segunda-feira, outubro 20, 2014

Notas de reflexão crítica XXI - sobre o dualismo MENTE / MATÉRIA

Alphonse van Worden - 1750 AD




- Ao abordamos a questão do dualismo MENTE / MATÉRIA, que é sem dúvida um dos tópicos centrais da reflexão epistemológico, debruçamo-nos mormente sobre o problema da PERCEPÇÃO, isto é, o próprio ponto de partida de todo o processo cognitivo humano.

- O ato perceptivo estabelece, pois, a relação causal entre o sujeito e a realidade externa num momento específico; ou, em outras palavras: o fenômeno da percepção se dá quanto o Sujeito, enquanto ente cognoscente, interage com o que prima facie chamamos de ‘realidade externa’, isto é, o conjunto de todos os factos ‘atômicos’ e manifestações fenomênicas que constituem o ‘Universo’.

- Percepção e Memória (caracterizadas por Aristóteles na Metafísica como as etapas iniciais de qualquer processo cognitivo, vale dizer), consoante salienta o filósofo e lógico inglês Alfred North Whitehead em obras como The Concept of Nature (1920) e Process and Reality (1929), são instâncias constitutivas de um conceito mais abrangente, por ele chamado de apreensão. Para o sujeito, portanto, apreender um objeto, que pode ser físico, como uma folha de papel, ou conceitual, como a memória, é experimentá-lo, percebê-lo, senti-lo, ainda que não necessariamente de um modo consciente ou reflexivo. A capacidade de apreender está também presente nos planos elementares da natureza. Uma célula percebe o ambiente que a circunda. No complexo de eventos subatômicos, cada evento apreende seu antecedente, e é quase que inteiramente determinado por ele.

- O conceito de apreensão parece ser, num primeiro momento, deveras semelhante ao conceito fenomenológico de intencionalidade; ambos descrevem a relação que se estabelece entre um sujeito e um objeto tendo em vista a superação da cisão sujeito/objeto. Da mesma maneira que intencionalidade é sempre consciência de um objeto, apreensão é sempre percepção de um conjunto de dados. Existe, contudo, aponta Whitehead, uma distinção crucial entre as duas noções: a intencionalidade é pensada apenas em termos de consciência humana, ao passo que o escopo da apreensão, como tivemos a oportunidade de constatar, ultrapassa os limites da consciência humana. Ao invés de meramente se identificar com a intencionalidade, a apreensão generaliza tanto a noção de intencionalidade quanto a de causalidade, unificando desta forma tanto as perspectivas fenomenológica e científica.

- Ao conceber, portanto, a natureza em termos de EVENTOS, e não de substâncias, Alfred North Whitehead opera um deslocamento radical em relação às teorias ontológicas e epistemológicas consagradas pela tradição filosófica. Mente e Matéria não mais constituem as instâncias fundamentais em que se divide a realidade (como em Descartes, por exemplo), sendo substituídas por Whitehead pelo conceito unificado de eventos relacionais se processando dinamicamente no espaço-tempo, possuindo características que podem ser consideradas como pertencentes, em certos aspectos, tanto ao plano material quanto, em outros, ao plano conceitual.

- À mesma época do supracitado pensador inglês, o francês Henri Bergson (1859 – 1941) surge no panorama filosófico como um dos principais críticos dos fundamentos conceituais da filosofia da ciência de seu tempo, mormente de certa assimilação, por parte da então filosofia da mente, d’alguns paradigmas da psicologia e da biologia. A questão passa, sobretudo, pela crítica que Bergson faz às tentativas de reduzir o fenômeno mental às manifestações psicofísicas da atividade cerebral.

- Tal controvérsia, vale dizer, permanece relevante até hoje, no debate entre autores ‘fisicalistas’ (Donald Davidson, John Perry) e ‘mentalistas’ (David Chalmers, Frank Jackson), onde o primeiro grupo sustenta , em linhas gerais, que toda atividade mental do homem nada mais é que uma extensão das propriedades físico-químicas da fisiologia cerebral, o que equivale a afirmar, num escopo mais amplo, que nada existe além do que pode ser empiricamente comprovado; e o segundo, pelo contrário, acredita na existência d’algo enigmático chamado ‘consciência’, cujas manifestações fenomênicas não podem ser reduzidas a meras propriedades físico-químicas).

- No primeiro capítulo de seu livro Knowledge, Possibility and Consciousness (2003), o filósofo norte-americano John Perry nos diz que sua estratégia geral no decorrer da obra será a de defender uma versão do fisicalismo que adote as visões do senso comum sobre a realidade e a importância do caráter subjetivo da experiência, sem todavia sacrificar em hipótese alguma a tese central ‘fisicalista’, confirme a qual nada existe além do que pode ser percebido / mensurado / conhecido empiricamente; outrossim, Perry afirma que outra maneira de explicar o objetivo de seu trabalho seria dizer que ele constitui uma tentativa de demonstrar a coerência filosófica de uma passagem do filme Fantastic Voyage (Richard Fleischer, 1966). Na passagem em tela, os personagens estão atravessando, em seu microscópico submarino, o cérebro do cientista que devem salvar. Há uma espécie de vapor azul que surge em certa parte do cérebro, atraindo a atenção da equipe de resgate. Estarrecido Arthur Kennedy diz para Rachel Welch: “Veja, somos os primeiros a verdadeiramente ver pensamentos humanos”.

- O argumento do conhecimento, pedra-de-toque da cosmovisão 'mentalista', se desenvolveu a partir de algumas concepções do também norte-americano Thomas Nagel, e foi formulado mais detalhadamente pelo filósofo australiano Frank Jackson numa série de artigos. Em What Mary Didn’t Know (1986), Jackson considera a hipótese de uma criança, Mary, que é aprisionada em um quarto preto e branco. Neste aposento ela adquire todo o conhecimento possível acerca da natureza física do mundo; sabe, inclusive, que os diferentes objetos presentes no mundo são coloridos, e que pessoas e animais são capazes de distinguir entre as diversas cores. Mary, no entanto, de fato não conhece tudo o que há para ser conhecido no mundo físico, pois uma vez que se retire do quarto irá aprender o que significa ver uma coisa vermelha. Uma vez que Mary conhecia todos os fatos físicos e ainda assim aprende algo de novo, então existem factos que estão além da realidade física e, desse modo, o fisicalismo está errado.

- Autores como Perry aceitam as premissas do argumento, mas não sua conclusão: quando Mary sai do quarto, e vê um tomate maduro ou um hidrante, ela está na perspectiva de pensar, pela primeira vez, na cor vermelha como sendo essa cor, em condições de também pela primeira vez pensar na sensação que as pessoas têm quando enxergam vermelho como essa sensação. Assim sendo, seu novo conhecimento deve ser entendido como uma nova maneira de se conceber um objeto, e não como um novo objeto a ser considerado. O argumento de Mary, todavia, parte do princípio de que quando aprendemos algo acerca do mundo, o fazemos ao tomar conhecimento de um facto que anteriormente não conhecíamos, e que, por conseguinte, atestaria a existência de manifestações fenomênicas irredutíveis à ‘mente’ como mera extensão individual das propriedades físico-químicas da fisiologia cerebral.