segunda-feira, janeiro 10, 2011

Breve nota sobre a disjuntiva Inconsciente / Consciente no âmbito do ethos expressionista







A incapacidade em distinguir entre o misterioso universo de brumas imprecisas do Inconsciente, por um lado, e a realidade meridiana que se descortina perante a Consciência, por outro; ou ainda, a enigmática crença de que o ‘reino de sombras’ do Inconsciente se substitui à esfera de ‘certezas’ da Consciência como única e verdadeira REALIDADE, isto é, duas das linhas de força centrais da cosmovisão expressionista, podem também ser encontradas, por exemplo, em obras historicamente posteriores ao movimento, mas que, sem dúvida, reverberam-lhe as características.

Consideremos, por exemplo, a seguinte passagem, um diálogo entre os protagonistas Fridolin e Albertine, presente no belo desfecho de Breve Romance de Sonho (Traumnovelle - 1926), do austríaco Arthur Schnitzler, texto que poderia ser descrito, vale dizer, como uma espécie de entrechoque entre o pesadelo expressionista e as paisagens oníricas do surrealismo:


(..)“O que vamos fazer, Albertine?


Ela sorriu, e após breve hesitação, respondeu: Agradecer ao destino, penso eu, por termos escapado incólumes de todas as aventuras – reais ou sonhadas.


Tem certeza de que é o que você quer também?, perguntou ele. Estou tão certa quanto suspeito que a realidade de uma noite, ou mesmo de toda uma vida, não significa sua verdade mais íntima.


Nem sonho algum é totalmente ‘sonho’, suspirou, baixinho, Fridolin.


Ela tomou a cabeça dele nas mãos, e aninhou-a com carinho sobre o peito. Agora estamos os dois acordados, disse, e por muito tempo.


‘Para sempre’, ele quis acrescentar, mas antes ainda que houvesse pronunciado as palavras, ela colocou-lhe um dedo nos lábios e, como se o fizesse para si mesma, sussurrou: Melhor não perguntar nada ao Futuro."


Percebam, no trecho supracitado, a significativa presença da divisa que proclama que “o expressionista já não vê, mas tem VISÕES”: por um lado, no transcurso da longa, insólita e, até certo ponto, ‘onírica’ aventura noturna de Fridolin (bem como, nos dias seguintes, em sua obsessão por solucionar a série de enigmas desencadeados por aquela noite inicial), um desejo avassalador pela traição amorosa funciona como elemento propulsor; não obstante o adultério jamais chega a se consumar. Por outro, no também longo e intrincado sonho de Albertine, o desejo de traição, ainda que como projeção na esfera abstrata do Inconsciente, é plenamente consumado.

Assim sendo, tanto os protagonistas, quanto nós, leitores, não ‘VEMOS’ qualquer ato de adultério ocorrendo como evento discernível no espaço-tempo; todavia, é inequívoca a ‘VISÃO’ que temos de tal ‘ato’ no universo simbólico do Inconsciente. Como afirmar taxativamente, destarte, que o propósito em tela (isto é, o da traição amorosa) não se realizou, apenas por não ter sido ‘visto’ como ocorrência real? Onde estaria, ao fim e ao cabo, a ‘zona de segurança’, a linha de demarcação em nossa condição humana para verificarmos se algo, sobretudo na esfera do desejo e da vontade, ‘aconteceu’ ou não? Eis, portanto, a grande indagação lançada pelo Expressionismo: Que seria, verdadeiramente, a Realidade Humana? Ou, em outras palavras, qual seria sua manifestação mais genuína? O nebuloso orbe de sonhos, pulsões e desígnios do Inconsciente, ou o plano ‘concreto’ da ação consciente?


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Notas de reflexão crítica XX - sobre a dicotomia FÉ / RAZÃO

Alphonse van Worden - 1750 AD




- Proponho-vos à partida, egrégios confrades, a seguinte indagação Sendo o Criador omnipotente e ilimitado, como então a inteligência humana, finita e limitada, poderia afirmar que Ele não poderia, por um desígnio impenetrável de Sua vontade, modificar o fado destinado às Suas criaturas? Não temos, pois, e tampouco jamais teremos, verdadeiro CONHECIMENTO de atributos como 'infinitude', 'omnipresença', 'omnisciência', etc., mas tão somente podemos intuí-los.

- Se há, de facto, omnipotência, tal atributo necessariamente situa-se numa esfera além de toda compreensão, além da razão, do Bem e do Mal, do Ser e do Não-Ser. À guisa de benévola provocação aos corifeus do tomismo, (muito embora julgue ser uma alegação deveras plausível), lanço aqui a seguinte hipótese: a concepção de Deus advogada pelo mainstream escolástico fornece muito mais munição para a argumentação ateísta que o Deus insondável, imprevisível e arbitrário dos 'voluntaristas'. Ou, em outros termos: sempre que Deus é deslocado da esfera da pura FÉ, que prescinde de quaisquer argumentos, para a esfera da FILOSOFIA (onde todo e qualquer argumento é submetido a rigoroso escrutínio analítivo, e é passível, ao menos em termos de estrutura lógica, de refutação), abre-se um flanco para o ateísmo. FÉ é uma dimensão necessariamente irrefutável; já a razão...

- É razoável supor que o Altíssimo, o Criador de tudo que existe, detenha os atributos da omnipotência, da omnisciência, etc., mas não creio que possamos afirmar taxativamente de que modo os utiliza, nem com que talante. Não há, por exemplo, como conceber a noção de omnipotência sem que a mesma envolva o poder de agir irrracionalmente, e até mesmo malevolamente, pelo menos à luz dos limitados recursos do entendimento humano.

- É mister, sobretudo, que os católicos atentem para o seguinte: ateus podem somente CONVIVER com o credo quia absurdum, mas não podem combatê-lo. Ninguém pode combater a força d'uma convicção que prescinde argumentos. Carl Schmitt, grande pensador católico, sabiamente afirma não haver "cadeia de argumentação lógica capaz de resistir à força de imagens míticas, primordiais" (Der Leviathan in der Staatslehre des Thomas Hobbes - 1938). Ao que acrescento: aquele que visceralmente CRÊ nada precisa provar ou demonstrar, pois sua fé está além, muito além de qualquer argumento. O ateu intelectualmente capaz (o ateísmo primitivo, raivoso, é irrelevante, claro está) é capaz de refutar as mais sutis e laboriosas 'demonstrações' da existência de Deus; não obstante, NADA pode fazer contra a simplicidade d'uma convicção que se basta a si mesma.

- Para aquele que realmente crê, nada pode ser mais fátuo, mais inútil, que discutir os 'porquês' de sua fé. A fé convicta está sempre um passo além de qualquer questionamento, por uma razão muito simples: ela não tem necessidade de formular a questão. É como Santo Atanásio asseverava: "se o mundo estiver errado, então Atanásio será contra o mundo". Com efeito, em nada importa que uma, duas, 10, 100, 1000, 1.000.000, 1.000.000 de vozes proclamem contínua e obsessivamente o contrário: o homem imbuído d'uma convicção tão sólida quanto serena dispensa a anuência ou não dos que o cercam, por mais qualificado que tais elementos possam ser.

- Em verdade, diletos irmãos d'armas, só podemos ter fé genuína no que vai de encontro à razão. Aquilo que somos capazes de compreender (ou pelo menos temos a potência de compreender) não constitui objeto de fé, mas de conhecimento. Não há como conceber que um ato de fé seja passível de entendimento.

- Decerto toda religião necessariamente possui um corpus doutrinário, ou seja, um conjunto de princípios (alguns de índole dogmática, outros não) que expressam as crenças, tradições e valores professados por uma determinada confissão religiosa. Tal corpus, claro está, como qualquer conjunto de teses ou preceitos, é concebido / organizado de forma racional. Não obstante, a ESSÊNCIA, o SUBSTRATO metafísica que informa o imo d'uma religião é, sem dúvida, uma dimensão que está além da razão, e que não pode formulada através de argumentos formalmente lógicos e racionalmente sustentados. Tomemos em consideração, por exemplo, o dogma da Santíssima Trindade: de que modo poderíamos formulá-lo racionalmente como proposição?

- Devemos, portanto, egrégio confrades, como amiúde tenho vos advertido, advogar as idéias do Venerabilis Inceptor William of Ockham, estabelecendo, assim, uma demarcação nítida entre Fé e Razão, Teologia e Filosofia.