terça-feira, julho 01, 2008

Breve nota sobre A IDADE DA TERRA

Alphonse van Worden - 1750 AD





Glauber Rocha é um desses raros artistas / pensadores cuja obra se desenvolve numa linha ascendente, tanto no plano estético e artístico quanto no sentido da evolução progressiva de um projeto a um só tempo político, espiritual e existencial. A cada filme são agregados novos elementos, novas perspectivas a este verdadeiro périplo, que vai expandindo seus horizontes, se tornando cada vez mais multifacetado e complexo até o seu surpreendente coroamento final com A IDADE DA TERRA (1980).

É fascinante observar como esse work in progress glauberiano vai se processando ao longo de sua carreira. Em BARRAVENTO (1962) e DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL (1964), seus primeiros longas-metragens, podemos observar um cinema ainda determinado por parâmetros narrativos e estéticos tradicionais, caudatário sobretudo, a meu juízo, do ‘cinema dialético’ do soviético de Sergei Eisenstein e do neo-realismo italiano, não podendo também deixar de ser mencionada, especialmente no concernente ao trabalho de direção dos atores, uma substancial influência da dramaturgia de Bertolt Brecht.



Neste filme, que é muito mais uma experiência, um ensaio aberto, do que a estrutura fechada com início-meio-fim que tradicionalmente entendemos por filme, a dimensão ritualística da obra de Glauber, presente como embrião já nos primeiros curtas, atinge o seu ponto máximo de realização. A IDADE DA TERRA é uma pajelança, uma missa bárbara, como acertadamente o define Gilberto Vasconcellos, que celebra a ascensão de uma nova divindade, o Cristo do Terceiro Mundo, que é o próprio povo em seu êxtase místico. Um Cristo que não é o do martírio na cruz, mas o Cristo da ressurreição, da libertação. Fazendo uso de linguagens tão diversas como a poesia, o teatro, a entrevista, a farsa, o documentário, Glauber registra o percurso desse Cristo coletivo, que emana dos anseios mais profundos do povo cristão, que é, ao fim e ao cabo, a materialização simbólica de seu inconsciente coletivo.

A ruptura de Glauber com as engessadas estruturas ideológicas da esquerda oficial , e também com a interpretação materialista da História, se torna, com este filme, irreversível. O Cristo do Terceiro Mundo é, pois, o surgimento de uma nova dimensão revolucionária, o advento da civilização fundada no amor. Como diz o próprio cineasta, “a revolução é uma mágica porque é o imprevisto dentro da razão dominadora”; do mesmo modo, acrescenta: “na medida em que a desrazão planeja a revolução, a razão planeja a repressão”. A dimensão do delírio, transformada em arma do povo, escapa ao entendimento do dominador, que apenas pode compreender o que atua dentro de sua própria lógica. Só o irracionalismo das massas iluminadas pelo êxtase místico pode romper o círculo vicioso do capitalismo ocidental. O racionalismo é, pois, um instrumento de legitimação do Sistema, é a linguagem do dominador. Só a lógica, melhor dizendo, a anti-lógica do sonho, o desreinado delirante do sonho, pode inverter as polaridades e provocar um curto circuito nas estruturas de dominação da racionalidade materialista/capitalista. Daí todo o necessário e progressivo desligamento glauberiano no tocante às categorias racionalistas do marxismo, em direção a um conceito de revolução messiânica que se processa num êxtase místico revolucionário.

A IDADE DA TERRA é, pois, a síntese dialética do projeto glauberiano, a formulação última de seu messianismo revolucionário, onde o povo, sem mediações teóricas ou políticas, se converte em sujeito histórico de sua própria libertação na fé do Cristo, encarnação coletiva da liberdade.