terça-feira, maio 01, 2012

O 'Problema da Indução' em David Hume - II

Alphonse van Worden - 1750 AD



























Para Hume, portanto, a Metafísica constitui um modelo de investigação abstrato, caracterizado tanto por sua fraseologia ambígua quanto por sua conjunção parcial com a experiência; as querelas metafísicas são, desse modo, caracterizadas como meras disputas verbais, onde imperam a ambigüidade e a imprecisão dos termos empregados, tendo por resultado o engano e a ilusão. Uma vez diagnosticado o problema, Hume propõe, a partir de sua Teoria das Idéias, um critério de demarcação que nos permita, de modo claro e inequívoco, operar a distinção entre as controvérsias meramente verbais da Metafísica e as discussões filosóficas legítimas. Tal critério consiste exatamente no já mencionado Princípio de Cópia: toda idéia simples deriva de uma impressão simples. O princípio estabelecido por Hume prescreve a necessidade de uma conjunção plena entre os dados da experiência e os conceitos empregados numa discussão filosófica: ao nos encontrarmos diante de uma idéia filosófica cujo significado não é claro, devemos perguntar qual a impressão que está na origem desta idéia, pois é impossível raciocinar corretamente sem compreender a idéia de que estamos tratando, e tampouco é possível o entendimento de qualquer idéia se não conhecemos sua origem, a impressão primária da qual ela deriva. Portanto, se os termos de que porventura se vale uma teoria filosófica não correspondem aos dados da experiência, ela carece de sentido, devendo ser abandonada. Se desejamos, pois, provar que alguma coisa da qual não temos experiência direta existe, precisamos ter entre nossas premissas a existência de uma ou mais coisas que correspondam a dados da nossa experiência sensível, gravados na mente.

Tendo estabelecido, pois, através do Princípio de Cópia desenvolvido em sua Teoria das Idéias, um critério para distinguir problemas filosóficos legítimos das discussões meramente verbais da Metafísica, Hume irá postular, como segunda diretriz básica de seu empirismo, uma teoria naturalista com o fito de elucidar a credibilidade que o Homem confere a juízos estabelecidos a partir de processos indutivos. Verifiquemos, em primeiro lugar, como o filósofo escocês compreende a natureza do ato judicativo:


Podemos aqui aproveitar a ocasião para observar um erro notável, que tendo sido freqüentemente inculcado nas escolas, tornou-se uma espécie de máxima estabelecida e aceita universalmente por todos os lógicos. Este erro consiste na divisão vulgar dos atos do entendimento em concepção, julgamento e raciocínio (...) O que podemos em geral afirmar em relação a estes três atos do entendimento, considerando-os de maneira apropriada, é que todos eles se resolvem no primeiro, e não são senão modos particulares de conceber nossos objetos.


Hume, como podemos constatar, sustenta a existência d'uma identificação do Juízo com o próprio conteúdo que ele expressa, isto é, com uma idéia que ocorre na mente, em outras palavras, com um item mental imediatamente experienciado. Desse modo, de acordo com o Princípio de Cópia, um Juízo como isto é madeira recebe assentimento porque corresponde a um dado sensível, que é a impressão de madeira. A explicação naturalista de nossa crença em juízos formulados a partir de inferências indutivas envolve, portanto, a explanação a respeito da origem de nossas idéias: o assentimento dado a uma idéia baseia-se no grau de força e vivacidade que ela apresenta, que por sua vez depende da relação desta idéia com a impressão sensível da qual ela deriva. Para Hume, por conseguinte, é somente com base na experiência sensível que nossas faculdades cognitivas podem conceber proposições capazes de operar no terreno da disjuntiva verdade/falsidade.

Ao afirmar que as idéias simples derivam necessariamente de impressões simples, e que tal princípio deve ser aplicado como um critério de demarcação entre os equívocos verbais da Metafísica e as discussões filosóficas legítimas, concluindo forçosamente que as idéias metafísicas devem ser rejeitadas porque carecem de sentido, Hume coloca em xeque alguns conceitos fundamentais da tradição filosófica ocidental. Vejamos aqui, por exemplo, como Hume entende as noções de Substância e Acidente, duas categorias centrais da metafísica aristotélica: “Gostaria de perguntar aos filósofos que fundamentam grande parte de seus raciocínios na distinção entre Substância e Acidente, e imaginam que possuímos idéias claras de ambos, se a idéia de Substância deriva-se de uma impressão de sensação ou de reflexão?”(Treatise of Human Nature, Livro I, Parte I, Seção 6, pág.16).

Frente à impossibilidade de derivar a noção tradicional de substância de qualquer impressão sensível presente na experiência humana, Hume afirma que tal noção só é inteligível se com ela nos referimos a um conjunto de idéias simples, que correspondam a impressões simples, unidas através dos mecanismos de associação. As polêmicas acerca da materialidade ou imaterialidade da alma envolvem, dessa maneira, um uso metafísico e desprovido de sentido da noção de substância, porque nelas esta expressão não encontra uma contrapartida sensível. Devem ser, portanto, abandonadas e substituídas, como podemos observar na argumentação de Hume, pela reflexão sobre os mecanismos que induzem à crença na existência contínua de um feixe de percepções. Por outro lado, ao sustentar que o critério de justificação do Juízo também reside no Princípio de Cópia, Hume limita toda e qualquer pretensão de verdade do pensamento humano ao que pode ser concebido a partir dos dados da experiência sensível.

Na seção IV do Enquiry, Hume, tendo em vista o caráter incerto de nossas inferências acerca de questões de fato, critica mais uma vez as certezas metafísicas a respeito do conhecimento humano. Como o filósofo escocês deixa claro em sua argumentação, uma das questões cruciais da existência é a sucessão dos acontecimentos. Hume nos diz que não podemos basear as ilações e analogias que fazemos, no que concerne aos efeitos de causas semelhantes nas questões de fato, em qualquer espécie de raciocínio formal. Em outras palavras, talvez mais precisas: o que Hume pretende afirmar é que as inferências indutivas, que nos permitem estabelecer uma ponte entre o particular e o universal, isto é, todos os processos de intelecção que caminham do conhecido para o desconhecido (e que portanto incluem como subconjunto os casos em que se tenciona firmar uma conexão sólida entre experiências passadas e a certeza de sua regularidade futura), não podem ser assegurados por nenhum vínculo que seja (a) racional e (b) passível de ser racionalmente verificado e conhecido.

O filósofo escocês ilustra esse ponto axial de suas investigações com alguns exemplos, como o que veremos a seguir: que argumento seria esse, afirma Hume, que nos leva a pensar que um corpo semelhante a um pão que outrora me nutriu, vai estar dotado do mesmo poder secreto da alimentação? A experiência é a fonte de tudo o que temos na mente, assevera Hume logo no início do Enquiry. De modo que nenhum raciocínio a priori pode garantir a falsidade de um contrário de uma questão de fato ou de um raciocínio moral. Esse contrário é sempre possível, desde que seja inteligível, como nos ilustrará o famoso exemplo do Sol, que posteriormente abordaremos. As relações de Idéias, pelo contrário, se baseiam em conceitos criados pelo homem, de modo que, pelo princípio da não-contradição, essas Idéias não devem ser auto-excludentes. Talvez Hume estivesse mostrando, com sua ousada concepção de causa e efeito, que todas as teorias gerais a respeito da realidade se inserem no âmbito da probabilidade.

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