sexta-feira, maio 18, 2012

Quem representa a verdadeira Ortodoxia?





















É com imenso gaúdio, preclaros irmãos d'armas, que cá disponibilizo um insigne pedaço d'escrita d'autoria de meu caríssimo confrade Rafael Daher, cuja erudição e agudeza d'espírito em matéria d'Ortodoxia são veramente notáveis.


Boa leitura!


Alphonse van Worden - 1750 AD

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Quem representa a verdadeira Ortodoxia?

Rafael Daher

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Introdução

Em artigo publicado num dos maiores portais ortodoxos da internet em idioma russo, de autoria de Edward Zibinitsky - texto originalmente publicado em http://www.pravoslavie.ru/jurnal/ideas/contrdugin.htm - notamos diversos erros conceituais e uma imensa falta de preparo para lidar com o assunto.

O artigo começa apresentando a obra do Professor Alexander Dugin como um vasto conjunto de termos e conceitos de diversas tradições, mas agrupadas em uma só entidade, que agrupa aspectos sociais, geopolíticos e espirituais. Embora isso não seja uma crítica direta, é possível notar um certo espanto no autor. Entretanto, um cristão ortodoxo familiarizado com o conceito ortodoxo de Estado não se espanta com isso, pois a autocracia ortodoxa, que foi sustentada por muitos séculos pelo Império Russo, reúne em torno do Czar, o ungido, todo o sentido do Império Cristão. Basta analisar o entendimento dos santos e startsi russos para notar que todos os aspectos da vida terrena estavam diretamente ligados à figura do Czar. A escatologia dos padres russos, por exemplo, gira em torno da queda e do ressurgimento do Czar; além de existir nestes padres uma “geografia sagrada”, que coloca a Rússia não só como a Terceira Roma, mas também como a Nova Jerusalém e o povo russo como o novo povo eleito.[1]

Entre diversas acusações até ao estilo do Professor Dugin, o autor diz ser necessário de certo cuidado e conhecimento por sua “poética rebuscada”, “sistema sofisticado de referências e alusões retóricas”. O que não é um grande problema para um cristão ortodoxo familiarizado com os Santos Padres. Enquanto em alguns padres a linguagem é muito clara e direta, como em São João Crisóstomo, em alguns encontramos a mesma linguagem rebuscada e cheias de meandros, como em Clemente de Alexandria, São Gregório Palamas e em diversos tratados da Filocália[2].

Trataremos, portanto, das acusações e dos diversos erros conceituais do autor, que em sua ânsia por criticar o pensamento do Professor Dugin, acaba deixando de lado diversos conceitos ortodoxos que deveria saber e tem a obrigação de aceitar.

1. A Eurásia e o resto

Após apresentar os principais conceitos do Professor Dugin e do projeto Eurásia, Zibinisky critica a posição tradicionalista de advogar um Princípio Supremo que une todos os autores tradicionalistas e representantes da tradição. Ora, pode-se negar o sobrenatural por trás deste Princípio que une todas as tradições, mas é inegável que a sociedade ocidental moderna representa um rompimento com todos os antigos conceitos e princípios das sociedades antigas, tanto do Oriente como do Ocidente, e é inegável que há diversos traços comuns entre todas essas civilizações. É possível traçar diversos pontos em comum entre o Egito Antigo e a Rússia Ortodoxa – a idéia ortodoxa do Czar que retém a vinda do anticristo, por exemplo, é comum em todas as autocracias e teocracias. Segundo os startsi, a vinda de Cristo como juiz ocorrerá após mais uma queda do Czar da Rússia, que será restaurado e derrubado novamente. No Islam, o Mahdi voltará para restaurar a Sharia na região de Najd, a região do Profeta (saws). Portanto, em todas as civilizações anteriores às revoluções iluministas (ou nas que não foram afetadas por elas), notamos a figura de um autocrata, enviado do alto, que não é apenas um governante terrestre, mas também uma ponte entre o céu e a terra (o Sumo Pontífice do Império Romano). O fundamento de todas estas sociedades está nesta ligação dos céus com a terra e aqui entra a idéia da civilização terrena como uma cópia das civilizações celestes (adiante trataremos sobre isso), e assim como o céu possui sua hierarquia, a terrena também possui a sua. Já no Ocidente, desde a vitória do guelfismo, este princípio tradicional foi rompido. E aí está a chave para a toda a decadência ocidental e suas degenerações mais perversas, como o Catolicismo Romano, o Protestantismo e os ideiais iluministas. Quando o papado tentou usurpar a Conciliaridade da Igreja (Sobornost), para substituí-la pelo governo universal de um franco com delírios romanos, foi dado o primeiro passo para a segunda usurpação franco-romanista: o roubo do poder real, a instauração do poder guelfo e de seu ideal papo-cesarista. Pois se o papa é o líder supremo da Igreja, e se deve existir essa liderança, é óbvio que uma liderança deste tamanho é superior à hierarquia real. Desta forma, ao contrário da sinfonia de poderes patrística, o papo-cesarismo franco usurpou o poder dos reis e passou a governar sozinho. A reforma protestante, para combater este monstro, gerou um monstro maior ainda, pois embora estivesse correta em negar o monstro que é a figura de um bispo que substitui a Conciliaridade da Igreja e o poder real ungido pelos céus, criou diversos monstros semelhantes, em um número maior ainda, pois todo protestante é um pequeno papa. Este monstro acordou e rompeu com os últimos resquícios do Cristianismo. E o mundo passou a assistir o nascimento e morte de diversos ismos, cada vez mais animalizados e sem qualquer princípio. Negar que, de um lado temos as diversas formas tradicionais de governo e, de outro, os frutos do papismo franco, é negar o óbvio. A Autocracia Ortodoxa possui suas particularidades e o cristão ortodoxo tem todo o direito de ver nessas particularidades sinais da presença divina exclusiva, mas ele não pode negar que há um princípio comum, ainda que fruto da chamada “lei natural”, entre todas as formas que contrariam a degeneração Ocidental.

Portanto, ao defender um projeto Eurasiano, contrário ao Ocidente moderno, o Professor Dugin está apenas defendendo a identidade ortodoxa. Também concordamos com o Professor Dugin no que tange ao Nacional-Bolchevismo como preservador da identidade patriótica russa, já que os primeiros nacionais-bolchevistas representavam com muito mais precisão o patriotismo russo e o ideal da Santa Rus’ do que figuras como Kerensky ou até mesmo hierarcas tidos como “conservadores” que defendiam a troca do Czar por um poder democrático aos moldes dos Ocidentais.[3]

2. O Simbolismo Polar

Após apresentar as ideias do Professor Dugin expostas em sua obra "Метафизические корни политических идеологий" (“As Raízes Metafísicas das Ideologias Políticas), o autor, novamente sem perceber, acaba demonstrando como o pensamento do Professor Dugin está de acordo com a tradição patrística da Igreja Ortodoxa. Durante a revolução russa, a Igreja ficou dividida entre várias posições: os renovacionistas, que saudavam as ideologias comunistas e propunham reformas eclesiásticas radicais, como o fim do monasticismo, das vestes clericais e da ritualística; os chamados “contra-revolucionários”, que defendiam o poder do Czar ortodoxo e combatiam o renovacionismo, os “moderados”, partidários de reformas democráticas na Rússia e o fim do czarismo, mas que não eram partidários da revolução sangrenta ou da “ditadura do proletariado”; os neutros, contrários a qualquer intromissão da Igreja na guerra civil. Entretanto, o que nos interessa aqui é a figura dos contra-revolucionários, pois eram os únicos representantes da verdadeira Ortodoxia. Para eles, a revolução não possuía apenas um caráter social, mas antes era fundamentada numa batalha espiritual e de consequências escatológicas. O Metropolita Anastácio, o primeiro Primaz da Igreja Ortodoxa Russa no Exílio, escreveu:

“Terrível e misteriosa é a obscura visão da revolução. Vista detalhadamente de sua essência interior, ela não deve ser colocada dentro do contexto histórico e não pode ser estudada da mesma forma que outros fatos históricos. Suas raízes mais profundas transcendem os limites de espaço e tempo, conforme determinado por Gustave le B.om, que considerava a revolução um fenômeno um tanto místico, obra de poderes sobrenaturais. Mas o que parecia duvidoso tornou-se muito claro após a revolução russa. Todos sentiam, conforme relatou um escritor da época, a terrível encarnação do mal absoluto no temperamento do homem; em outras palavras, a participação do demônio (o pai da mentira e antigo inimigo de Deus, que tentava levar o homem sua obediente ferramenta contra Deus) foi finalmente revelada.”[4]

São João de Kronstadt, em sua visão profética, viu o poder revolucionário como um chicote divino, uma punição pela queda espiritual do povo russo e seu afastamento da Igreja. Segundo os startsi, a restauração do Czar está diretamente ligada ao renascimento espiritual da Rússia, pois desde o VT a figura de um líder enviado por Deus está diretamente ligada ao merecimento do povo[5], e esta é a diferença da autocracia tradicional para todas as outras formas de poder.

Portanto, pelos próprios padres e startsi da Igreja Ortodoxa, a posição do Professor Dugin, sobre a polaridade das figuras presentes na escatologia, bem como da necessidade da polaridade para a restauração do estado primordial, está de acordo com a Ortodoxia. Todos os startsi russos, com suas profecias e avisos sobre castigos divinos à Santa Rus’, representam muito bem o ideal polar, pois todos os fenômenos sociais e geopolíticos não ocorrem por acaso, antes são representações de uma batalha espiritual que ocorre desde a queda de Lúcifer.

A própria interpretação do Apocalipse feita pelos padres da Igreja Ortodoxa é favorável ao argumento do Professor Dugin, pois os padres enxergam nas igrejas da Ásia fases da Igreja e do mundo. Portanto, nem mesmo a História escapa dessa visão, pois ao contrário da visão acadêmica, a Igreja Ortodoxa entende os eventos históricos dentro da divina providência em busca da vitória da Igreja Triunfante e seus membros contra as forças diabólicas.[6].

A Igreja Ortodoxa entende a história de forma polar, em um polo temos aquilo que Santo Justino (Popovich) chamava de “sociedade do Deus Homem”, a Igreja Ortodoxa, e do outro a “hidra de sete cabeças”, representada por todas as tentativas de destruir esta sociedade. Este mesmo Santo entendeu como poucos a raiz espiritual e demoníaca do papao: para São Justino, o Papismo possui em si mesmo uma diabólica tentativa em divinizar um homem para ocupar o lugar de Cristo. Novamente, encontramos dentro dos padres da própria Igreja Ortodoxa a justificação das idéias defendidas pelo Professor Dugin.

Entretanto, este ensinamento é um pouco distante da “Ortodoxia” pregada por alguns hierarcas, que imaginam uma luta comum para católicos romanistas e ortodoxos representantes da verdadeira Roma. Não há como falar em resistência “cristã” ou “objetivos comuns” entre católicos e ortodoxos. Vemos nos exemplos dos santos defensores da Fé Ortodoxa que é impossível falar em colaboração entre as duas Igrejas, e novamente isto é outra prova da polaridade.

Como a Igreja Católica representa o início da maior ofensiva à cosmovisão ortodoxa, não há absurdo algum em enxergá-la como parte das forças decaídas na batalha terrena que representa a batalha celestial entre Miguel e Lúcifer.

3. Gnose

Que católicos romanistas tenham certa paranóia com a gnose é compreensível, pois a teologia romanista é um monstro de duas pernas tortas: a racionalista, representada pelos escolásticos, que reduziram até o mistério do Santíssimo Sacramento ao limites da exposição sistemática; e a mística-sensualista, representada pelos “místicos” católicos que relatam uma relação quase erótica com Cristo, conforme vemos nas representações eróticas da crucificação de Cristo ou nos escritos indecentes de místicos como Santa Teresinha, São Francisco de Assis com seus estigmas e tantos outros.

Já a Igreja Ortodoxa, seguindo os Santos Padres, preservou o verdadeiro sentido da theosis, a doutrina da deificação. O Professor Dugin, ao falar do “Éden Perdido” como característica fundamental da teologia apofática, faz nada mais do que defender a doutrina ortodoxa da deificação e da visão das divinas energias incriadas. São Serafim de Sarov, ao transfigurar-se diante de Motovilov, foi uma prova viva desta doutrina. Enquanto para a teologia romanista a salvação é entendida de forma sistemática, numa exposição quase filosófica da salvação ou, pior ainda, na forma sensual e erótica de seus místicos, a teologia ortodoxa reafirma os ensinamentos dos antigos padres como São Máximo o Confessor e São João Clímaco. Portanto, os místicos romanistas que estão mais próximos do gnosticismo.

Entretanto, a questão do gnosticismo aqui é outra: o autor acusa Dugin de defender os movimentos sectários russos, supostamente gnósticos por seus ritos orgiásticos. Não é nosso intuito defender a Ortodoxia inexistente destas seitas e cremos que este também não é o intuito do Professor Dugin. Entretanto, o Professor Dugin está certo ao defender o aspecto revolucionário destes grupos. Sabemos que o Concílio de Florença foi o responsável por algumas mudanças na praxis dos ortodoxos gregos. O Patriarca Nikon, quando percebeu essas alterações, não imaginou desta forma e, num dos piores erros da história da Igreja Ortodoxa Russa, promulgou reformas para corrigir supostos erros dos missionários que levaram a Ortodoxia à Rússia. Diante disso, os fiéis que diziam que Moscou era a última Roma em pé, pois a primeira havia caído em cisma e heresia, e segunda caído em Florença e depois nas mãos dos turcos, viram um sinal apocalíptico nestas reformas. Algumas, seguindo a interpretação dos padres da profecia em Apocalipse das “estrelas caindo dos céus” como o fim do episcopado no final dos tempos, e assim romperam não só com a Igreja oficial mas também com o próprio sacerdócio.

Dentro da visão do Professor Alexander Dugin, faz todo sentido ver nestes movimentos sectários elementos para a restauração da mentalidade ortodoxa russa. Pois enquanto elementos da Igreja Oficial passaram por diversos movimentos desde as reformas nikonianas, estas seitas ficaram distante de qualquer contato com o mundo exterior corrompido pelo Ocidente.

Além disso, em relação ao assunto da própria gnose como via de realização, é preciso separar o verdadeiro entendimento que os padres tinham da gnose (Clemente de Alexandria fala com frequência de uma gnose cristã), com aquilo que alguns apologetas cristãos imaginavam ser a teoria das seitas gnósticas. Separar a gnose do gnosticismo não é suficiente neste caso, aqui tratamos daquilo que os gnósticos ensinavam do que entendiam como ser ensinamento destas seitas. O assunto é muito longo para ser tratado aqui, mas a leitura em qualquer tratado das seitas gnósticas é capaz de demonstrar que os gnósticos não estavam restritos apenas à “contemplação de imagens poéticas inspiradas por diversos temas da cosmogonia pagã”, conforme diz o autor . Portanto, a defesa que o Professor Dugin faz de alguns movimentos gnósticos nada mais é do que um resgate de diversos elementos do próprio Cristianismo Ortodoxo que foram perdidos devido à influências do Ocidente corrompido. No Ocidente, homens de profundo entendimento espiritual como Marsílio de Pádua, Joaquim de Fiore, Mestre Eckhart e Savonarola, todos devidamente combatidos pela hierarquia católica, pois o resgate do verdadeiro esoterismo cristão e da política sagrada é uma ameaça ao domínio meramente humano do papado.

4. O Esoterismo Cristão e a Sabedoria Perene

A existência de um esoterismo cristão faz parte de uma discussão ampla e merece ser tratada de forma exclusiva. Aqui, vamos nos concentrar naquilo tratado por Zibinitsky: a existência de uma tradição esotérica comum. É suficiente fazer menção ao hesicasmo, à Filocália e aos anciões nus do Monte Athos, 12 monges que vivem centenas de anos e são invisíveis e guardam uma capela para a celebração da última Divina Liturgia antes do fim do mundo. Muitos ortodoxos confundem esta idéia de esoterismo com o esoterismo oriental ou com a Alquimia medieval, mas inegável que há, dentro da Ortodoxia, segredos guardados a uma elite devidamente preparada para essas revelações.

O Professor Dugin, ao traçar semelhanças entre as diversas doutrinas iniciáticas com estes ensinamentos ortodoxos, não pode ser chamado de heresia ou redução da Ortodoxia à mera face de uma unidade iniciática manifestada de diversas formas. É antes disso um estudo acadêmico e que, embora não muito apreciado por alguns setores da Igreja Ortodoxa, por puro preconceito e isolamento histórico, não atenta contra a Ortodoxia.

O autor ainda afirma que a tentativa do Professor Dugin em “combinar” diversas tradições é algo que exige uma atitude semelhante à de Descartes, pois consiste em colocar o “eu” de todas as religiões sob diversos elementos abstratos para então manipulá-los. Sem querer entrar na defesa da Sabedoria Perene de Guénon ou da Unidade Metafísica das Religiões de Schuon, não é este o método de qualquer escola tradicionalista. As pesquisas do Professor Dugin, bem como de outros escritores tradicionalistas, buscam demonstrar a existência de um esoterismo comum a todos as tradições religiosas, e estas pesquisas usam símbolos, ritos e explanações doutrinárias para demonstrar a existência deste esoterismo comum, que não é um “eu” de todas as religiões, mas o centro de todos os ensinamentos tradicionais. Obviamente, é possível para qualquer ortodoxo levantar diversas críticas para esta teoria, mas a justificava do autor foi ridícula e não demonstra apenas má vontade em relação ao Professor Dugin, mas também um profundo desconhecimento daquilo que pretende tratar.

O argumento de que a teoria de Dugin é inválida pois o Iman Ali jamais concordaria com qualquer analogia entre o Islam e o Hinduísmo também é um argumento primário, já explicado por diversos autores tradicionalistas. Além do mais, caso a questão seja abordada sob um ponto de vista exclusivamente acadêmico (que não é o caso do Professor Dugin), o argumento vai para as cucuias de vez, pois o estudo da Religião Comparada não precisa da licença dos hierarcas para demonstrar suas conclusões.

Já o Professor Dugin, que segundo o autor busca condensar Marx, Lao Tsé, o Protopresbítero Habacuque (mártir e líder dos staroviery russos), alquimistas e xiitas, busca demonstrar a existência não só de um esoterismo comum a todas s tradições, mas também uma oposição comum entre todas elas à civilização ocidental e moderna, o Reino da Quantidade, a civilização que representa Kali Yuga, o “mosteiro traidor” da Profecia de Santo Ambrósio de Optina, a Atenas moderna que chocou São Jerônimo de Égina. Qualquer pessoa com o intelecto aberto para o conhecimento é capaz de reconhecer o rompimento entre as civilizações que já falamos no começo deste artigo.

Em seguida o autor começa a despejar incoerências da exposição do Professor Dugin sobre os sacramentos ortodoxos, e nisso vimos o de sempre: um total despreparo ao lidar sobre o assunto e apelos a bonecos de palha como “blasfêmia’. O Professor Dugin, ao traçar um paralelo entre o batismo e outros ritos não-ortodoxos, não reduziu o sacramento ortodoxo a uma mera forma ritualística, nem que o batismo confere os mesmos efeitos que os chamados rituais pagãos – o autor do texto que faz essa conclusão, que não está de acordo com a verdadeira exposição do Professor Dugin, que consiste em demonstrar, através destas semelhanças, a existência de uma origem comum para as tradições, o que não exclui as diferenças exotéricas entre elas, inclusive dos efeitos destes ritos dentro de cada tradição.

Conclusão

Para variar, vemos mais uma vez críticas ortodoxas ao Professor Dugin sem fundamento algum. Já cansamos de ver críticas ortodoxas ao tradicionalismo de Guénon repletas de erros conceituais, bonecos de palha e diversas incoerências em sua argumentação. Mas, desta vez, o que nos chama atenção é a virulência do autor ao criticar o Professor Dugin como se o nacional-bolchevismo e a figura do Professor Dugin fossem grandes ameaças à Ortodoxia – o autor chega a falar até mesmo em “veneno”. Curioso notar como não vemos o protesto destes autores contra as verdadeiras ameaças à Ortodoxia, como a questão do novo calendário, o ecumenismo, a posição de serviçal de Roma exercida pelo Patriarcado de Constantinopla. Isso sim compromete a Ortodoxia – demonstrar que a Ortodoxia faz parte de uma oposição à degeneração moderna não compromete a Ortodoxia. Demonstrar que a Ortodoxia possui em sua doutrina metafísica pontos em comum com o Taoísmo ou com o Hinduísmo não é diminuí-la, diminuir a Ortodoxia é comemorar o nome do falsário que ocupa a antiga sé ortodoxa de Roma em plena catedral do Fanar.

Portanto, enquanto o Professor reafirma a Ortodoxia e seus valores mais caros, muitos dos paladinos da Ortodoxia não pensam duas vezes antes de beijar o anel papal ou a sentar em assembléias de protestantes como o CMI. Estes sim blasfemam, pois tratam como autoridades eclesiásticas verdadeiros usurpadores e filhos de uma instituição atacou e ainda ataca a Ortodoxia com diversos meios ardis, como o uniatismo melquita e ucraniano.

É preciso, portanto, tomar cuidado com aquele exclusivismo que não é tão exclusivista assim. Ao criticar as sérias pesquisas do Professor Dugin, e silenciar em relação aos rufiões da Ortodoxia de hoje, prontos para vender cada pedaço da Ortodoxia ao Ocidente e ao mundo moderno,

Notas

[1] O Padre Serafim Rose, convertido à Ortodoxia, percebeu esta importante missão da Rússia no mundo e escreveu sobre o assunto no ensaio “The Future of Russia and the End of the World”.

[2] A Filocália, por exemplo, circulou secretamente pelos mosteiros ortodoxos por vários séculos, e só foi publicada para o mundo contra o desejo dos monges.

[3] “Graças à misericórdia divina, a ascensão popular contra a antiga e ultrapassada ordem no Estado, que levou a Rússia à beira da destruição nestes duros anos de guerra, foi substituída sem deixar mais vítimas, e agora a Rússia passou para uma nova ordem estatal, graças à decisão da Duma, que formou este Governo Provisório, e aos representantes dos trabalhadores soviéticos. A revolução russa tornou-se uma das revoluções mais breves e pacíficas que a história já conheceu”. Estas palavras foram ditas pelo Arcebispo Serafim (Chichagov) de Tver, tido como um dos líderes da ala conservadora da Igreja. Em Tverskyje Eparkialniie Vedomosty, 1917, № 9-10, pgs 75-76. Até o conservador Santo Mártir André, bispo de Ufa, que mais tarde buscou a união do Patriarcado de Moscou com a Belaja Krinitsa, saudou a queda do poder ortodoxo: “A autocracia dos czares russos caiu no absolutismo, depois em nepotismo e excedeu todas as razões. E que espanto! Este poder entrou em colapso – o poder que deu as costas à Igreja. O desejo de Deus foi cumprido. A Igreja Católica de Cristo foi libertada da opressão do Estado”. Em Ufmskiye Vedomosty, 1917, № 5-6, pgs. 138-139

[4] em Besedi so svoiym sobstvennim serdytsem, Jordanville, 1948, pg. 123

[5] cf. Oséias 10,3; Deuteronômio 17,18

[6] Em obras como Russia Before the Second Coming, de Sergeiv Posad, e The Religious-Philosophical Foundations of History, de Lev Tikhomirov, oferecem ao leitor explicações sobre a visão ortodoxa da história. Para compreender as igrejas da Ásia do livro do Apocalipse como manifestações na história, consultar The Apocalypse in the Teachings of Ancient Christianity, Arc. Averky, Platina, Ca.: St. Herman of Alaska Brotherhood, 1995.

terça-feira, maio 01, 2012

O 'Problema da Indução' em David Hume - II

Alphonse van Worden - 1750 AD



























Para Hume, portanto, a Metafísica constitui um modelo de investigação abstrato, caracterizado tanto por sua fraseologia ambígua quanto por sua conjunção parcial com a experiência; as querelas metafísicas são, desse modo, caracterizadas como meras disputas verbais, onde imperam a ambigüidade e a imprecisão dos termos empregados, tendo por resultado o engano e a ilusão. Uma vez diagnosticado o problema, Hume propõe, a partir de sua Teoria das Idéias, um critério de demarcação que nos permita, de modo claro e inequívoco, operar a distinção entre as controvérsias meramente verbais da Metafísica e as discussões filosóficas legítimas. Tal critério consiste exatamente no já mencionado Princípio de Cópia: toda idéia simples deriva de uma impressão simples. O princípio estabelecido por Hume prescreve a necessidade de uma conjunção plena entre os dados da experiência e os conceitos empregados numa discussão filosófica: ao nos encontrarmos diante de uma idéia filosófica cujo significado não é claro, devemos perguntar qual a impressão que está na origem desta idéia, pois é impossível raciocinar corretamente sem compreender a idéia de que estamos tratando, e tampouco é possível o entendimento de qualquer idéia se não conhecemos sua origem, a impressão primária da qual ela deriva. Portanto, se os termos de que porventura se vale uma teoria filosófica não correspondem aos dados da experiência, ela carece de sentido, devendo ser abandonada. Se desejamos, pois, provar que alguma coisa da qual não temos experiência direta existe, precisamos ter entre nossas premissas a existência de uma ou mais coisas que correspondam a dados da nossa experiência sensível, gravados na mente.

Tendo estabelecido, pois, através do Princípio de Cópia desenvolvido em sua Teoria das Idéias, um critério para distinguir problemas filosóficos legítimos das discussões meramente verbais da Metafísica, Hume irá postular, como segunda diretriz básica de seu empirismo, uma teoria naturalista com o fito de elucidar a credibilidade que o Homem confere a juízos estabelecidos a partir de processos indutivos. Verifiquemos, em primeiro lugar, como o filósofo escocês compreende a natureza do ato judicativo:


Podemos aqui aproveitar a ocasião para observar um erro notável, que tendo sido freqüentemente inculcado nas escolas, tornou-se uma espécie de máxima estabelecida e aceita universalmente por todos os lógicos. Este erro consiste na divisão vulgar dos atos do entendimento em concepção, julgamento e raciocínio (...) O que podemos em geral afirmar em relação a estes três atos do entendimento, considerando-os de maneira apropriada, é que todos eles se resolvem no primeiro, e não são senão modos particulares de conceber nossos objetos.


Hume, como podemos constatar, sustenta a existência d'uma identificação do Juízo com o próprio conteúdo que ele expressa, isto é, com uma idéia que ocorre na mente, em outras palavras, com um item mental imediatamente experienciado. Desse modo, de acordo com o Princípio de Cópia, um Juízo como isto é madeira recebe assentimento porque corresponde a um dado sensível, que é a impressão de madeira. A explicação naturalista de nossa crença em juízos formulados a partir de inferências indutivas envolve, portanto, a explanação a respeito da origem de nossas idéias: o assentimento dado a uma idéia baseia-se no grau de força e vivacidade que ela apresenta, que por sua vez depende da relação desta idéia com a impressão sensível da qual ela deriva. Para Hume, por conseguinte, é somente com base na experiência sensível que nossas faculdades cognitivas podem conceber proposições capazes de operar no terreno da disjuntiva verdade/falsidade.

Ao afirmar que as idéias simples derivam necessariamente de impressões simples, e que tal princípio deve ser aplicado como um critério de demarcação entre os equívocos verbais da Metafísica e as discussões filosóficas legítimas, concluindo forçosamente que as idéias metafísicas devem ser rejeitadas porque carecem de sentido, Hume coloca em xeque alguns conceitos fundamentais da tradição filosófica ocidental. Vejamos aqui, por exemplo, como Hume entende as noções de Substância e Acidente, duas categorias centrais da metafísica aristotélica: “Gostaria de perguntar aos filósofos que fundamentam grande parte de seus raciocínios na distinção entre Substância e Acidente, e imaginam que possuímos idéias claras de ambos, se a idéia de Substância deriva-se de uma impressão de sensação ou de reflexão?”(Treatise of Human Nature, Livro I, Parte I, Seção 6, pág.16).

Frente à impossibilidade de derivar a noção tradicional de substância de qualquer impressão sensível presente na experiência humana, Hume afirma que tal noção só é inteligível se com ela nos referimos a um conjunto de idéias simples, que correspondam a impressões simples, unidas através dos mecanismos de associação. As polêmicas acerca da materialidade ou imaterialidade da alma envolvem, dessa maneira, um uso metafísico e desprovido de sentido da noção de substância, porque nelas esta expressão não encontra uma contrapartida sensível. Devem ser, portanto, abandonadas e substituídas, como podemos observar na argumentação de Hume, pela reflexão sobre os mecanismos que induzem à crença na existência contínua de um feixe de percepções. Por outro lado, ao sustentar que o critério de justificação do Juízo também reside no Princípio de Cópia, Hume limita toda e qualquer pretensão de verdade do pensamento humano ao que pode ser concebido a partir dos dados da experiência sensível.

Na seção IV do Enquiry, Hume, tendo em vista o caráter incerto de nossas inferências acerca de questões de fato, critica mais uma vez as certezas metafísicas a respeito do conhecimento humano. Como o filósofo escocês deixa claro em sua argumentação, uma das questões cruciais da existência é a sucessão dos acontecimentos. Hume nos diz que não podemos basear as ilações e analogias que fazemos, no que concerne aos efeitos de causas semelhantes nas questões de fato, em qualquer espécie de raciocínio formal. Em outras palavras, talvez mais precisas: o que Hume pretende afirmar é que as inferências indutivas, que nos permitem estabelecer uma ponte entre o particular e o universal, isto é, todos os processos de intelecção que caminham do conhecido para o desconhecido (e que portanto incluem como subconjunto os casos em que se tenciona firmar uma conexão sólida entre experiências passadas e a certeza de sua regularidade futura), não podem ser assegurados por nenhum vínculo que seja (a) racional e (b) passível de ser racionalmente verificado e conhecido.

O filósofo escocês ilustra esse ponto axial de suas investigações com alguns exemplos, como o que veremos a seguir: que argumento seria esse, afirma Hume, que nos leva a pensar que um corpo semelhante a um pão que outrora me nutriu, vai estar dotado do mesmo poder secreto da alimentação? A experiência é a fonte de tudo o que temos na mente, assevera Hume logo no início do Enquiry. De modo que nenhum raciocínio a priori pode garantir a falsidade de um contrário de uma questão de fato ou de um raciocínio moral. Esse contrário é sempre possível, desde que seja inteligível, como nos ilustrará o famoso exemplo do Sol, que posteriormente abordaremos. As relações de Idéias, pelo contrário, se baseiam em conceitos criados pelo homem, de modo que, pelo princípio da não-contradição, essas Idéias não devem ser auto-excludentes. Talvez Hume estivesse mostrando, com sua ousada concepção de causa e efeito, que todas as teorias gerais a respeito da realidade se inserem no âmbito da probabilidade.

segunda-feira, abril 02, 2012

Il trionfo della Bellezza tra le rovine


















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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

O 'Problema da Indução' em David Hume - I

Alphonse van Worden - 1750 AD

























Cá examinaremos, diletos confrades, a formulação do Problema da Indução no pensamento de David Hume O filósofo escocês publicou seu primeiro estudo sobre a referida questão em seu Treatise of Human Nature (3 volumes, 1739-40), relacionando-a com o problema da causalidade, e asseverando que de nossa experiência sensível não podemos estabelecer nenhuma conexão necessária entre os fatos. Antes de passarmos ao exame propriamente dito das concepções humeanas acerca do raciocínio indutivo, faz-se mister, a meu juízo, que levemos a cabo uma breve exposição dos argumentos e princípios constitutivos de sua Teoria das Idéias.

Na introdução de seu Treatise, Hume afirma que o conhecimento científico se relaciona intrinsecamente com a natureza humana, uma vez que as ciências “dependem do discernimento dos homens, e são julgadas por suas capacidades e faculdades” (Treatise of Human Nature, Introdução) O filósofo escocês, atestando a existência de uma interdependência necessária entre as ciências e as faculdades intelectuais do Homem, estabelece que a validade dos ramos particulares do Conhecimento, bem como do próprio Conhecimento em si mesmo, somente pode ser determinada a partir de um estudo sobre a natureza constitutiva de nossos processos cognitivos. Em outras palavras: a elaboração de uma teoria naturalista acerca da cognição humana é, no entender de Hume, condição sine qua non para a compreensão dos processos operacionais que norteiam qualquer investigação de natureza científica ou filosófica. Tal investigação se configura justamente no esclarecimento da origem das idéias e dos princípios operacionais que governam o raciocínio humano, isto é, no desenvolvimento de uma Teoria das Idéias capaz de fundamentar as diferentes ciências concebidas pelo Homem. Com a elaboração da supracitada teoria, Hume irá estabelecer as diretrizes básicas de sua filosofia empirista: a formulação de um parâmetro consistente de refutação das concepções metafísicas e a elaboração uma teoria explicativa, de cunho naturalista, para a credibilidade que conferimos aos juízos baseados em inferências indutivas. É a partir de uma explanação acerca das origens das idéias e de seus processos de associação que Hume irá, portanto, erigir os alicerces de seu pensamento crítico.

Na abertura da seção 2 de seu An Enquiry concerning Human Understanding (1748), livro onde o autor resume/reformula os conceitos apresentados na primeira parte (Of Understanding) do Treatise, Hume enuncia a noção primordial que irá nortear suas reflexões sobre o conhecimento humano:



Todos admitirão prontamente que há uma considerável diferença entre as percepções da mente quando um homem sente a dor excessiva ou o prazer de uma tepidez moderada, e quando traz mais tarde essa sensação à sua memória, ou a antecipa pela sua imaginação. Essas faculdades podem imitar ou copiar as percepções dos sentidos, mas jamais podem atingir toda a força e vivacidade da experiência original. 



 Constata-se, pois, que o filósofo escocês apresenta os conteúdos da mente separados em duas espécies de percepções: impressões e idéias. O critério que nos permite fazer a distinção entre as percepções da mente radica em nossa própria experiência pessoal, quando percebemos a nítida diferença entre sentir alguma coisa e pensar sobre alguma coisa. Portanto, as impressões são nossas percepções mais vigorosas, nítidas e intensas, dados fornecidos pelos sentidos tanto internos, como na percepção de um estado de ânimo, quanto externos, como na visão de uma paisagem. As idéias, por sua vez, são modalidades de percepção mais tênues e sutis, que se constituem como representações da memória de nossas impressões.

As percepções, acrescenta David Hume, se apresentam ainda como simples ou complexas; as percepções simples não admitem distinção ou separação, ao passo que, ao contrário, as percepções complexas podem ser divididas em partes, uma vez que resultam da união de percepções simples. Na dinâmica do pensamento, nossas idéias se associam a impressões correspondentes. Tal correspondência, vale dizer, se restringe às idéias e impressões simples, já que as idéias complexas nem sempre correspondem às impressões. No entanto, e este é um ponto crucial na argumentação de Hume, toda idéia simples deriva necessariamente de uma impressão simples correspondente. As idéias simples, portanto, se configuram, no processo cognitivo, como cópias de impressões simples. Se pretendemos, por exemplo, ensinar a alguém o que é a madeira, é preciso que proporcionemos ao indivíduo em questão, apresentando-lhe algum objeto feito de madeira, uma impressão da madeira, pois é impossível conceber uma idéia sem que a impressão que lhe é correspondente tenha sido de antemão apresentada ao indivíduo. Cada idéia simples que concebemos em nosso intelecto é, portanto, forçosamente copiada de uma impressão semelhante. Desse modo, nos diz Hume, as idéias não existem como operações puramente conceituais geradas pelo intelecto, mas sim como um processo cognitivo que se fundamenta em impressões sensíveis. Com efeito, a privação de um órgão dos sentidos não permite que as idéias a ele relacionadas se formem na mente: “Um cego não pode ter noção das cores, nem um surdo dos sons. Restitua-se a qualquer um deles o sentido em que é deficiente e, ao se abrir esse novo canal de entrada para suas sensações, também se estará abrindo um canal para as idéias, e ele não terá dificuldades para conceber esses objetos” (Ibid., Seção 2, pág. 26-27). Tais exemplos, assevera Hume, tornam patente o Princípio de Cópia que regula nossos mecanismos cognitivos, uma vez que demonstram claramente que as impressões precedem as idéias na mente.

Hume ainda irá fazer uma distinção entre as impressões de sensação e as impressões de reflexão. Ao sustentar que as impressões de reflexão têm origem nas idéias, o filósofo escocês aparentemente entra em contradição com a tese que afirma a precedência na mente das impressões em relação às idéias. Todavia, tal contradição acaba por não se verificar, pois Hume acredita que as impressões originais da mente são impressões de sensação, descrevendo a origem das impressões de reflexão nos seguintes termos:



Uma impressão atinge primeiramente nossos sentidos, e nos faz perceber calor ou frio, sede ou fome,prazer ou dor. Desta impressão existe uma cópia retida pela mente, que permanece após a impressão cessar; isto corresponde ao que chamamos de idéia. Esta idéia de prazer ou dor, quando retorna à mente, produz as novas impressões de desejo e aversão, esperança e medo, que podem ser apropriadamente denominadas como impressões de reflexão, uma vez que se derivaram de uma idéia. As impressões de reflexão são então copiadas pela memória e pela imaginação, dando origem, por sua vez, a novas impressões e idéias. 



Podemos constatar que as impressões de reflexão são antecedidas tão somente por suas idéias correspondentes, uma vez que são posteriores às impressões de sensação, derivando-se delas. Para Hume, portanto, toda impressão de reflexão deriva de uma impressão de sensação precedente.

Retornando à distinção estabelecida por Hume entre percepções simples e complexas, passaremos a considerar agora a questão das idéias complexas. Escreve o filósofo:



Nada, à primeira vista, pode parecer mais ilimitado que o pensamento humano, que não apenas escapa a todo poder e autoridade dos homens, mas está livre até mesmo dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar as mais incongruentes formas e aparências não custa à imaginação mais esforço do que conceber os objetos mais naturais e familiares (...) Mas embora nosso pensamento pareça possuir essa liberdade ilimitada, um exame mais cuidadoso nos mostrará que ele está, na verdade, confinado a limites bastante estreitos, e que todo esse poder criador da mente consiste meramente na capacidade de compor, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que os sentidos e a experiência nos fornecem. Quando pensamos em uma montanha de ouro, estamos apenas juntando duas idéias consistentes, ouro e montanha, com as quais estávamos anteriormente familiarizados. 



Por intermédio da capacidade criadora da mente humana, as idéias simples, por conseguinte, se associam para formar idéias complexas, podendo regressar, pelo mesmo processo, a seu estatuto inicial de idéias simples, ou então serem mais uma vez reunidas em diferentes combinações, dando vida a novas idéias complexas. Todavia, ainda que a imaginação seja livre para unir ou separar idéias simples, é evidente que o encadeamento de idéias na mente, ao se constituir como processo cognitivo necessariamente inteligível e passível de transmissão, deve possuir certa regularidade e se pautar por certo método. As operações da imaginação obedecem, portanto, a certas normas que as regularizam. Essas normas são os princípios de associação entre as idéias, classificados por Hume em três categorias fundamentais: semelhança, contigüidade no tempo e no espaço e causalidade. Segundo o filósofo escocês, uma idéia provoca na mente a existência de outra idéia que é ou semelhante, ou contígua, ou um efeito desta idéia original. Hume pretende, ao investigar os três princípios de associação de idéias, estabelecer as bases em que se fundamenta a mecânica operacional da mente humana.

Como dissemos anteriormente, o filósofo escocês, ao propor sua Teoria das Idéias, determina as duas diretivas primordiais de seu empirismo. A primeira delas tem em vista o estabelecimento de um instrumento preciso para esclarecer o emaranhado de equívocos da Metafísica. Observemos como o filósofo escocês descreve, com fina ironia, as discussões metafísicas em uma passagem do Treatise:



 (...) A questão mais trivial não escapa à controvérsia, e para as questões mais importantes não somos capazes de formular alguma solução definitiva. As disputas multiplicam-se, como se tudo fosse incerto; e estas disputas são conduzidas com enorme exaltação, como se tudo estivesse certo. No seio de todo este vozerio não é a razão que recebe o prêmio, mas a eloqüência; e ninguém deve perder a esperança de granjear adeptos para a mais extravagante das hipóteses, se possuir habilidade suficiente para representá-la com cores agradáveis. A vitória não é conquistada pelos guerreiros, que manejam a lança e a espada; mas pelos tambores, trombeteiros e músicos do exército.

quinta-feira, março 01, 2012

Omaggio al Grande Timoniere!




























Omaggio al Grande Timoniere!

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Nosso estandarte, Nosso combate, Nosso destino!

A sorte está lançada, ó egrégios irmãos d'armas! Ora porfiaremos, em infrene faina, a matar e a morrer resignados, pela Vitória do Avatar Sagrado e pelo Advento do Terrível Destino!



LONGA VIDA À MORTE! 





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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Os argumentos neo-dualistas na perspectiva 'fisicalista' de John Perry - II

Alphonse van Worden - 1750 AD






























O argumento do Zumbi, que Perry irá examinar de um modo mais detalhado no capítulo 4 do livro em questão, sustenta ser possível um mundo habitado por seres fisicamente indiscerníveis de nós, mas que não possuem consciência. Este é, diga-se de passagem, o argumento mais importante do livro que recentemente abordamos, The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory (Oxford University Press, 1996), de David Chalmers. O que os zumbis, ao contrário de nós, não possuem, é o caráter subjetivo de nossas experiências. Chalmers usa o termo qualia, que concebe como uma não-física, causalmente impotente camada de atributos de estados cerebrais. Tais atributos não são idênticos a quaisquer outros atributos físicos de nossos estados cerebrais.

Para Chalmers existem dois conceitos distintos de mente: o primeiro é o conceito fenomênico de mente. Esse é o conceito de mente como experiência consciente e de estado mental como um estado mental conscientemente experimentado. O segundo é o conceito psicológico de mente. Tal é o conceito de mente como base causal ou explanatória para o comportamento. Um estado é mental, nesse sentido, se ele desempenha a função adequada na explicação do comportamento. Para Perry, se admitimos a distinção de Chalmers, temos de aceitar a possibilidade da existência de seres que são psicologicamente como nós, mas fenomenicamente diferentes. Mas o argumento de Chalmers parece demonstrar uma possibilidade ainda mais ampla: meu gêmeo zumbi não é apenas psicologicamente como eu, mas é fisicamente indiscernível de mim. A possibilidade de semelhante criatura iria demonstrar não apenas que meu gêmeo zumbi e eu podemos ser psicologicamente iguais e fenomenicamente diferentes, como também que podemos ser fisicamente iguais e fenomenicamente diferentes. Perry argumentará no capítulo 4 que não existem motivos para aceitarmos essa conclusão adicional, e que portanto, o argumento do zumbi é improcedente enquanto argumento contra o fisicalismo.

O argumento do conhecimento, que se desenvolveu a partir de algumas concepções de Thomas Nagel, foi formulado mais detalhadamente por Frank Jackson numa série de artigos. Em What Mary Didn’t Know (1986), Jackson considera a hipótese de uma criança, Mary, que é aprisionada em um quarto preto e branco. Neste aposento ela adquire todo o conhecimento possível acerca da natureza física do mundo; sabe, inclusive, que os diferentes objetos presentes no mundo são coloridos, e que pessoas e animais são capazes de distinguir entre as diversas cores. Mary, no entanto, de fato não conhece tudo o que há para ser conhecido no mundo físico, pois uma vez que se retire do quarto irá aprender o que significa ver uma coisa vermelha. Uma vez que Mary conhecia todos os fatos físicos e ainda assim aprende algo de novo, então existem factos que estão além da realidade física e, desse modo, o fisicalismo está errado.

Perry aceita as premissas do argumento, mas não sua conclusão. Quando Mary sai do quarto, e vê um tomate maduro ou um hidrante, ela está na perspectiva de pensar, pela primeira vez, na cor vermelha como sendo essa cor, em condições de também pela primeira vez pensar na sensação que as pessoas têm quando vêem vermelho como essa sensação. Assim sendo, seu novo conhecimento deve ser entendido como uma nova maneira de se conceber um objeto, e não como um novo objeto a ser considerado. O argumento de Mary, todavia, parte do princípio de que quando aprendemos algo acerca do mundo, o fazemos ao tomar conhecimento de um fato que anteriormente não conhecíamos. No capítulo 5, Perry irá argumentar que o argumento do conhecimento se fundamenta numa concepção confusa e reducionista de Conhecimento. E por trás dessa confusão conceitual se oculta uma representação distorcida das relações entre conhecimento e realidade, epistemologia e metafísica.

Formulando uma versão modal dos argumentos acima apresentados, Saul Kripke afirma que se, como um fisicalista irá proclamar, a sensação é idêntica ao estado ou processo cerebral a ela associado, então ela deverá ser necessariamente idêntica, pois ao supormos que A e B são efetivamente uma só coisa, não existe mundo possível em que possam ser duas coisas distintas. Entretanto, Kripke argumenta, mesmo um fisicalista admite que a relação existente entre um estado cerebral e uma sensação é contingente, ou ao menos parece ser contingente. A explicação usual para acreditarmos que uma relação de identidade é contingente consiste, pois, em estarmos pensando no fato contingente de que objeto em questão satisfaz os critérios particulares de identificação associados a um ou outro de seus termos. Dessa forma, exemplifica Perry, enquanto é necessário que água seja H2O, é contingente que H2O seja a coisa líquida e potável que flui de nossos rios e se precipita da atmosfera, isto é, os critérios que associamos ao objeto água.

 No entanto, responde Perry, não há cabimento para semelhante explicação sobre a contingência aparente, no quadro de nossas sensações e estados cerebrais. Poderíamos afirmar, no contexto da experiência de Ewing, que dor não é algo que seja experimentado necessariamente dessa forma, mas apenas eventualmente, e num mundo diferente possível poderia ser sentida de forma bastante diversa. A relação entre estar sentindo dor e se sentir dessa maneira não é de modo algum similar à relação entre ser H20 e preencher nossos lagos e lagoas. H20 pode não exercer essa função, que pode ser exercida por outra substância. Mas estar tendo essa sensação é o que significa estar sentindo dor.

Perry assevera que sua estratégia gera, no decorrer do livro será a tentativa de advogar uma versão do fisicalismo que adote as concepções do senso comum sobre a realidade e a importância do caráter subjetivo da experiência. Esta é precisamente a concepção que Perry irá denominar como fisicalismo antecedente. O autor irá argumentar que as concepções neo-dualistas impõem ao fisicalismo doutrinas que não lhe são necessárias e que ele não deve abrigar. O argumento do zumbi, nos diz Perry, depende de uma refutação da eficácia causal da experiência, a noção do senso comum de que nossas experiências possuem toda sorte de efeitos físicos significativos. Esta negação, a doutrina do epifenomenalismo , não tem base de sustentação no senso comum, e o fisicalista não tem nenhuma razão para admiti-la. O argumento do zumbi depende também da suposição de que características subjetivas não podem ser identificadas com estados físicos, mas no máximo estabelecerem uma relação de superveniência com eles. O fisicalista também não tem motivos para aceitar essa visão.

No que tange aos argumentos modal e do conhecimento, é proveitoso inserir o debate no contexto da investigação do filósofo e lógico alemão Gottlob Frege acerca das identidades informativas. O motivo pelo qual parece ser habitual acreditar que uma proposição verdadeira na forma A é B pode ser informativa, enquanto A é A não o é, se explica pelo fato de que a primeira formulação envolve dois modos diferentes de se pensar um mesmo objeto. Existem portanto duas maneiras de pensarmos a respeito de propriedades e estados e não somente a respeito de coisas. Posso conceber a cor do sangue como a cor do sangue ou como vermelho, ou ainda, estando em presença de um objeto vermelho, como esta cor. Perry irá chamar esta concepção de estratégia das duas vias (two ways strategy, no original em inglês).

Há, contudo, um obstáculo relevante para esta concepção aparentemente simples: Mary não está pensando sobre seus modos de pensar a respeito de sensações cromáticas, mas acerca das sensações em si mesmas, que são o conteúdo de seu novo conhecimento. Para que se possa identificar o conteúdo de seu novo conhecimento, duas coisas distintas parecem ser necessárias, e não apenas duas maneiras diferentes de se conceber uma coisa. Esta é, reconhece Perry, uma objeção considerável a two ways strategy, mas o autor afirma que ela não se sustenta. Na raiz desta objeção, bem como nos fundamentos do argumento do conhecimento e do argumento modal e, em última análise, também do argumento do zumbi, se encontra uma concepção equivocada quanto a estrutura e possibilidade do conhecimento, um equívoco que Perry irá denominar como subject matter fallacy. A referida falácia está em supor que o conteúdo de proposições ou crenças consiste nas condições de verdade que tais proposições ou crenças colocam nos objetos e propriedades a que se referem.

quarta-feira, fevereiro 01, 2012

Lied für Leni Riefenstahl
























Lied für Leni Riefenstahl

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Considerações adicionais a propósito das interconexões entre 'Inconsciente / Consciente'.

Alphonse van Worden - 1750 AD






















A incapacidade em distinguir entre o misterioso universo de brumas imprecisas do Inconsciente, por um lado, e a realidade meridiana que se descortina perante a Consciência, por outro; ou ainda, a enigmática crença de que o ‘reino de sombras’ do Inconsciente se substitui à esfera de ‘certezas’ da Consciência como única e verdadeira REALIDADE, isto é, duas das linhas de força centrais da cosmovisão expressionista, podem também ser encontradas, por exemplo, em obras cronologicamente anteriores e posteriores ao movimento, o que indica sua vigência como dimensão universal da condição humana; ou, pelo menos, sua presença como traço emblemático da Modernidade, isto é, da ascensão do Indivíduo como sujeito privilegiado tanto da vida social quanto da experiência espiritual, em detrimento da comunidade como lastro identitário.

Consideremos, por exemplo, a seguinte passagem, um diálogo entre os protagonistas Fridolin e Albertine, presente no belo desfecho de Breve Romance de Sonho (Traumnovelle - 1926), do austríaco Arthur Schnitzler, texto que poderia ser descrito, vale dizer, como uma espécie de entrechoque entre o pesadelo expressionista e as paisagens oníricas do surrealismo:



(..)“O que vamos fazer, Albertine?” Ela sorriu, e após breve hesitação, respondeu: “Agradecer ao destino, penso eu, por termos escapado incólumes de todas as aventuras – reais ou sonhadas.” 

“Tem certeza de que é o que você quer também?”, perguntou ele. “Estou tão certa quanto suspeito que a realidade de uma noite, ou mesmo de toda uma vida, não significa sua verdade mais íntima.” 

“Nem sonho algum é totalmente ‘sonho’”, suspirou, baixinho, Fridolin. 

Ela tomou a cabeça dele nas mãos, e aninhou-a com carinho sobre o peito. “Agora estamos os dois acordados”, disse, “e por muito tempo.” 

‘Para sempre’, ele quis acrescentar, mas antes ainda que houvesse pronunciado as palavras, ela colocou-lhe um dedo nos lábios e, como se o fizesse para si mesma, sussurrou: “Melhor não perguntar nada ao Futuro.”



Percebam, no trecho supracitado, a significativa presença da divisa que proclama “o expressionista já não vê, mas tem VISÕES”: por um lado, no transcurso da longa, insólita e, até certo ponto, ‘onírica’ aventura noturna de Fridolin (bem como, nos dias seguintes, em sua obsessão por solucionar a série de enigmas desencadeados por aquela noite inicial), um desejo avassalador pela traição amorosa funciona como elemento propulsor; não obstante o adultério jamais chega a se consumar. Por outro, no também longo e intrincado sonho de Albertine, o desejo de traição, ainda que como projeção na esfera abstrata do Inconsciente, é plenamente consumado.

Assim sendo, tanto os protagonistas, quanto nós, leitores, não ‘VEMOS’ qualquer ato de adultério ocorrendo como evento discernível no espaço-tempo; todavia, é inequívoca a ‘VISÃO’ que temos de tal ‘ato’ no universo simbólico do Inconsciente. Como afirmar taxativamente, destarte, que o propósito em tela (isto é, o da traição amorosa) não se realizou, apenas por não ter sido ‘visto’ como ocorrência real? Onde estaria, ao fim e ao cabo, a ‘zona de segurança’, a ‘linha de demarcação’ em nossa condição humana para verificarmos se algo, sobretudo na esfera do desejo e da vontade, ‘aconteceu’ ou não?

Eis, portanto, a grande indagação lançada pelo Expressionismo: Que seria, verdadeiramente, a Realidade Humana? Ou, em outras palavras, qual seria sua manifestação mais genuína? O nebuloso orbe de sonhos, pulsões e desígnios do Inconsciente, ou o plano ‘concreto’ da ação consciente?

Caberia aqui, creio eu, retomar o pensamento do francês Henri Bergson, mormente no que se refere às considerações do autor sobre a natureza constitutiva da vida psíquica. Em seu Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência (1889), Bergson sustenta a existência de "dois eus diferentes, sendo um como que a projeção do outro, a sua representação espacial, por assim dizer social; este é um eu superficial". Por outro lado, haveria também, na duração de nossa vida interior, o eu profundo, que experimentamos através de "nossos estados internos como seres vivos, incessantemente em vias de formação, como estados refratários à medida que se penetram reciprocamente e cuja sucessão na duração nada tem de comum com uma justaposição no espaço homogêneo". 

Para o filósofo francês, portanto, existiria uma modalidade de ‘eu’ que funciona como projeção representacional de uma dimensão mais profunda; este ‘eu superficial’, portanto, funciona como uma espécie de ‘máscara social’, vale dizer, de auto-representação que fazemos de nós mesmos, consciente e inconscientemente, com intuito de nos ‘apresentarmos’ ao mundo. Ora bem: em contraposição a este ‘eu’ que funciona como veículo de representação, como ‘personagem de nós mesmos’ para o mundo, haveria um ‘eu profundo’, que no fundo consiste no que há de incomunicável em nossa subjetividade, e cujo fluxo temporal, como Bergson assevera, não entra em contato com a esfera representacional do ‘eu superficial’, muito embora a alimente. Verifica-se, pois, a existência d’uma sutil dialética: o ‘eu superficial’ comunica ao mundo a ‘máscara’ que nos representa, mas sua, digamos assim, ‘fonte de alimentação’ é justamente o feixe de profundos estados subjetivos que não podem ser plenamente comunicáveis / decodificáveis.

Não obstante, malgrado estejamos a falar de duas instâncias distintas, isto não significa que nossa estrutura psíquica perca sua unidade fundamental, pois do contrário não poderíamos falar da presença d’uma consciência em contínuo estado de ação. Assim sendo, o que o autor denomina de ‘eu superficial’ ou, em outras palavras, nossa interface com a realidade exterior, funciona a guisa d’uma espécie de ‘carapaça psíquica’ que protege / encobre / oculta nosso ‘eu profundo' - que é exatamente, vale dizer, o que está em jogo durante a longa conversa entre Albertine e Fridolin.  Não se trata, pois, d’um processo de cisão, ou mesmo de afastamento radical, entre estas duas instâncias da vida psíquica, mas sim da superposição d’uma em relação à outra (o que, nos marcos da novela de Schnitzler, ocorre quando os protagonistas se interrogam mutuamente sobre a 'realidade' ou não de suas jornadas noturnas).

Ao atravessarmos a ‘camada protetora’ do eu superficial, descemos às profundezas abissais do que há de mais recôndito em nossa consciência, e assim acessamos o ‘eu profundo’, ainda que este, por seu turno, não possa fazer o caminho reverso e entrar em contato direto com o mundo exterior. Há também assinalar ser precisamente o ‘eu profundo’ a esfera de nossa estrutura psíquica que vivencia o processo de ‘duração’, ou seja, o manar inconsciente do tempo, não redutível ou quantificável em unidades formais de medida, nem tampouco passível de plena transcrição discursiva.

Em suma: o 'eu superficial', que toca o mundo exterior pela superfície, está em contato direto com as causas externas das sensações conservando delas algo de sua exterioridade e, ao olhar para si, divide a vida psíquica em partes distintas à imagem das coisas exteriores com as quais se relaciona. Este eu rígido cujos estados são bem definidos, presta-se de forma muito melhor às exigências da vida social e prática, pois tem o formato das coisas distintas e definidas com as quais tem que lidar para sobreviver. O 'eu profundo', por seu turno, move-se livre e avassaladoramente, longe da estabilidade e imobilidade da exterioridade material. Nele estão os sentimentos mais íntimos, as paixões mais profundas, os pensamentos mais próprios, a vontade mais livre, porque nele os estados mais profundos duram sem a influência estabilizadora do exterior; nele as sensações, enfim, percepções e emoções se organizam de forma autêntica, viva e original.



quarta-feira, janeiro 11, 2012

Requiem per Kim Jong-Il




















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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros 

O 'Problema da Indução' em Nelson Goodman

Alphonse van Worden - 1750 AD






















As tentativas tradicionais de solução do problema clássico da indução centravam-se na tentativa de justificar a relação de confirmação existente entre as premissas de uma indução e a sua conclusão. Todavia, há uma questão preliminar que não foi investigada nas supracitadas tentativas, a saber: que espécie de ‘mecanismo’, no entanto, seria capaz de justificar a validade intrínseca de uma relação de confirmação? A partir da perspectiva descortinada por essa importante questão, o filósofo e lógico norte-americano Nelson Goodman (1906-1998), em livros como Fact, Fiction and Forecast (1955), introduz uma nova formulação do problema da indução. Consideremos agora a seguinte indução: 

(1) Todas as esmeraldas observadas até hoje eram verdes; logo, todas as esmeraldas são verdes.


Esta indução parece-nos perfeitamente razoável. O problema clássico da indução consiste, como já nos foi possível observar, em determinar qual é o mecanismo de confirmação existente entre a premissa e a conclusão. O que se pretende, pois, é explicar como as instâncias positivas de uma generalização podem confirmar a generalização em questão. Observemos agora uma segunda indução:


(2) Todas as esmeraldas observadas até hoje eram verduis; logo, todas as esmeraldas são verduis.


Goodman define o predicado 'verdul' da seguinte maneira: "Um objeto é verdul se, e somente se, tiver sido descoberto até hoje e for verde, ou for descoberto no futuro e for azul." Dada esta definição de verdul, verificamos que se todas as esmeraldas forem verduis, as esmeraldas que descobrirmos amanhã serão azuis; do mesmo modo, podemos constatar que todas as esmeraldas observadas até hoje são, de fato, verduis, uma vez que todas as esmeraldas observadas até hoje são verdes. Contudo, se todas as esmeraldas que examinarmos forem efetivamente verdes, e não verduis, as esmeraldas que porventura encontrarmos amanhã serão verdes. Assim sendo, a conclusão a que chegamos é paradoxal: as premissas de ambas as induções são verdadeiras; a forma lógica das inferências é a mesma; e, no entanto, suas conclusões são inconsistentes - não podem ser ambas verdadeiras.

Nesse momento, estamos no cerne do novo enigma da indução proposto por Goodman. Em primeiro lugar, é preciso compreender o modo como o predicado verdul está definido. Um objeto verdul não é, deve-se salientar, um objeto que é hoje verde e que amanhã se torna azul. Um objeto que seja verdul, e que tenha sido observado pela primeira vez até o dia de hoje, é verde; mas se esse objeto for verde e só for observado pela primeira vez amanhã, não será verdul. Para que um objeto que seja observado pela primeira vez amanhã seja verdul, terá de ser azul. Poderíamos então especular: nossa conclusão paradoxal resulta do fato de termos usado um predicado tão insólito? A resposta para tal questão é sim e não: é óbvio que a conclusão paradoxal resulta do predicado verdul; mas em que medida, precisamente?

Não seria descabido afirmar, num primeiro momento, que o predicado verdul é logicamente complexo, ao passo que o predicado verde é logicamente simples, gerando dessa maneira o paradoxo em pauta. O que nos autoriza, contudo, a garantir que tal afirmação seja necessariamente verdadeira? Esta questão envolve, a nosso juízo, aspecto mais sutil do exemplo concebido por Goodman, razão pela qual iremos nela nos deter com mais vagar.

Imaginemos um predicado análogo ao predicado proposto por Nelson Goodman, o qual iremos denominar como 'azerde', e que será assim definido: "um objeto é azerde se, e somente se, tiver sido descoberto até hoje e for azul, ou for descoberto no futuro e for verde."; a partir da estrutura de formulação dos predicados verdul e azerde, consideremos agora a seguinte definição do predicado verde: "um objeto é verde se, e somente se, tiver sido descoberto até hoje e for verdul, ou for descoberto no futuro e for azerde."

Do esquema que acima apresentamos é possível extrair uma constatação precípua: podemos usar os predicados verde e azul, em conjunto com um parâmetro temporal, para definir verdul; azul, verde e um parâmetro temporal para definir azerde; e, finalmente, verdul, azerde e um parâmetro temporal para definir verde. Nesta perspectiva, pois, os predicados em questão são interdefiníveis. A interdefinibilidade é uma propriedade habitual, por exemplo, nos elementos da lógica simbólica. Desse modo, os quantificadores universal e existencial são interdefiníveis, assim como os operadores modais de necessidade e de possibilidade. Dado o modo, portanto, como os quantificadores podem ser definidos nos termos uns dos outros e de sua negação, não poderíamos afirmar que o quantificador universal é simples e o existencial não; nem vice-versa. O mesmo ocorre com os operadores modais, e ainda com os predicados do exemplo de Goodman. O fato de verdul ser definido em termos de verde, azul, negação e parâmetro temporal nos parece ser o motivo pelo qual obtivemos um paradoxo; no entanto, também podemos definir verde em termos de azerde, verdul, negação e parâmetro temporal. Verde e verdul são ambos, pois, definidos em termos que envolvem parâmetros temporais e outras cores; no caso do predicado verde, o resultado da indução é razoável. Logo, o parâmetro temporal e a complexidade da definição de verdul não podem ser apontados como causas do resultado indesejável na nossa indução.

O que, pois, Nelson Goodman pretende nos demonstrar? Que o problema da indução talvez seja mais complexo do que poderíamos imaginar, apresentando elementos não previstos na formulação original de David Hume. Ainda que lográssemos explicar a relação de confirmação existente entre as premissas das induções e suas conclusões, não conseguiríamos solucionar o problema da indução. Será preciso explicar, nos diz Goodman, por que razão alguns predicados servem para fazer induções, e outros não; e tampouco, deve-se salientar, a explicação pode ser lógica, pois os predicados verdul e verde são logicamente interdefiníveis. A Teoria da Probabilidade certamente pode nos esclarecer como se processa a relação de confirmação entre as premissas e as conclusões de uma indução; todavia, sendo verdadeiras as premissas de ambas as inferências (a verde e a verdul), e uma vez que não há diferença lógica entre os predicados, nenhuma explicação em termos de teoria da confirmação será capaz de indicar uma das inferências como má e a outra como boa.

De que modo, por conseguinte, podemos então explicar a diferença entre as duas inferências? Só o conseguiremos, segundo Goodman, recorrendo ao conteúdo dos predicados, à sua semântica: o predicado verdul que não é projetável, e por esse motivo não podemos fazer inferências corretas a partir dele. Para ser projetável, um predicado precisa ter certas características, e um aspecto relevante do trabalho de Goodman consiste exatamente na tentativa de elaborar uma tipologia convincente dessas características. O filósofo norte-americano lançou mão de uma hipótese extrema em suas investigações, mas é possível, vale dizer, apresentar o novo enigma da indução através de exemplos mais banais. Observamos, a título de ilustração, as seguintes inferências:


(3) Todos os peixes observados até hoje eram animais aquáticos; logo, todos os peixes são animais aquáticos.

(4) Todos os peixes observados até hoje nasceram antes de 12 janeiro de 2012; logo, todos os peixes nascem antes 12 de janeiro de 2012. 


Também neste caso é forçoso constatar que, apesar de a estrutura lógica das inferências ser a mesma, o predicado usado na segunda não é projetável. A tese de Goodman por vezes pode nos parecer extravagante, talvez pelo fato de sermos capazes, em muitas ocasiões, de fazer induções corretas, escolhendo inconscientemente os predicados adequados. Todavia, ao investigarmos com mais atenção as idéias do filósofo norte-americano, fatalmente perceberemos a miríade de alternativas que, sem disso nos darmos conta, descartamos como improcedentes. Usando um exemplo análogo ao de Goodman: todas as palavras que escrevi até agora foram escritas antes deste exato momento; no entanto, seria improcedente concluir que todas as palavras por mim escritas serão escritas antes deste exato momento.

David Hume tentou explicar, portanto, como as regularidades do passado poderiam justificar nossas expectativas e previsões relativas ao futuro; mas não atentou para o fato de que nem todas as regularidades são capazes de sustentar boas previsões. E esta é, numa palavra, a diferença entre o antigo e o novo enigma da indução.           

quinta-feira, dezembro 01, 2011

Ad Majorem Dei Gloriam II - Arnaud Amalric et Godefroy de Bouillon


Na breve nota que se segue, excelsos irmãos d'armas, gostaria de prestar um tributo a dois miríficos paladinos da Igreja.

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Arnaud Amalric (? - 1225)


















Abade de Cîteaux e Legado Papal durante a cruzada contra os albingenses, foi sem dúvida um dos grandes próceres da Cristandade. Em 1209, por ocasião do assalto final à cidade de Béziers, ao ser inquirido pelo comandante das tropas da Igreja sobre como distinguir entre hereges e inocentes, o venerável monge cisterciense deu-lhe a seguinte resposta:


Caedite eos. Novit enim Dominus qui sunt eius.
(Matai-os todos, Deus reconhecerá os seus)



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Godefroy de Bouillon (1058 - 1100)

























Falemos agora d'um ínclito entre ínclitos, o ático Godefroy de Bouillon, Senhor do burgo de Bouillon e Duque da Baixa Lorena. Descendente de Charlemagne, Godefroy de Bouillon foi o principal comandante militar das armas cristãs na Primeira Cruzada. Sua liderança, coragem, abnegação, inteligência e, sobretudo, sua imorredoira e indomável fé na palavra do Altíssimo, foram elementos decisivos em batalhas de suma importância, tais como as de Dorylaeum, Arsuf, Nicaea, Ascalon, Antiochia, etc. Cito, por fim, um episódio que demonstra a supina humildade de que só os grandes próceres são capazes: ao ser nomeado Rei de Jerusalém, Bouillon declinou da honraria, dizendo:



O único Rei de Jerusalém é Jesus Cristo. Sou apenas um defensor do Santo Sepulcro.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte – Deserto dos Tártaros

A propósito do caráter não-científico do marxismo - parte VII (final)

Alphonse van Worden - 1750 AD
















Reparem os senhores que, no tocante à problemática abordada no encerramento da VI parte de nosso ensaio, o marxista ortodoxo nada pode fazer senão perseverar num círculo vicioso. Consoante são obrigados a admitir, sob pena de recair em total insensatez, o fenômeno social que denominamos como 'revolução' inexoravelmente pode ou não ocorrer; tampouco há, é mister também reconhecer, qualquer instrumental científico disponível capaz de determinar com exatidão seu comportamento, carência que se deve a uma razão muito simples: é impossível prever com rigor científico qual será o procedimento de um fenômeno social no futuro, uma vez que tais eventos estão sujeitos ao caudal fortuito, contingente, e adventício da ação humana.

 Destarte, não seria descabido afirmar que o marxismo pretende responder de forma não somente satisfatória, mas definitiva, a indagações tão metafisicamente vagas, inefáveis e rarefeitas como as abordadas ao longo deste escrito; ora, seria necessário então informar aos marxistas que apenas o pensamento religioso é passível de formular respostas cabais (escusado dizer que inverificáveis) para tais questões.

O conhecimento científico, por seu turno, sem dúvida está apto para identificar a causa e a origem de um vasto número de fenômenos, mas não é capaz de determinar com precisão ocorrências e desdobramentos futuros, uma vez que generalizações a partir de inferências indutivas não possuem consistência lógico-demonstrativa absoluta - o célebre e complexo 'problema da indução'. Vejamos aqui um exemplo clássico de tal problema, apresentado pelo filósofo escocês David Hume:


O Sol nasceu todos os dias no passado 
O Sol continua nascendo no presente 
Se o Sol nasceu todos os dias no passado e continua nascendo hoje, 
Logo, nascerá também amanhã 


É do conhecimento de todos que o Sol nasce todos os dias desde o princípio da História, mas isto não nos fornece nenhuma prova cabal de que irá ou não nascer amanhã. É possível, por exemplo, imaginarmos o advento de uma divindade que impeça o nascimento do Sol amanhã. Hume argumenta que não embora não tenhamos qualquer evidência que indique o aparecimento de semelhante divindade, tampouco possuímos uma evidência contrária. Assim sendo, não podemos afirmar com certeza se o Sol nascerá ou não amanhã. Uma vez que inferências indutivas não podem ser assentadas sobre critérios de verdade como os que asseguram a validade das inferências dedutivas, o que fazer? Talvez pudéssemos concluir, num primeiro momento, que a indução deve ser abandonada enquanto processo de raciocínio legítimo, e que devemos nos limitar aos procedimentos dedutivos. Todavia, considerando-se que o raciocínio dedutivo não nos permite fazer previsões sobre ocorrências futuras, na medida em que suas assertivas derivam de generalizações já estabelecidas, como seria possível o conhecimento científico, que se constitui precisamente através de hipóteses formuladas a partir de observações empíricas no passado e no presente? Sem o recurso aos processos indutivos de raciocínio, a constituição do conhecimento científico se tornaria, como podemos constatar, uma tarefa impossível.

É patente, pois, a conclusão de que o Homem não pode abdicar do uso de métodos indutivos em seu processo cognitivo. Entretanto, de que modo podemos fundamentar, justificar as crenças obtidas por intermédio da indução, uma vez que se baseiam em hipóteses sobre eventos ainda não verificados? Diversas respostas para tal dilema foram postuladas ao longo do tempo, algumas sobremaneira engenhosas, nenhuma delas definitiva, dentre as quais podemos destacar as seguintes: a solução em termos de probabilidade estatística da indução, proposta pelo britânico Bertrand Russell; a probabilidade da inferência indutiva em termos de credibilidade racional, lavrada pelo alemão Carl Gustav Hempel; a justificação pragmática do indutivismo científico, a cargo do também alemão Hans Reichenbach; a pertinência dos processos indutivos de raciocínio em termos de predicados projetáveis ou não projetáveis, avançada pelo norte-americano Nelson Goodman.

Pois bem, meus caríssimos confrades: como exigir do pensamento social respostas para as questões esboçadas por gerações de autores marxistas, se nem mesmo a racionalidade científica, sobremaneira mais rigorosa e exata, pode solucioná-las por completo? Concluo asseverando que o pensamento social não pode e muito menos precisa respondê-las; deixemo-lo, pois, desempenhar a contento sua importante e cardinal tarefa: formular estratégias pragmáticas, necessária e inevitavelmente transitórias, para a satisfação, também provisória, de demanda sociais igualmente transitivas e cambiantes. Insomma: cabe somente a nós, por conseguinte, escolher a melhor trilha a seguir: podemos (conforme o próprio Marx nos ensinou, diga-se de passagem) optar pelo caminho da transformação política da realidade social, ou então, emaranhando-nos em intermináveis e estéreis circunlóquios conceituais a propósito de teorizações pseudocientíficos, marcar passo e nem sequer chegar à linha de partida.

Por fim, gostaria de fazer uma breve consideração a propósito dos extremos de insanidade a que o marxismo pode chegar. Como todos sabemos, critérios epistemológicos e parâmetros de racionalidade científica não são burgueses, proletários, aristocráticos ou camponeses, mas sim categorias UNIVERSAIS, válidos por definição ou comprovação empírica. Muito bem: durante o período mais 'ortodoxo' do regime stalinista, falava-se na URSS, com toda a seriedade, na necessidade de se criar uma 'ciência proletária', em contraposição à 'ciência burguesa'. Não é necessário, creio, tecer maiores comentários: qualquer um que tenha ao menos uma vaga nação das hediondas teratologias conceituais a que chegaram os delírios pseudocientíficos de um Ivan Vladimirovich Michurin, de um Trofim Denisovich Lysenko ou de um Abram Moiseyevich Deborin, sabe qual é o real significado d'uma 'ciência proletária'...