sexta-feira, julho 24, 2020

A propósito de Sleepy Hollow (Tim Burton, 1999)




Resgatando cá esta bela crônica, originalmente publicada na revista online Contracampo. 

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SLEEPY HOLLOW (1999) - Tim Burton

De quando em quando o velho e carcomido cinemão americano ainda nos brinda com uma obra admirável. Desta vez a gratíssima surpresa chama-se Sleepy Hollow (1999), último filme de Tim Burton, em cartaz no Rio de Janeiro. Urdido pelo magnífico prestidigitador de artifícios visuais que Burton sempre foi, Sleepy Hollow resgata uma linhagem cinematográfica pouco freqüentada nas últimas décadas: o verdadeiro cinema fantástico, na melhor tradição de milagres feéricos como La Chute de la Maison Usher (1924), de Jean Epstein, La Belle et la Bête (1946), de Jean Cocteau, ou The Innocents (1961), de Jack Clayton; e já não era sem tempo, pois 15 longos anos nos separavam do último exemplar que tivemos deste nobre gênero da Sétima Arte, o inglês The Company of Wolves, de Neil Jordan. A exemplo de seus ilustres antecessores (notadamente Epstein e Clayton), Burton, que muitas vezes malbarata seus dotes de ilusionista em roteiros medíocres, desta vez pode contar com um material dramático de primeira linha, a célebre novela The Legend of Sleepy Hollow (1819), obra-prima do escritor norte-americano Washington Irving.


O filme é, sobretudo, uma orgia visual estupefaciente, um inebriante bailado de deslumbrantes tableaux vivants, que harmonicamente fluem da paleta de Tim Burton e de seu fotógrafo Emmanuel Lubezki, ambos convertidos em pintores de pesadelos vivos. Nas passagens tenebrosas e sombrias, sentimos o inequívoco eco do atroz universo gótico de Mathias Grunewald e Pieter Brueghel, das litanias flamejantes de Hieronymus Bosch, dos fogos-fátuos oscilantes de Henry Fuseli e Caspar David Friedrich, dos espectros ominosos de Gustave Moreau; nos interlúdios líricos e serenos, vemos entrar em movimento o êxtase solar das névoas de William Turner, o sonho idílico das telas de Sir Thomas Gainsborough. Deve ser enaltecida a mestria com que Burton conseguiu manejar esse acervo de epifanias pictóricas sem prejuízo para o ritmo frenético de sua narrativa. Sleepy Hollow é, de fato, um filme de ação incessante, de sobressaltos contínuos e faiscantes. Mas reparem: não se trata, de modo algum, do tipo de ação dramática que encontramos habitualmente no lixo radioativo emitido por Hollywood, onde o compasso desvairado das imagens exerce um efeito paralisante sobre o entendimento do público. Na fita de Tim Burton, o movimento espasmódico, ao contrário, é um veículo surreal que descortina perspectivas insólitas e fascinantes para o espectador, que encontra na tapeçaria onírica de Sleepy Hollow um véu diáfano e etéreo entre o que contempla e a "realidade" palpável. Os cenários do filme parecem atormentados por uma inefável discordância interior, tensão que conduz à misteriosa animação do inorgânico aspirada pelos românticos e expressionistas alemães. A energia cinética presente neste inorgânico, que murmura gritos silenciosos, movendo-se numa dimensão insólita entre o delírio e o assombro, no estado de animação suspensa em que se encontram os objetos, é o caminho para atingir a essência de um absoluto que independe do estabelecimento de quaisquer relações transitórias.


Outro ponto a ser ressaltado é a extrema felicidade de Burton na escolha de seu elenco. O casal de protagonistas (Johnny Depp e Christina Ricci) está excelente. Depp, emprestando seu charme gauche e habitual nonchalance ao detetitve Ichabod Crane, confere uma feição irônica a seu personagem, ao mesmo tempo em que consegue expressar o cárater perplexo e sensível do Crane original de Washington Irving. Cristina Ricci, sempre cativante em sua beleza frágil e singular, interpreta a donzela gótica Katrina Van Tassel. Evanescente e sensual, inocente e enigmática, Ricci faz de Katrina uma heroína romântica digna dos mais belos devaneios femininos de Edgar Allan Poe e Villiers de L’Isle-Adam. Os coadjuvantes estão igualmente fabulosos: Ian McDiarmid (Doutor Lancaster), Michael Gambon (Baltus Van Tassel), Richard Griffiths (Juiz Samuel Philipse), Jeffrey Jones (Reverendo Steenwyck) e Michael Gough (Tabelião Hardenbrook) formam uma galeria de tipos que poderia figurar nos melhores relatos de E.T.A Hoffmann. Ainda dentre os coadjuvantes, destaque especial para a bonita Miranda Richardson, que compõe uma sinistra e requintada Lady Van Tassel, e, obviamente, para Christopher Walken, esplêndido como o aterrador Cavaleiro sem Cabeça. Lembremos também da simpática homenagem que Tim Burton presta a um de seus ídolos de infância, o lendário ator inglês Christopher Lee, que faz uma ponta como o Burgomestre de Nova York.


Sleepy Hollow é um filme que merece ser visto, revisto e conservado para noites de brumas imprecisas e emanações espectrais. Pois, afinal de contas, quantos anos mais teremos de esperar por outro filho da augusta estirpe das fantasias atmosféricas e elegantes?

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Ten. Giovanni Drogo 

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros