terça-feira, novembro 01, 2011

A propósito do caráter não-científico do marxismo - parte VI


Alphonse van Worden - 1750 AD







O problema radica, mais uma vez salientamos, na abstrusa pertinácia em enquadrar o pensamento social  nas exigências da racionalidade científica e aos critérios de cientificidade, justamente porque tais modalidades de pensamento não envolvem tautologias verdadeiras por definição e nem tampouco enunciados empiricamente verificáveis, pela série de motivos que já enumerei ao longo deste ensaio. Tenho, por conseguinte, plena certeza, na contramão do que afirmam certos marxistas, de que o pensamento social pode e deve evoluir muito bem fora dos quadrantes da razão científica, uma vez que sua dinâmica constitutiva dela prescinde.

Não pretendo, pois, que as asserções do pensamento social tenham validade atemporal e universal, estejam submetidas aos mesmos parâmetros que regem tautologias verdadeiras por definição (2+2 = 4) ou enunciados sintéticos empiricamente (a molécula da água é formada por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio). Tenciono, na verdade, ver o pensamento social livre de tais amarras epistemológicas, voltado exclusivamente para aquele que é seu precípuo mister: atuar como ‘guia para a ação’, ou seja, como saber capaz de interpretar corretamente os sinais emitidos pelas cambiantes conjunturas sociais. Para tanto, não é necessário estar sob o primado da razão lógico-demonstrativa, mas também somente a capacidade de criar instrumentos pragmáticos eficazes para a ação humana. Devemos ter em mente que a finalidade do pensamento social não é formular uma sistematização analítica da realidade empírica, mas uma dinâmica transformativa do universo social.

Insisto: qual a necessidade, para efeito de sua efetiva aplicação como instrumento de luta política, de o marxismo ser considerado uma teoria científica? A resposta parta esta questão nos remete, a meu juízo, para outra indagação: por que atribuir ao estatuto científico primazia em termos de instância de legitimação para os saberes humanos? Examinemos este ponto com mais vagar: dentre todos os sistemas conceituais elaborados pela humanidade, qual logrou conquistar a maior legitimidade social, política e histórica ao longo do tempo? O pensamento religioso, isto é, precisamente a modalidade de saber mais refratária aos ditames da racionalidade científica! E como atua o pensamento teológico? Como modelo para a conduta humana, tanto em termos individuais quanto sociais. 

É, portanto, nesse horizonte que o marxismo deve também se inserir: como guia para ação social humana, como instrumento político-ideológico para a ação revolucionária. Para tanto, não se faz necessária a gestação de uma hermenêutica científica da realidade empírica, mas a elaboração de estratégias pragmáticas capazes de conquistar corações e mentes para um determinado objetivo político. 

 É mister admitir que há, de facto, um grande fetichismo no que tange à racionalidade científica como nec plus ultra definitivo da cultura universal; com efeito, não podemos negar que a noção de que a ciência fala a 'linguagem da verdade' é bastante difundida. Todavia, volto a frisar: em seu caráter precípuo de guia político para ação revolucionária, o marxismo prescinde por completo de qualquer pretensão de legitimidade científica: revoluções, enquanto processos sociais, são um fenômeno messiânico e largamente irracionalista, que não pode ser sintetizado/descrito/analisado a partir de categorias racionais.

Por outro, não se pode extrair de minhas considerações a assertiva de que os pressupostos e concepções do pensamento social seriam, por assim dizer, meros 'palpites'. Consoante a perspectiva que advogo, tais saberes, quando adequadamente empregues, são capazes de interpretar com eficácia os indícios emitidos pelas diversas formações e instâncias sociais, gerando, desta forma, dispositivos pragmáticos de orientação para a ação humana. Para desempenhar esta tarefa, ou seja, para configurar-se como dinâmica transformativa do universo social, o pensamento marxista não precisa de modo algum satisfazer a critérios de cientificidade, mas tão somente funcionar como uma espécie de sismógrafo da História.  

Prossigamos, contudo, com as objeções que um marxista eventualmente poderia  apresentar. Digamos que nosso interlocutor imaginário afirme o seguinte: 'um objeto único - a sociedade - e em constante mutação não invalida um arcabouço científico se este assume a variabilidade da dinâmica interna do objeto. No final o objeto é sempre o mesmo, quer tratemos do século XIX, quer abordemos a época atual'.

Peço a atenção dos senhores para as considerações acima esboçadas. O que seria um 'objeto único'? Um ente unívoco, que não envolve contradições internas ou ambigüidade conceitual em sua formulação, que é sempre idêntico a si mesmo, pois o que foi ontem é o que hoje é e também o que amanhã será. Um objeto, portanto, como o oxigênio, sem dúvida preenche todos esses requisitos: é únivoco, não envolve ambigüidade em sua definição e é sempre idêntico a si mesmo no espaço-tempo. 

Examinemos agora o termo 'sociedade'. À partida há que assinalar que, ao contrário de 'oxigênio', não estamos diante de um objeto dado, mas sim de um objeto construído, isto é, d'uma generalização indutiva elaborada a partir da observação sobre agrupamentos de indivíduos que habitam um determinado espaço geográfico num determinado lapso temporal. Trata-se, aliás, como podemos verificar, muito mais de um conceito que um objeto; admitamos todavia, somente para efeito da discussão em tela, que 'sociedade' é um objeto, para então sujeitá-lo ao mesmo escrutínio enfrentado pelo objeto 'oxigênio'. É 'sociedade', assim como 'oxigênio, uma entidade inequívoca?  À partida já podemos constatar que a definição de nosso objeto envolve conceitos polissêmicos como 'grupo' e 'habitar', para os quais dificilmente poderíamos oferecer determinações inequívocas. É 'sociedade' um objeto sempre idêntico a si mesmo? Talvez sua definição o seja, mas não o que ela designa: a sociedade dos zulus, por exemplo, é distinta da dos esquimós, assim como a sociedade londrina do século XVIII é distinta da do século XXI. Seria destarte mais correto falarmos não em 'sociedade' mas em 'sociedades', uma vez que são múltiplas no espaço e no tempo as entidades que tal termo pode significar.  O mesmo não ocorre, contudo, com o objeto 'oxigênio': 'oxigênio' foi, é e sempre será 'oxigênio', seja entre zulus, esquimós, londrinos do século XVIII ou do século XXI. Retornando às exigências da razão lógico-demonstrativa, podemos com certeza afirmar como o objeto 'oxigênio' irá comportar-se dadas certas condições pré-determinadas; em outras palavras, podemos gerar conhecimento científico a partir da observação de 'oxigênio'. O mesmo procedimento, entretanto, não pode ser dispensado ao objeto construído 'sociedade', cuja índole polissêmica e metamórfica nos faculta tão somente a formulação de considerações provisórias e assistemáticas. O conhecimento científico, portanto, não trabalha com objetos variáveis e equívocos, mas tão somente com aqueles passíveis de definição únivoca e universalmente válida em qualquer contexto espaço-temporal. 





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