar social.

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Apresento em seguida, por fim, a magnífica passagem em que Joseph de Maistre expõe sua tese:

"(...) Mais permettez qu'averti par ces tristes expressions, j'arrête un instant vos regards sur un objet qui choque la pensée sans doute, mais qui est cependant très digne de l'occuper.


De cette prérogative redoutable dont je vous parlais tout à l'heure résulte l'existence nécessaire d'un homme destiné à infliger aux crimes les châtiments décernés par la justice humaine; et cet homme, en effet, se trouve partout, sans qu'il y ait aucun moyen d'expliquer comment; car la raison ne découvre dans la nature de l'homme aucun motif capable de déterminer le choix de cette profession. Je vous crois trop accoutumés à réfléchir, messieurs, pour qu'il ne vous soit pas arrivé souvent de méditer sur le bourreau. Qu'est-ce donc que cet être inexplicable qui a préféré à tous les métiers agréables, lucratifs, honnêtes et même honorables qui se présentent en foule à la force ou à la dextérité humaine, celui de tourmenter et de mettre à mort ses semblables? Cette tête, ce coeur sont-ils faits comme les nôtres? ne contiennent-ils rien de particulier et d'étranger à notre nature? Pour moi, je n'en sais pas douter. Il est fait comme nous extérieurement; il naît comme nous; mais c'est un être extraordinaire, et pour qu'il existe dans la famille humaine il faut un décret particulier, un FIAT de la puissance créatrice. Il est créé comme un monde. Voyez ce qu'il est dans l'opinion des hommes, et comprenez, si vous pouvez, comment il peut ignorer cette opinion ou l'affronter! À peine l'autorité a-t-elle désigné sa demeure, à peine en a-t-il pris possession que les autres habitations reculent jusqu'à ce qu'elles ne voient plus la sienne


C'est au milieu de cette solitude et de cette espèce de vide formé autour de lui qu'il vit seul avec sa femelle et ses petits, qui lui font connaître la voix de l'homme: sans eux il ne connaîtrait que les gémissements... Un signal lugubre est donné; un ministre abject de la justice vient frapper à sa porte et l'avertir qu'on a besoin de lui: il part; il arrive sur une place publique couverte d'une foule pressée et palpitante. On lui jette un empoisonneur, un parricide, un sacrilège: il le saisit, il l'étend, il le lie sur une croix horizontale, il lève le bras: alors il se fait un silence horrible, et l'on n'entend plus que le cri des os qui éclatent sous la barre, et les hurlements de la victime. Il la détache; il la porte sur une roue: les membres fracassés s'enlacent dans les rayons; la tête pend; les cheveux se hérissent, et la bouche, ouverte comme une fournaise, n'envoie plus par intervalle qu'un petit nombre de paroles sanglantes qui appellent la mort. Il a fini: le coeur lui bat, mais c'est de joie; il s'applaudit; il dit dans son coeur: Nul ne roue mieux que moi. Il descend: il tend sa main souillée de sang, et la justice y jette de loin quelques pièces d'or qu'il emporte à travers une double haie d'hommes écartés par l'horreur. Il se met à table, et il mange; au lit ensuite, et il dort. Et le lendemain, en s'éveillant, il songe à tout autre chose qu'à ce qu'il a fait la veille. Est-ce un homme? Oui: Dieu le reçoit dans ses temples et lui permet de prier. Il n'est pas criminel; cependant aucune langue ne consent à dire, par exemple, qu'il est vertueux, qu'il est honnête homme, qu'il est estimable, etc. Nul éloge moral ne peut lui convenir; car tous supposent des rapports avec les hommes, et il n'en a point.


Et cependant toute grandeur, toute puissance, toute subordination repose sur l'exécuteur: il est l'horreur et le lien de l'association humaine."


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte – Deserto dos Tártaros

A propósito do caráter não-científico do marxismo - parte V


Alphonse van Worden - 1750 AD














Seria aparentemente plausível sustentar que a crítica da economia política, tal como exposta na obra do pensador alemão, vai ao encontro da necessidade de uma teoria fundada cientificamente.

Ocorre, não obstante, que a crítica da economia política é um saber social, cujo objeto é historicamente construído, submetido, portanto, às cambiantes injunções do agir coletivo humano. Um objeto de estudos como o oxigênio, por exemplo, sempre será, per saecula saeculorum, idêntico a si mesmo, ou seja, sempre será oxigênio; algo como a 'economia política', ao contrário, é uma realidade movediça, transitória, oscilante. Um 'objeto' com tais características, repito, não é capaz de gerar conhecimento científico, mas sim saberes de índole necessariamente pragmática, provisória e assistemática.

É mister sublinhar ainda que dentre os predicados necessários a uma teoria científica, está a capacidade de postular como um determinado conjunto de fenômenos irá proceder dadas certas condições pré-determinadas. Pois muito bem: como o 'cientista' social pode ser capaz de estabelecer, com rigor conceitual lastreado em observações empíricas, o comportamento do fenômeno 'revolução'? Como prever, sem extrapolar circunstancialmente o que dispõem os estritos pressupostos da teoria, a ocorrência de uma revolução? Teorias científicas são propostas especulativamente, e delas são deduzidas as muitas conseqüências a que dão lugar, a fim de que essas possam, indiretamente, ser confrontadas com os fatos experimentais. Como então confrontar as teorias propostas com o facto 'revolução'? Existe, pois,  uma irracionalidade inerente a todo processo revolucionário. Destarte, como então estabelecer de forma lógico-demonstrativa os parâmetros que nortearão uma revolução, visto ser sua dinâmica condutora algo irracional, imprevisível, inefável? Podemos afirmar que daqui a 54343322 anos a composição de uma molécula de água será H20... poderá o 'cientista' marxista asseverar como se dará um processo revolucionária na mesma escala temporal?

Todo esse acervo de considerações nos conduz, ao fim e ao cabo, à seguinte questão: por que Marx 'errou'? Justamente porque a sociologia e os demais saberes não possibilitam a formulação de predições científicas; Jamais poderíamos pretender que um pensador social determine com rigor científico qual será o procedimento de um evento social no futuro, uma vez que tais eventos estão submetidos ao fluxo aleatório, errante e imprevisível da ação humana.

Sempre haverá alguém  a alegar que os melhores sucessores de Marx corrigiram seus postulados equivocados, ao que replico: onde e em que circunstância verificou-se a comprovação empírica das ocorrências previstas pelos novos postulados? N'outros termos: as premissas do marxismo fatalmente implicavam uma determinada conclusão ou conjunto de conclusões. Novamente indago: tais conclusões se verificaram? Onde está a comprovação empírica do que havia sido especulativamente estabelecido como conseqüência causal da teoria 'científica' marxista? E que não se invoque a cláusula temporal: teorias científicas não podem ficar eternamente aguardando em berço esplêndido pela comprovação a posteriori de seus postulados.

Constatando que os fenômenos previstos pelo marxismo não se verificaram, amiúde seus entusiastas voltam insistir na realidade empírica dos construtos conceituais, tal como o o de 'mercadoria, por exemplo; eu, por meu turno, repito o que adrede : que é uma 'mercadoria'? Qualquer produto (matérias-primas, gêneros, artigos manufaturados etc.) suscetível de ser comprado ou vendido. Assim sendo, o que empiricamente existe são os objetos designados pelo conceito 'mercadoria', mas não o construto conceitual em si mesmo, que é uma generalização dedutiva. Destarte, o objeto-cadeira é uma realidade empírica (a 'cadeira' objeto singular no espaço-tempo, saliente-se bem, não o conceito 'cadeira'), mas a noção de 'cadeira' como objeto que pode ser comprado ou vendido já envolve uma série de generalizações conceituais dedutivas. Envolve, por exemplo, os conceitos de 'compra' e 'venda', que obviamente não são entes empíricos singulares no espaço-tempo, mas universais, no caso construtos conceituais elaborados pela razão humana para designar determinados procedimentos sociais. Em síntese: o conceito 'mercadoria' (e que, aliás, também envolve outros conceitos, como acabamos de ver) designa objetos reais como cadeiras, mas é em si mesmo tão somente um ‘nome’, uma instância cognitiva mental. O mesmo vale para uma noção como 'trabalho, outrossim: da mesma forma que ‘mercadoria’, a generalização conceitual a que damos o nome de ‘trabalho’ designa um dado conjunto de fenômenos empíricos, estes sim concretamente existentes.