quinta-feira, março 01, 2012

Os argumentos neo-dualistas na perspectiva 'fisicalista' de John Perry - II

Alphonse van Worden - 1750 AD






























O argumento do Zumbi, que Perry irá examinar de um modo mais detalhado no capítulo 4 do livro em questão, sustenta ser possível um mundo habitado por seres fisicamente indiscerníveis de nós, mas que não possuem consciência. Este é, diga-se de passagem, o argumento mais importante do livro que recentemente abordamos, The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory (Oxford University Press, 1996), de David Chalmers. O que os zumbis, ao contrário de nós, não possuem, é o caráter subjetivo de nossas experiências. Chalmers usa o termo qualia, que concebe como uma não-física, causalmente impotente camada de atributos de estados cerebrais. Tais atributos não são idênticos a quaisquer outros atributos físicos de nossos estados cerebrais.

Para Chalmers existem dois conceitos distintos de mente: o primeiro é o conceito fenomênico de mente. Esse é o conceito de mente como experiência consciente e de estado mental como um estado mental conscientemente experimentado. O segundo é o conceito psicológico de mente. Tal é o conceito de mente como base causal ou explanatória para o comportamento. Um estado é mental, nesse sentido, se ele desempenha a função adequada na explicação do comportamento. Para Perry, se admitimos a distinção de Chalmers, temos de aceitar a possibilidade da existência de seres que são psicologicamente como nós, mas fenomenicamente diferentes. Mas o argumento de Chalmers parece demonstrar uma possibilidade ainda mais ampla: meu gêmeo zumbi não é apenas psicologicamente como eu, mas é fisicamente indiscernível de mim. A possibilidade de semelhante criatura iria demonstrar não apenas que meu gêmeo zumbi e eu podemos ser psicologicamente iguais e fenomenicamente diferentes, como também que podemos ser fisicamente iguais e fenomenicamente diferentes. Perry argumentará no capítulo 4 que não existem motivos para aceitarmos essa conclusão adicional, e que portanto, o argumento do zumbi é improcedente enquanto argumento contra o fisicalismo.

O argumento do conhecimento, que se desenvolveu a partir de algumas concepções de Thomas Nagel, foi formulado mais detalhadamente por Frank Jackson numa série de artigos. Em What Mary Didn’t Know (1986), Jackson considera a hipótese de uma criança, Mary, que é aprisionada em um quarto preto e branco. Neste aposento ela adquire todo o conhecimento possível acerca da natureza física do mundo; sabe, inclusive, que os diferentes objetos presentes no mundo são coloridos, e que pessoas e animais são capazes de distinguir entre as diversas cores. Mary, no entanto, de fato não conhece tudo o que há para ser conhecido no mundo físico, pois uma vez que se retire do quarto irá aprender o que significa ver uma coisa vermelha. Uma vez que Mary conhecia todos os fatos físicos e ainda assim aprende algo de novo, então existem factos que estão além da realidade física e, desse modo, o fisicalismo está errado.

Perry aceita as premissas do argumento, mas não sua conclusão. Quando Mary sai do quarto, e vê um tomate maduro ou um hidrante, ela está na perspectiva de pensar, pela primeira vez, na cor vermelha como sendo essa cor, em condições de também pela primeira vez pensar na sensação que as pessoas têm quando vêem vermelho como essa sensação. Assim sendo, seu novo conhecimento deve ser entendido como uma nova maneira de se conceber um objeto, e não como um novo objeto a ser considerado. O argumento de Mary, todavia, parte do princípio de que quando aprendemos algo acerca do mundo, o fazemos ao tomar conhecimento de um fato que anteriormente não conhecíamos. No capítulo 5, Perry irá argumentar que o argumento do conhecimento se fundamenta numa concepção confusa e reducionista de Conhecimento. E por trás dessa confusão conceitual se oculta uma representação distorcida das relações entre conhecimento e realidade, epistemologia e metafísica.

Formulando uma versão modal dos argumentos acima apresentados, Saul Kripke afirma que se, como um fisicalista irá proclamar, a sensação é idêntica ao estado ou processo cerebral a ela associado, então ela deverá ser necessariamente idêntica, pois ao supormos que A e B são efetivamente uma só coisa, não existe mundo possível em que possam ser duas coisas distintas. Entretanto, Kripke argumenta, mesmo um fisicalista admite que a relação existente entre um estado cerebral e uma sensação é contingente, ou ao menos parece ser contingente. A explicação usual para acreditarmos que uma relação de identidade é contingente consiste, pois, em estarmos pensando no fato contingente de que objeto em questão satisfaz os critérios particulares de identificação associados a um ou outro de seus termos. Dessa forma, exemplifica Perry, enquanto é necessário que água seja H2O, é contingente que H2O seja a coisa líquida e potável que flui de nossos rios e se precipita da atmosfera, isto é, os critérios que associamos ao objeto água.

 No entanto, responde Perry, não há cabimento para semelhante explicação sobre a contingência aparente, no quadro de nossas sensações e estados cerebrais. Poderíamos afirmar, no contexto da experiência de Ewing, que dor não é algo que seja experimentado necessariamente dessa forma, mas apenas eventualmente, e num mundo diferente possível poderia ser sentida de forma bastante diversa. A relação entre estar sentindo dor e se sentir dessa maneira não é de modo algum similar à relação entre ser H20 e preencher nossos lagos e lagoas. H20 pode não exercer essa função, que pode ser exercida por outra substância. Mas estar tendo essa sensação é o que significa estar sentindo dor.

Perry assevera que sua estratégia gera, no decorrer do livro será a tentativa de advogar uma versão do fisicalismo que adote as concepções do senso comum sobre a realidade e a importância do caráter subjetivo da experiência. Esta é precisamente a concepção que Perry irá denominar como fisicalismo antecedente. O autor irá argumentar que as concepções neo-dualistas impõem ao fisicalismo doutrinas que não lhe são necessárias e que ele não deve abrigar. O argumento do zumbi, nos diz Perry, depende de uma refutação da eficácia causal da experiência, a noção do senso comum de que nossas experiências possuem toda sorte de efeitos físicos significativos. Esta negação, a doutrina do epifenomenalismo , não tem base de sustentação no senso comum, e o fisicalista não tem nenhuma razão para admiti-la. O argumento do zumbi depende também da suposição de que características subjetivas não podem ser identificadas com estados físicos, mas no máximo estabelecerem uma relação de superveniência com eles. O fisicalista também não tem motivos para aceitar essa visão.

No que tange aos argumentos modal e do conhecimento, é proveitoso inserir o debate no contexto da investigação do filósofo e lógico alemão Gottlob Frege acerca das identidades informativas. O motivo pelo qual parece ser habitual acreditar que uma proposição verdadeira na forma A é B pode ser informativa, enquanto A é A não o é, se explica pelo fato de que a primeira formulação envolve dois modos diferentes de se pensar um mesmo objeto. Existem portanto duas maneiras de pensarmos a respeito de propriedades e estados e não somente a respeito de coisas. Posso conceber a cor do sangue como a cor do sangue ou como vermelho, ou ainda, estando em presença de um objeto vermelho, como esta cor. Perry irá chamar esta concepção de estratégia das duas vias (two ways strategy, no original em inglês).

Há, contudo, um obstáculo relevante para esta concepção aparentemente simples: Mary não está pensando sobre seus modos de pensar a respeito de sensações cromáticas, mas acerca das sensações em si mesmas, que são o conteúdo de seu novo conhecimento. Para que se possa identificar o conteúdo de seu novo conhecimento, duas coisas distintas parecem ser necessárias, e não apenas duas maneiras diferentes de se conceber uma coisa. Esta é, reconhece Perry, uma objeção considerável a two ways strategy, mas o autor afirma que ela não se sustenta. Na raiz desta objeção, bem como nos fundamentos do argumento do conhecimento e do argumento modal e, em última análise, também do argumento do zumbi, se encontra uma concepção equivocada quanto a estrutura e possibilidade do conhecimento, um equívoco que Perry irá denominar como subject matter fallacy. A referida falácia está em supor que o conteúdo de proposições ou crenças consiste nas condições de verdade que tais proposições ou crenças colocam nos objetos e propriedades a que se referem.

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