segunda-feira, abril 02, 2012

O 'Problema da Indução' em David Hume - I

Alphonse van Worden - 1750 AD

























Cá examinaremos, diletos confrades, a formulação do Problema da Indução no pensamento de David Hume O filósofo escocês publicou seu primeiro estudo sobre a referida questão em seu Treatise of Human Nature (3 volumes, 1739-40), relacionando-a com o problema da causalidade, e asseverando que de nossa experiência sensível não podemos estabelecer nenhuma conexão necessária entre os fatos. Antes de passarmos ao exame propriamente dito das concepções humeanas acerca do raciocínio indutivo, faz-se mister, a meu juízo, que levemos a cabo uma breve exposição dos argumentos e princípios constitutivos de sua Teoria das Idéias.

Na introdução de seu Treatise, Hume afirma que o conhecimento científico se relaciona intrinsecamente com a natureza humana, uma vez que as ciências “dependem do discernimento dos homens, e são julgadas por suas capacidades e faculdades” (Treatise of Human Nature, Introdução) O filósofo escocês, atestando a existência de uma interdependência necessária entre as ciências e as faculdades intelectuais do Homem, estabelece que a validade dos ramos particulares do Conhecimento, bem como do próprio Conhecimento em si mesmo, somente pode ser determinada a partir de um estudo sobre a natureza constitutiva de nossos processos cognitivos. Em outras palavras: a elaboração de uma teoria naturalista acerca da cognição humana é, no entender de Hume, condição sine qua non para a compreensão dos processos operacionais que norteiam qualquer investigação de natureza científica ou filosófica. Tal investigação se configura justamente no esclarecimento da origem das idéias e dos princípios operacionais que governam o raciocínio humano, isto é, no desenvolvimento de uma Teoria das Idéias capaz de fundamentar as diferentes ciências concebidas pelo Homem. Com a elaboração da supracitada teoria, Hume irá estabelecer as diretrizes básicas de sua filosofia empirista: a formulação de um parâmetro consistente de refutação das concepções metafísicas e a elaboração uma teoria explicativa, de cunho naturalista, para a credibilidade que conferimos aos juízos baseados em inferências indutivas. É a partir de uma explanação acerca das origens das idéias e de seus processos de associação que Hume irá, portanto, erigir os alicerces de seu pensamento crítico.

Na abertura da seção 2 de seu An Enquiry concerning Human Understanding (1748), livro onde o autor resume/reformula os conceitos apresentados na primeira parte (Of Understanding) do Treatise, Hume enuncia a noção primordial que irá nortear suas reflexões sobre o conhecimento humano:



Todos admitirão prontamente que há uma considerável diferença entre as percepções da mente quando um homem sente a dor excessiva ou o prazer de uma tepidez moderada, e quando traz mais tarde essa sensação à sua memória, ou a antecipa pela sua imaginação. Essas faculdades podem imitar ou copiar as percepções dos sentidos, mas jamais podem atingir toda a força e vivacidade da experiência original. 



 Constata-se, pois, que o filósofo escocês apresenta os conteúdos da mente separados em duas espécies de percepções: impressões e idéias. O critério que nos permite fazer a distinção entre as percepções da mente radica em nossa própria experiência pessoal, quando percebemos a nítida diferença entre sentir alguma coisa e pensar sobre alguma coisa. Portanto, as impressões são nossas percepções mais vigorosas, nítidas e intensas, dados fornecidos pelos sentidos tanto internos, como na percepção de um estado de ânimo, quanto externos, como na visão de uma paisagem. As idéias, por sua vez, são modalidades de percepção mais tênues e sutis, que se constituem como representações da memória de nossas impressões.

As percepções, acrescenta David Hume, se apresentam ainda como simples ou complexas; as percepções simples não admitem distinção ou separação, ao passo que, ao contrário, as percepções complexas podem ser divididas em partes, uma vez que resultam da união de percepções simples. Na dinâmica do pensamento, nossas idéias se associam a impressões correspondentes. Tal correspondência, vale dizer, se restringe às idéias e impressões simples, já que as idéias complexas nem sempre correspondem às impressões. No entanto, e este é um ponto crucial na argumentação de Hume, toda idéia simples deriva necessariamente de uma impressão simples correspondente. As idéias simples, portanto, se configuram, no processo cognitivo, como cópias de impressões simples. Se pretendemos, por exemplo, ensinar a alguém o que é a madeira, é preciso que proporcionemos ao indivíduo em questão, apresentando-lhe algum objeto feito de madeira, uma impressão da madeira, pois é impossível conceber uma idéia sem que a impressão que lhe é correspondente tenha sido de antemão apresentada ao indivíduo. Cada idéia simples que concebemos em nosso intelecto é, portanto, forçosamente copiada de uma impressão semelhante. Desse modo, nos diz Hume, as idéias não existem como operações puramente conceituais geradas pelo intelecto, mas sim como um processo cognitivo que se fundamenta em impressões sensíveis. Com efeito, a privação de um órgão dos sentidos não permite que as idéias a ele relacionadas se formem na mente: “Um cego não pode ter noção das cores, nem um surdo dos sons. Restitua-se a qualquer um deles o sentido em que é deficiente e, ao se abrir esse novo canal de entrada para suas sensações, também se estará abrindo um canal para as idéias, e ele não terá dificuldades para conceber esses objetos” (Ibid., Seção 2, pág. 26-27). Tais exemplos, assevera Hume, tornam patente o Princípio de Cópia que regula nossos mecanismos cognitivos, uma vez que demonstram claramente que as impressões precedem as idéias na mente.

Hume ainda irá fazer uma distinção entre as impressões de sensação e as impressões de reflexão. Ao sustentar que as impressões de reflexão têm origem nas idéias, o filósofo escocês aparentemente entra em contradição com a tese que afirma a precedência na mente das impressões em relação às idéias. Todavia, tal contradição acaba por não se verificar, pois Hume acredita que as impressões originais da mente são impressões de sensação, descrevendo a origem das impressões de reflexão nos seguintes termos:



Uma impressão atinge primeiramente nossos sentidos, e nos faz perceber calor ou frio, sede ou fome,prazer ou dor. Desta impressão existe uma cópia retida pela mente, que permanece após a impressão cessar; isto corresponde ao que chamamos de idéia. Esta idéia de prazer ou dor, quando retorna à mente, produz as novas impressões de desejo e aversão, esperança e medo, que podem ser apropriadamente denominadas como impressões de reflexão, uma vez que se derivaram de uma idéia. As impressões de reflexão são então copiadas pela memória e pela imaginação, dando origem, por sua vez, a novas impressões e idéias. 



Podemos constatar que as impressões de reflexão são antecedidas tão somente por suas idéias correspondentes, uma vez que são posteriores às impressões de sensação, derivando-se delas. Para Hume, portanto, toda impressão de reflexão deriva de uma impressão de sensação precedente.

Retornando à distinção estabelecida por Hume entre percepções simples e complexas, passaremos a considerar agora a questão das idéias complexas. Escreve o filósofo:



Nada, à primeira vista, pode parecer mais ilimitado que o pensamento humano, que não apenas escapa a todo poder e autoridade dos homens, mas está livre até mesmo dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar as mais incongruentes formas e aparências não custa à imaginação mais esforço do que conceber os objetos mais naturais e familiares (...) Mas embora nosso pensamento pareça possuir essa liberdade ilimitada, um exame mais cuidadoso nos mostrará que ele está, na verdade, confinado a limites bastante estreitos, e que todo esse poder criador da mente consiste meramente na capacidade de compor, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que os sentidos e a experiência nos fornecem. Quando pensamos em uma montanha de ouro, estamos apenas juntando duas idéias consistentes, ouro e montanha, com as quais estávamos anteriormente familiarizados. 



Por intermédio da capacidade criadora da mente humana, as idéias simples, por conseguinte, se associam para formar idéias complexas, podendo regressar, pelo mesmo processo, a seu estatuto inicial de idéias simples, ou então serem mais uma vez reunidas em diferentes combinações, dando vida a novas idéias complexas. Todavia, ainda que a imaginação seja livre para unir ou separar idéias simples, é evidente que o encadeamento de idéias na mente, ao se constituir como processo cognitivo necessariamente inteligível e passível de transmissão, deve possuir certa regularidade e se pautar por certo método. As operações da imaginação obedecem, portanto, a certas normas que as regularizam. Essas normas são os princípios de associação entre as idéias, classificados por Hume em três categorias fundamentais: semelhança, contigüidade no tempo e no espaço e causalidade. Segundo o filósofo escocês, uma idéia provoca na mente a existência de outra idéia que é ou semelhante, ou contígua, ou um efeito desta idéia original. Hume pretende, ao investigar os três princípios de associação de idéias, estabelecer as bases em que se fundamenta a mecânica operacional da mente humana.

Como dissemos anteriormente, o filósofo escocês, ao propor sua Teoria das Idéias, determina as duas diretivas primordiais de seu empirismo. A primeira delas tem em vista o estabelecimento de um instrumento preciso para esclarecer o emaranhado de equívocos da Metafísica. Observemos como o filósofo escocês descreve, com fina ironia, as discussões metafísicas em uma passagem do Treatise:



 (...) A questão mais trivial não escapa à controvérsia, e para as questões mais importantes não somos capazes de formular alguma solução definitiva. As disputas multiplicam-se, como se tudo fosse incerto; e estas disputas são conduzidas com enorme exaltação, como se tudo estivesse certo. No seio de todo este vozerio não é a razão que recebe o prêmio, mas a eloqüência; e ninguém deve perder a esperança de granjear adeptos para a mais extravagante das hipóteses, se possuir habilidade suficiente para representá-la com cores agradáveis. A vitória não é conquistada pelos guerreiros, que manejam a lança e a espada; mas pelos tambores, trombeteiros e músicos do exército.

quinta-feira, março 01, 2012

Omaggio al Grande Timoniere!




























Omaggio al Grande Timoniere!

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Nosso estandarte, Nosso combate, Nosso destino!

A sorte está lançada, ó egrégios irmãos d'armas! Ora porfiaremos, em infrene faina, a matar e a morrer resignados, pela Vitória do Avatar Sagrado e pelo Advento do Terrível Destino!



LONGA VIDA À MORTE! 





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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Os argumentos neo-dualistas na perspectiva 'fisicalista' de John Perry - II

Alphonse van Worden - 1750 AD






























O argumento do Zumbi, que Perry irá examinar de um modo mais detalhado no capítulo 4 do livro em questão, sustenta ser possível um mundo habitado por seres fisicamente indiscerníveis de nós, mas que não possuem consciência. Este é, diga-se de passagem, o argumento mais importante do livro que recentemente abordamos, The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory (Oxford University Press, 1996), de David Chalmers. O que os zumbis, ao contrário de nós, não possuem, é o caráter subjetivo de nossas experiências. Chalmers usa o termo qualia, que concebe como uma não-física, causalmente impotente camada de atributos de estados cerebrais. Tais atributos não são idênticos a quaisquer outros atributos físicos de nossos estados cerebrais.

Para Chalmers existem dois conceitos distintos de mente: o primeiro é o conceito fenomênico de mente. Esse é o conceito de mente como experiência consciente e de estado mental como um estado mental conscientemente experimentado. O segundo é o conceito psicológico de mente. Tal é o conceito de mente como base causal ou explanatória para o comportamento. Um estado é mental, nesse sentido, se ele desempenha a função adequada na explicação do comportamento. Para Perry, se admitimos a distinção de Chalmers, temos de aceitar a possibilidade da existência de seres que são psicologicamente como nós, mas fenomenicamente diferentes. Mas o argumento de Chalmers parece demonstrar uma possibilidade ainda mais ampla: meu gêmeo zumbi não é apenas psicologicamente como eu, mas é fisicamente indiscernível de mim. A possibilidade de semelhante criatura iria demonstrar não apenas que meu gêmeo zumbi e eu podemos ser psicologicamente iguais e fenomenicamente diferentes, como também que podemos ser fisicamente iguais e fenomenicamente diferentes. Perry argumentará no capítulo 4 que não existem motivos para aceitarmos essa conclusão adicional, e que portanto, o argumento do zumbi é improcedente enquanto argumento contra o fisicalismo.

O argumento do conhecimento, que se desenvolveu a partir de algumas concepções de Thomas Nagel, foi formulado mais detalhadamente por Frank Jackson numa série de artigos. Em What Mary Didn’t Know (1986), Jackson considera a hipótese de uma criança, Mary, que é aprisionada em um quarto preto e branco. Neste aposento ela adquire todo o conhecimento possível acerca da natureza física do mundo; sabe, inclusive, que os diferentes objetos presentes no mundo são coloridos, e que pessoas e animais são capazes de distinguir entre as diversas cores. Mary, no entanto, de fato não conhece tudo o que há para ser conhecido no mundo físico, pois uma vez que se retire do quarto irá aprender o que significa ver uma coisa vermelha. Uma vez que Mary conhecia todos os fatos físicos e ainda assim aprende algo de novo, então existem factos que estão além da realidade física e, desse modo, o fisicalismo está errado.

Perry aceita as premissas do argumento, mas não sua conclusão. Quando Mary sai do quarto, e vê um tomate maduro ou um hidrante, ela está na perspectiva de pensar, pela primeira vez, na cor vermelha como sendo essa cor, em condições de também pela primeira vez pensar na sensação que as pessoas têm quando vêem vermelho como essa sensação. Assim sendo, seu novo conhecimento deve ser entendido como uma nova maneira de se conceber um objeto, e não como um novo objeto a ser considerado. O argumento de Mary, todavia, parte do princípio de que quando aprendemos algo acerca do mundo, o fazemos ao tomar conhecimento de um fato que anteriormente não conhecíamos. No capítulo 5, Perry irá argumentar que o argumento do conhecimento se fundamenta numa concepção confusa e reducionista de Conhecimento. E por trás dessa confusão conceitual se oculta uma representação distorcida das relações entre conhecimento e realidade, epistemologia e metafísica.

Formulando uma versão modal dos argumentos acima apresentados, Saul Kripke afirma que se, como um fisicalista irá proclamar, a sensação é idêntica ao estado ou processo cerebral a ela associado, então ela deverá ser necessariamente idêntica, pois ao supormos que A e B são efetivamente uma só coisa, não existe mundo possível em que possam ser duas coisas distintas. Entretanto, Kripke argumenta, mesmo um fisicalista admite que a relação existente entre um estado cerebral e uma sensação é contingente, ou ao menos parece ser contingente. A explicação usual para acreditarmos que uma relação de identidade é contingente consiste, pois, em estarmos pensando no fato contingente de que objeto em questão satisfaz os critérios particulares de identificação associados a um ou outro de seus termos. Dessa forma, exemplifica Perry, enquanto é necessário que água seja H2O, é contingente que H2O seja a coisa líquida e potável que flui de nossos rios e se precipita da atmosfera, isto é, os critérios que associamos ao objeto água.

 No entanto, responde Perry, não há cabimento para semelhante explicação sobre a contingência aparente, no quadro de nossas sensações e estados cerebrais. Poderíamos afirmar, no contexto da experiência de Ewing, que dor não é algo que seja experimentado necessariamente dessa forma, mas apenas eventualmente, e num mundo diferente possível poderia ser sentida de forma bastante diversa. A relação entre estar sentindo dor e se sentir dessa maneira não é de modo algum similar à relação entre ser H20 e preencher nossos lagos e lagoas. H20 pode não exercer essa função, que pode ser exercida por outra substância. Mas estar tendo essa sensação é o que significa estar sentindo dor.

Perry assevera que sua estratégia gera, no decorrer do livro será a tentativa de advogar uma versão do fisicalismo que adote as concepções do senso comum sobre a realidade e a importância do caráter subjetivo da experiência. Esta é precisamente a concepção que Perry irá denominar como fisicalismo antecedente. O autor irá argumentar que as concepções neo-dualistas impõem ao fisicalismo doutrinas que não lhe são necessárias e que ele não deve abrigar. O argumento do zumbi, nos diz Perry, depende de uma refutação da eficácia causal da experiência, a noção do senso comum de que nossas experiências possuem toda sorte de efeitos físicos significativos. Esta negação, a doutrina do epifenomenalismo , não tem base de sustentação no senso comum, e o fisicalista não tem nenhuma razão para admiti-la. O argumento do zumbi depende também da suposição de que características subjetivas não podem ser identificadas com estados físicos, mas no máximo estabelecerem uma relação de superveniência com eles. O fisicalista também não tem motivos para aceitar essa visão.

No que tange aos argumentos modal e do conhecimento, é proveitoso inserir o debate no contexto da investigação do filósofo e lógico alemão Gottlob Frege acerca das identidades informativas. O motivo pelo qual parece ser habitual acreditar que uma proposição verdadeira na forma A é B pode ser informativa, enquanto A é A não o é, se explica pelo fato de que a primeira formulação envolve dois modos diferentes de se pensar um mesmo objeto. Existem portanto duas maneiras de pensarmos a respeito de propriedades e estados e não somente a respeito de coisas. Posso conceber a cor do sangue como a cor do sangue ou como vermelho, ou ainda, estando em presença de um objeto vermelho, como esta cor. Perry irá chamar esta concepção de estratégia das duas vias (two ways strategy, no original em inglês).

Há, contudo, um obstáculo relevante para esta concepção aparentemente simples: Mary não está pensando sobre seus modos de pensar a respeito de sensações cromáticas, mas acerca das sensações em si mesmas, que são o conteúdo de seu novo conhecimento. Para que se possa identificar o conteúdo de seu novo conhecimento, duas coisas distintas parecem ser necessárias, e não apenas duas maneiras diferentes de se conceber uma coisa. Esta é, reconhece Perry, uma objeção considerável a two ways strategy, mas o autor afirma que ela não se sustenta. Na raiz desta objeção, bem como nos fundamentos do argumento do conhecimento e do argumento modal e, em última análise, também do argumento do zumbi, se encontra uma concepção equivocada quanto a estrutura e possibilidade do conhecimento, um equívoco que Perry irá denominar como subject matter fallacy. A referida falácia está em supor que o conteúdo de proposições ou crenças consiste nas condições de verdade que tais proposições ou crenças colocam nos objetos e propriedades a que se referem.

quarta-feira, fevereiro 01, 2012

Lied für Leni Riefenstahl
























Lied für Leni Riefenstahl

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Considerações adicionais a propósito das interconexões entre 'Inconsciente / Consciente'.

Alphonse van Worden - 1750 AD






















A incapacidade em distinguir entre o misterioso universo de brumas imprecisas do Inconsciente, por um lado, e a realidade meridiana que se descortina perante a Consciência, por outro; ou ainda, a enigmática crença de que o ‘reino de sombras’ do Inconsciente se substitui à esfera de ‘certezas’ da Consciência como única e verdadeira REALIDADE, isto é, duas das linhas de força centrais da cosmovisão expressionista, podem também ser encontradas, por exemplo, em obras cronologicamente anteriores e posteriores ao movimento, o que indica sua vigência como dimensão universal da condição humana; ou, pelo menos, sua presença como traço emblemático da Modernidade, isto é, da ascensão do Indivíduo como sujeito privilegiado tanto da vida social quanto da experiência espiritual, em detrimento da comunidade como lastro identitário.

Consideremos, por exemplo, a seguinte passagem, um diálogo entre os protagonistas Fridolin e Albertine, presente no belo desfecho de Breve Romance de Sonho (Traumnovelle - 1926), do austríaco Arthur Schnitzler, texto que poderia ser descrito, vale dizer, como uma espécie de entrechoque entre o pesadelo expressionista e as paisagens oníricas do surrealismo:



(..)“O que vamos fazer, Albertine?” Ela sorriu, e após breve hesitação, respondeu: “Agradecer ao destino, penso eu, por termos escapado incólumes de todas as aventuras – reais ou sonhadas.” 

“Tem certeza de que é o que você quer também?”, perguntou ele. “Estou tão certa quanto suspeito que a realidade de uma noite, ou mesmo de toda uma vida, não significa sua verdade mais íntima.” 

“Nem sonho algum é totalmente ‘sonho’”, suspirou, baixinho, Fridolin. 

Ela tomou a cabeça dele nas mãos, e aninhou-a com carinho sobre o peito. “Agora estamos os dois acordados”, disse, “e por muito tempo.” 

‘Para sempre’, ele quis acrescentar, mas antes ainda que houvesse pronunciado as palavras, ela colocou-lhe um dedo nos lábios e, como se o fizesse para si mesma, sussurrou: “Melhor não perguntar nada ao Futuro.”



Percebam, no trecho supracitado, a significativa presença da divisa que proclama “o expressionista já não vê, mas tem VISÕES”: por um lado, no transcurso da longa, insólita e, até certo ponto, ‘onírica’ aventura noturna de Fridolin (bem como, nos dias seguintes, em sua obsessão por solucionar a série de enigmas desencadeados por aquela noite inicial), um desejo avassalador pela traição amorosa funciona como elemento propulsor; não obstante o adultério jamais chega a se consumar. Por outro, no também longo e intrincado sonho de Albertine, o desejo de traição, ainda que como projeção na esfera abstrata do Inconsciente, é plenamente consumado.

Assim sendo, tanto os protagonistas, quanto nós, leitores, não ‘VEMOS’ qualquer ato de adultério ocorrendo como evento discernível no espaço-tempo; todavia, é inequívoca a ‘VISÃO’ que temos de tal ‘ato’ no universo simbólico do Inconsciente. Como afirmar taxativamente, destarte, que o propósito em tela (isto é, o da traição amorosa) não se realizou, apenas por não ter sido ‘visto’ como ocorrência real? Onde estaria, ao fim e ao cabo, a ‘zona de segurança’, a ‘linha de demarcação’ em nossa condição humana para verificarmos se algo, sobretudo na esfera do desejo e da vontade, ‘aconteceu’ ou não?

Eis, portanto, a grande indagação lançada pelo Expressionismo: Que seria, verdadeiramente, a Realidade Humana? Ou, em outras palavras, qual seria sua manifestação mais genuína? O nebuloso orbe de sonhos, pulsões e desígnios do Inconsciente, ou o plano ‘concreto’ da ação consciente?

Caberia aqui, creio eu, retomar o pensamento do francês Henri Bergson, mormente no que se refere às considerações do autor sobre a natureza constitutiva da vida psíquica. Em seu Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência (1889), Bergson sustenta a existência de "dois eus diferentes, sendo um como que a projeção do outro, a sua representação espacial, por assim dizer social; este é um eu superficial". Por outro lado, haveria também, na duração de nossa vida interior, o eu profundo, que experimentamos através de "nossos estados internos como seres vivos, incessantemente em vias de formação, como estados refratários à medida que se penetram reciprocamente e cuja sucessão na duração nada tem de comum com uma justaposição no espaço homogêneo". 

Para o filósofo francês, portanto, existiria uma modalidade de ‘eu’ que funciona como projeção representacional de uma dimensão mais profunda; este ‘eu superficial’, portanto, funciona como uma espécie de ‘máscara social’, vale dizer, de auto-representação que fazemos de nós mesmos, consciente e inconscientemente, com intuito de nos ‘apresentarmos’ ao mundo. Ora bem: em contraposição a este ‘eu’ que funciona como veículo de representação, como ‘personagem de nós mesmos’ para o mundo, haveria um ‘eu profundo’, que no fundo consiste no que há de incomunicável em nossa subjetividade, e cujo fluxo temporal, como Bergson assevera, não entra em contato com a esfera representacional do ‘eu superficial’, muito embora a alimente. Verifica-se, pois, a existência d’uma sutil dialética: o ‘eu superficial’ comunica ao mundo a ‘máscara’ que nos representa, mas sua, digamos assim, ‘fonte de alimentação’ é justamente o feixe de profundos estados subjetivos que não podem ser plenamente comunicáveis / decodificáveis.

Não obstante, malgrado estejamos a falar de duas instâncias distintas, isto não significa que nossa estrutura psíquica perca sua unidade fundamental, pois do contrário não poderíamos falar da presença d’uma consciência em contínuo estado de ação. Assim sendo, o que o autor denomina de ‘eu superficial’ ou, em outras palavras, nossa interface com a realidade exterior, funciona a guisa d’uma espécie de ‘carapaça psíquica’ que protege / encobre / oculta nosso ‘eu profundo' - que é exatamente, vale dizer, o que está em jogo durante a longa conversa entre Albertine e Fridolin.  Não se trata, pois, d’um processo de cisão, ou mesmo de afastamento radical, entre estas duas instâncias da vida psíquica, mas sim da superposição d’uma em relação à outra (o que, nos marcos da novela de Schnitzler, ocorre quando os protagonistas se interrogam mutuamente sobre a 'realidade' ou não de suas jornadas noturnas).

Ao atravessarmos a ‘camada protetora’ do eu superficial, descemos às profundezas abissais do que há de mais recôndito em nossa consciência, e assim acessamos o ‘eu profundo’, ainda que este, por seu turno, não possa fazer o caminho reverso e entrar em contato direto com o mundo exterior. Há também assinalar ser precisamente o ‘eu profundo’ a esfera de nossa estrutura psíquica que vivencia o processo de ‘duração’, ou seja, o manar inconsciente do tempo, não redutível ou quantificável em unidades formais de medida, nem tampouco passível de plena transcrição discursiva.

Em suma: o 'eu superficial', que toca o mundo exterior pela superfície, está em contato direto com as causas externas das sensações conservando delas algo de sua exterioridade e, ao olhar para si, divide a vida psíquica em partes distintas à imagem das coisas exteriores com as quais se relaciona. Este eu rígido cujos estados são bem definidos, presta-se de forma muito melhor às exigências da vida social e prática, pois tem o formato das coisas distintas e definidas com as quais tem que lidar para sobreviver. O 'eu profundo', por seu turno, move-se livre e avassaladoramente, longe da estabilidade e imobilidade da exterioridade material. Nele estão os sentimentos mais íntimos, as paixões mais profundas, os pensamentos mais próprios, a vontade mais livre, porque nele os estados mais profundos duram sem a influência estabilizadora do exterior; nele as sensações, enfim, percepções e emoções se organizam de forma autêntica, viva e original.



quarta-feira, janeiro 11, 2012

Requiem per Kim Jong-Il




















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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros 

O 'Problema da Indução' em Nelson Goodman

Alphonse van Worden - 1750 AD






















As tentativas tradicionais de solução do problema clássico da indução centravam-se na tentativa de justificar a relação de confirmação existente entre as premissas de uma indução e a sua conclusão. Todavia, há uma questão preliminar que não foi investigada nas supracitadas tentativas, a saber: que espécie de ‘mecanismo’, no entanto, seria capaz de justificar a validade intrínseca de uma relação de confirmação? A partir da perspectiva descortinada por essa importante questão, o filósofo e lógico norte-americano Nelson Goodman (1906-1998), em livros como Fact, Fiction and Forecast (1955), introduz uma nova formulação do problema da indução. Consideremos agora a seguinte indução: 

(1) Todas as esmeraldas observadas até hoje eram verdes; logo, todas as esmeraldas são verdes.


Esta indução parece-nos perfeitamente razoável. O problema clássico da indução consiste, como já nos foi possível observar, em determinar qual é o mecanismo de confirmação existente entre a premissa e a conclusão. O que se pretende, pois, é explicar como as instâncias positivas de uma generalização podem confirmar a generalização em questão. Observemos agora uma segunda indução:


(2) Todas as esmeraldas observadas até hoje eram verduis; logo, todas as esmeraldas são verduis.


Goodman define o predicado 'verdul' da seguinte maneira: "Um objeto é verdul se, e somente se, tiver sido descoberto até hoje e for verde, ou for descoberto no futuro e for azul." Dada esta definição de verdul, verificamos que se todas as esmeraldas forem verduis, as esmeraldas que descobrirmos amanhã serão azuis; do mesmo modo, podemos constatar que todas as esmeraldas observadas até hoje são, de fato, verduis, uma vez que todas as esmeraldas observadas até hoje são verdes. Contudo, se todas as esmeraldas que examinarmos forem efetivamente verdes, e não verduis, as esmeraldas que porventura encontrarmos amanhã serão verdes. Assim sendo, a conclusão a que chegamos é paradoxal: as premissas de ambas as induções são verdadeiras; a forma lógica das inferências é a mesma; e, no entanto, suas conclusões são inconsistentes - não podem ser ambas verdadeiras.

Nesse momento, estamos no cerne do novo enigma da indução proposto por Goodman. Em primeiro lugar, é preciso compreender o modo como o predicado verdul está definido. Um objeto verdul não é, deve-se salientar, um objeto que é hoje verde e que amanhã se torna azul. Um objeto que seja verdul, e que tenha sido observado pela primeira vez até o dia de hoje, é verde; mas se esse objeto for verde e só for observado pela primeira vez amanhã, não será verdul. Para que um objeto que seja observado pela primeira vez amanhã seja verdul, terá de ser azul. Poderíamos então especular: nossa conclusão paradoxal resulta do fato de termos usado um predicado tão insólito? A resposta para tal questão é sim e não: é óbvio que a conclusão paradoxal resulta do predicado verdul; mas em que medida, precisamente?

Não seria descabido afirmar, num primeiro momento, que o predicado verdul é logicamente complexo, ao passo que o predicado verde é logicamente simples, gerando dessa maneira o paradoxo em pauta. O que nos autoriza, contudo, a garantir que tal afirmação seja necessariamente verdadeira? Esta questão envolve, a nosso juízo, aspecto mais sutil do exemplo concebido por Goodman, razão pela qual iremos nela nos deter com mais vagar.

Imaginemos um predicado análogo ao predicado proposto por Nelson Goodman, o qual iremos denominar como 'azerde', e que será assim definido: "um objeto é azerde se, e somente se, tiver sido descoberto até hoje e for azul, ou for descoberto no futuro e for verde."; a partir da estrutura de formulação dos predicados verdul e azerde, consideremos agora a seguinte definição do predicado verde: "um objeto é verde se, e somente se, tiver sido descoberto até hoje e for verdul, ou for descoberto no futuro e for azerde."

Do esquema que acima apresentamos é possível extrair uma constatação precípua: podemos usar os predicados verde e azul, em conjunto com um parâmetro temporal, para definir verdul; azul, verde e um parâmetro temporal para definir azerde; e, finalmente, verdul, azerde e um parâmetro temporal para definir verde. Nesta perspectiva, pois, os predicados em questão são interdefiníveis. A interdefinibilidade é uma propriedade habitual, por exemplo, nos elementos da lógica simbólica. Desse modo, os quantificadores universal e existencial são interdefiníveis, assim como os operadores modais de necessidade e de possibilidade. Dado o modo, portanto, como os quantificadores podem ser definidos nos termos uns dos outros e de sua negação, não poderíamos afirmar que o quantificador universal é simples e o existencial não; nem vice-versa. O mesmo ocorre com os operadores modais, e ainda com os predicados do exemplo de Goodman. O fato de verdul ser definido em termos de verde, azul, negação e parâmetro temporal nos parece ser o motivo pelo qual obtivemos um paradoxo; no entanto, também podemos definir verde em termos de azerde, verdul, negação e parâmetro temporal. Verde e verdul são ambos, pois, definidos em termos que envolvem parâmetros temporais e outras cores; no caso do predicado verde, o resultado da indução é razoável. Logo, o parâmetro temporal e a complexidade da definição de verdul não podem ser apontados como causas do resultado indesejável na nossa indução.

O que, pois, Nelson Goodman pretende nos demonstrar? Que o problema da indução talvez seja mais complexo do que poderíamos imaginar, apresentando elementos não previstos na formulação original de David Hume. Ainda que lográssemos explicar a relação de confirmação existente entre as premissas das induções e suas conclusões, não conseguiríamos solucionar o problema da indução. Será preciso explicar, nos diz Goodman, por que razão alguns predicados servem para fazer induções, e outros não; e tampouco, deve-se salientar, a explicação pode ser lógica, pois os predicados verdul e verde são logicamente interdefiníveis. A Teoria da Probabilidade certamente pode nos esclarecer como se processa a relação de confirmação entre as premissas e as conclusões de uma indução; todavia, sendo verdadeiras as premissas de ambas as inferências (a verde e a verdul), e uma vez que não há diferença lógica entre os predicados, nenhuma explicação em termos de teoria da confirmação será capaz de indicar uma das inferências como má e a outra como boa.

De que modo, por conseguinte, podemos então explicar a diferença entre as duas inferências? Só o conseguiremos, segundo Goodman, recorrendo ao conteúdo dos predicados, à sua semântica: o predicado verdul que não é projetável, e por esse motivo não podemos fazer inferências corretas a partir dele. Para ser projetável, um predicado precisa ter certas características, e um aspecto relevante do trabalho de Goodman consiste exatamente na tentativa de elaborar uma tipologia convincente dessas características. O filósofo norte-americano lançou mão de uma hipótese extrema em suas investigações, mas é possível, vale dizer, apresentar o novo enigma da indução através de exemplos mais banais. Observamos, a título de ilustração, as seguintes inferências:


(3) Todos os peixes observados até hoje eram animais aquáticos; logo, todos os peixes são animais aquáticos.

(4) Todos os peixes observados até hoje nasceram antes de 12 janeiro de 2012; logo, todos os peixes nascem antes 12 de janeiro de 2012. 


Também neste caso é forçoso constatar que, apesar de a estrutura lógica das inferências ser a mesma, o predicado usado na segunda não é projetável. A tese de Goodman por vezes pode nos parecer extravagante, talvez pelo fato de sermos capazes, em muitas ocasiões, de fazer induções corretas, escolhendo inconscientemente os predicados adequados. Todavia, ao investigarmos com mais atenção as idéias do filósofo norte-americano, fatalmente perceberemos a miríade de alternativas que, sem disso nos darmos conta, descartamos como improcedentes. Usando um exemplo análogo ao de Goodman: todas as palavras que escrevi até agora foram escritas antes deste exato momento; no entanto, seria improcedente concluir que todas as palavras por mim escritas serão escritas antes deste exato momento.

David Hume tentou explicar, portanto, como as regularidades do passado poderiam justificar nossas expectativas e previsões relativas ao futuro; mas não atentou para o fato de que nem todas as regularidades são capazes de sustentar boas previsões. E esta é, numa palavra, a diferença entre o antigo e o novo enigma da indução.           

quinta-feira, dezembro 01, 2011

Ad Majorem Dei Gloriam II - Arnaud Amalric et Godefroy de Bouillon


Na breve nota que se segue, excelsos irmãos d'armas, gostaria de prestar um tributo a dois miríficos paladinos da Igreja.

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Arnaud Amalric (? - 1225)


















Abade de Cîteaux e Legado Papal durante a cruzada contra os albingenses, foi sem dúvida um dos grandes próceres da Cristandade. Em 1209, por ocasião do assalto final à cidade de Béziers, ao ser inquirido pelo comandante das tropas da Igreja sobre como distinguir entre hereges e inocentes, o venerável monge cisterciense deu-lhe a seguinte resposta:


Caedite eos. Novit enim Dominus qui sunt eius.
(Matai-os todos, Deus reconhecerá os seus)



*


Godefroy de Bouillon (1058 - 1100)

























Falemos agora d'um ínclito entre ínclitos, o ático Godefroy de Bouillon, Senhor do burgo de Bouillon e Duque da Baixa Lorena. Descendente de Charlemagne, Godefroy de Bouillon foi o principal comandante militar das armas cristãs na Primeira Cruzada. Sua liderança, coragem, abnegação, inteligência e, sobretudo, sua imorredoira e indomável fé na palavra do Altíssimo, foram elementos decisivos em batalhas de suma importância, tais como as de Dorylaeum, Arsuf, Nicaea, Ascalon, Antiochia, etc. Cito, por fim, um episódio que demonstra a supina humildade de que só os grandes próceres são capazes: ao ser nomeado Rei de Jerusalém, Bouillon declinou da honraria, dizendo:



O único Rei de Jerusalém é Jesus Cristo. Sou apenas um defensor do Santo Sepulcro.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte – Deserto dos Tártaros

A propósito do caráter não-científico do marxismo - parte VII (final)

Alphonse van Worden - 1750 AD
















Reparem os senhores que, no tocante à problemática abordada no encerramento da VI parte de nosso ensaio, o marxista ortodoxo nada pode fazer senão perseverar num círculo vicioso. Consoante são obrigados a admitir, sob pena de recair em total insensatez, o fenômeno social que denominamos como 'revolução' inexoravelmente pode ou não ocorrer; tampouco há, é mister também reconhecer, qualquer instrumental científico disponível capaz de determinar com exatidão seu comportamento, carência que se deve a uma razão muito simples: é impossível prever com rigor científico qual será o procedimento de um fenômeno social no futuro, uma vez que tais eventos estão sujeitos ao caudal fortuito, contingente, e adventício da ação humana.

 Destarte, não seria descabido afirmar que o marxismo pretende responder de forma não somente satisfatória, mas definitiva, a indagações tão metafisicamente vagas, inefáveis e rarefeitas como as abordadas ao longo deste escrito; ora, seria necessário então informar aos marxistas que apenas o pensamento religioso é passível de formular respostas cabais (escusado dizer que inverificáveis) para tais questões.

O conhecimento científico, por seu turno, sem dúvida está apto para identificar a causa e a origem de um vasto número de fenômenos, mas não é capaz de determinar com precisão ocorrências e desdobramentos futuros, uma vez que generalizações a partir de inferências indutivas não possuem consistência lógico-demonstrativa absoluta - o célebre e complexo 'problema da indução'. Vejamos aqui um exemplo clássico de tal problema, apresentado pelo filósofo escocês David Hume:


O Sol nasceu todos os dias no passado 
O Sol continua nascendo no presente 
Se o Sol nasceu todos os dias no passado e continua nascendo hoje, 
Logo, nascerá também amanhã 


É do conhecimento de todos que o Sol nasce todos os dias desde o princípio da História, mas isto não nos fornece nenhuma prova cabal de que irá ou não nascer amanhã. É possível, por exemplo, imaginarmos o advento de uma divindade que impeça o nascimento do Sol amanhã. Hume argumenta que não embora não tenhamos qualquer evidência que indique o aparecimento de semelhante divindade, tampouco possuímos uma evidência contrária. Assim sendo, não podemos afirmar com certeza se o Sol nascerá ou não amanhã. Uma vez que inferências indutivas não podem ser assentadas sobre critérios de verdade como os que asseguram a validade das inferências dedutivas, o que fazer? Talvez pudéssemos concluir, num primeiro momento, que a indução deve ser abandonada enquanto processo de raciocínio legítimo, e que devemos nos limitar aos procedimentos dedutivos. Todavia, considerando-se que o raciocínio dedutivo não nos permite fazer previsões sobre ocorrências futuras, na medida em que suas assertivas derivam de generalizações já estabelecidas, como seria possível o conhecimento científico, que se constitui precisamente através de hipóteses formuladas a partir de observações empíricas no passado e no presente? Sem o recurso aos processos indutivos de raciocínio, a constituição do conhecimento científico se tornaria, como podemos constatar, uma tarefa impossível.

É patente, pois, a conclusão de que o Homem não pode abdicar do uso de métodos indutivos em seu processo cognitivo. Entretanto, de que modo podemos fundamentar, justificar as crenças obtidas por intermédio da indução, uma vez que se baseiam em hipóteses sobre eventos ainda não verificados? Diversas respostas para tal dilema foram postuladas ao longo do tempo, algumas sobremaneira engenhosas, nenhuma delas definitiva, dentre as quais podemos destacar as seguintes: a solução em termos de probabilidade estatística da indução, proposta pelo britânico Bertrand Russell; a probabilidade da inferência indutiva em termos de credibilidade racional, lavrada pelo alemão Carl Gustav Hempel; a justificação pragmática do indutivismo científico, a cargo do também alemão Hans Reichenbach; a pertinência dos processos indutivos de raciocínio em termos de predicados projetáveis ou não projetáveis, avançada pelo norte-americano Nelson Goodman.

Pois bem, meus caríssimos confrades: como exigir do pensamento social respostas para as questões esboçadas por gerações de autores marxistas, se nem mesmo a racionalidade científica, sobremaneira mais rigorosa e exata, pode solucioná-las por completo? Concluo asseverando que o pensamento social não pode e muito menos precisa respondê-las; deixemo-lo, pois, desempenhar a contento sua importante e cardinal tarefa: formular estratégias pragmáticas, necessária e inevitavelmente transitórias, para a satisfação, também provisória, de demanda sociais igualmente transitivas e cambiantes. Insomma: cabe somente a nós, por conseguinte, escolher a melhor trilha a seguir: podemos (conforme o próprio Marx nos ensinou, diga-se de passagem) optar pelo caminho da transformação política da realidade social, ou então, emaranhando-nos em intermináveis e estéreis circunlóquios conceituais a propósito de teorizações pseudocientíficos, marcar passo e nem sequer chegar à linha de partida.

Por fim, gostaria de fazer uma breve consideração a propósito dos extremos de insanidade a que o marxismo pode chegar. Como todos sabemos, critérios epistemológicos e parâmetros de racionalidade científica não são burgueses, proletários, aristocráticos ou camponeses, mas sim categorias UNIVERSAIS, válidos por definição ou comprovação empírica. Muito bem: durante o período mais 'ortodoxo' do regime stalinista, falava-se na URSS, com toda a seriedade, na necessidade de se criar uma 'ciência proletária', em contraposição à 'ciência burguesa'. Não é necessário, creio, tecer maiores comentários: qualquer um que tenha ao menos uma vaga nação das hediondas teratologias conceituais a que chegaram os delírios pseudocientíficos de um Ivan Vladimirovich Michurin, de um Trofim Denisovich Lysenko ou de um Abram Moiseyevich Deborin, sabe qual é o real significado d'uma 'ciência proletária'...

terça-feira, novembro 01, 2011

A propósito dos gibelinos e do advento da Reforma protestante.


























*O propósito desta breve nota é demonstrar, em linhas gerais, que a perspectiva advogada pelo movimento gibelino, caso prevalecente, teria salvo a Cristandade do flagelo que a Reforma representou; ademais, trata-se d'uma espécie de proêmio para um escrito de maior fôlego a respeito do célebre tratado De Monarchia (1313), onde o insigne poeta florentino Dante Alighieri sintetiza os aspectos fulcrais do catolicismo gibelino.

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 Como de sobejo o sabeis, excelsos irmãos d'armas, a degeneração do princípio de potestas em plenitude potestatis foi justamente o foco da tensão progressiva que se desenvolveu, a partir do século XI, entre a Igreja e o Sacro Império (com a 'Questão das Investiduras'), culminando no século XIV, durante o papado de Avignon, com o assalto capitaneado por João XXII e Benedito XII contra os legítimos direitos do Imperador e dos príncipes-eleitores.

Os argumentos favoráveis ao partido dos 'Imperiais', longe de se circunscreverem ao momento histórico em que a supracitada controvérsia aflorou, remontam a autores da escola patrística. Consoante estabelece Eusébio de Cesaréia (o panegirista de Constantino o Grande), por exemplo, a monarquia, enquanto forma política, corresponderia a uma expressão secular do monoteísmo religioso, conclusão também abonada por um teólogo da estatura de Santo Agostinho e, mais tarde, outorgada por Dante (como veremos n'outra ocasião); acrescente-se , ainda, conforme salienta o bardo florentino, que a noção d'um Império Universal corresponde à própria estrutura da Realidade, qual seja, uma esfera harmônica e ordenada sob o primado do Criador. Ockham e Marsiglio da Padova, por seu turno, já à época da heresia avignonense, contestaram o princípio da Plenitudo Potestatis, consoante o qual o Sumo Pontífice detinha, de forma unilateral, o poder de conferir ou não legitimidade a qualquer governante da Cristandade. Destarte, ambos sustentavam a tese de que a autoridade do Papa é limitada pela Lei de Deus, pelo direito natural e pela liberdade dos liderados, posição que está lastreada nos Evangelhos; propugnavam, outrossim, a autonomia, no que concerne às questões temporais, do Imperador e demais governantes em relação à Igreja.

Em seu Defensor Pacis (1324), o teológo padovano assevera, inclusive, que o Imperador é o líder supremo da Cristandade. Para alicerçar tal ponto de vista, recorreu, entre outros argumentos, à tradição da 'unção real': o soberano, ao ser ungido, passava a ser depositário d'uma missão tanta política quanto religiosa, cabendo-lhe, inclusive, zelar pela retidão espiritual e moral da Societas Christiana.

Assim sendo, a perspectiva gibelina, longe de enfraquecer, como muitos outrora alegaram ,e 'inda hoje alegam, o poder da Igreja, era a única possibilidade CONCRETA de fornecer-lhe um alicerce político poderoso e estável. Não me parece irrazoável especular, por exemplo, que, justo ao contrário do que ocorreu, um processo de convergência entre a Igreja e o Império nos séculos XIV e XV teria anulado as circunstâncias que viabilizaram a Reforma protestante. Infelizmente, contudo, o Papado optou pelo caminho oposto: privilegiar França e Espanha, onde a presença da Igreja como força política era considerável, em detrimento do Sacro Império e da Inglaterra, onde a Igreja vinha perdendo poder e prestígio pelo menos desde o século XII.

 A corrupção desavergonhada, desenfreada do período avignonense, mormente nos pontificados de João XXII e Bento XII, com gravíssimos episódios de simonia, venda de indulgências, etc., foi, sem sombra de dúvida, o grande pretexto, o 'ovo da serpente' que permitiu a homens como Martinho Lutero, Calvino, Zwingli, etc. não só explorar insidiosamente a indignação dos simples, mas, sobretudo, capitalizar a legítima insatisfação dos príncipes-eleitores e outros potentados do Império em relação aos desmandos do Papado.

Católicos não raro bem intencionados, malgrado ingênuos, soem afirmar que Lutero foi sobremaneira influenciado pelas ideias políticas de Marsiglio da Padova e Ockham. Ora, ele apenas fez o que qualquer conspirador astuto faria em seu lugar: distorceu deliberadamente as teses dos teólogos imperiais, que denunciavam, de modo pertinente e corajoso, o crescente processo de degeneração do 'alto comando' da Igreja, para delas extrair os mais pérfidos sofismas.

E acrescento: o retorno do Papado a Roma não logrou reverter o processo de degradação da Cúria e do Colégio dos Cardeais. Um século após homens como os supracitados Ockham e Marsiglio da Padova, e também Michele di Cesena e outros notáveis franciscanos, erguerem suas vozes contra as terríveis iniquidades perpetradas em nome da Igreja, a ira santa de um frade dominicano, Girolamo Savonarola, fez-se ouvir em Florença.

As prédicas do bravo religioso ferraresi são textos impressionantes, não só em virtude da intensidade flamejante de sua fé, mas também pela beleza rutilante de suas imagens literárias e, claro está, pelo ousado caráter de suas idéias políticas. Savonarola foi um paladino pela libertação do povo contra a tirania de prelados e príncipes corruptos. sem no entanto indulgir, tal como a tragicamente equivocada 'Teologia da Libertação', por exemplo, em qualquer forma de relaxamento moral e lassidão dos costumes, pois propugnava o mais rigoroso ascetismo como norma de conduta pessoal e social. O excelso dominicano advogava uma maior participação do povo nas questões de Estado, por intermédio do "Grande Conselho", bem como a adoção d'um regime constitucional de caráter republicano, tudo isto sem no entanto abdicar, o que é de fundamental importância, da crença de que qualquer forma de poder temporal tão somente pode ser definida como LEGÍTIMA caso desfrute de lastro teológico.

Seu Trattato circa il Reggimento di Firenze (publicado somente em 1848) é, se calhar, o que de mais importante escreveu em termos de reflexão política. É uma obra de leitura sumamente interessante, pois transfigura a perspectiva não d'uma teoria abstrata, mas d'um programa político de ação concreta sob a luz da Teologia. Não se trata, é mister salientar, d'um pensamento a predicar a mera instrumentalização política da religião para fins mundanos, mas sim d'uma reflexão que emerge do próprio imo da consciência religiosa ou, melhor dizendo, d'um impulso de transformação social que nasce não da razão política, mas dos postulados transcendentes da fé, convertendo a religião em agir político, e não o contrário.

Em 1498, Savonarola foi queimado vivo, por ordem do Papa Alexandre VI, um dos pontífices mais depravados, sob todos os aspectos, da História da Igreja; 19 anos mais tarde, Lutero afixava suas célebres 95 teses em Wittenberg.

Os factos falam por si sós, meus diletos confrades: houvesse triunfado a perspectiva gibelina, a reforma protestante jamais teria ocorrido ou, na PIOR das hipóteses, teria sido esmagada no nascedouro.

























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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

A propósito do caráter não-científico do marxismo - parte VI


Alphonse van Worden - 1750 AD







O problema radica, mais uma vez salientamos, na abstrusa pertinácia em enquadrar o pensamento social  nas exigências da racionalidade científica e aos critérios de cientificidade, justamente porque tais modalidades de pensamento não envolvem tautologias verdadeiras por definição e nem tampouco enunciados empiricamente verificáveis, pela série de motivos que já enumerei ao longo deste ensaio. Tenho, por conseguinte, plena certeza, na contramão do que afirmam certos marxistas, de que o pensamento social pode e deve evoluir muito bem fora dos quadrantes da razão científica, uma vez que sua dinâmica constitutiva dela prescinde.

Não pretendo, pois, que as asserções do pensamento social tenham validade atemporal e universal, estejam submetidas aos mesmos parâmetros que regem tautologias verdadeiras por definição (2+2 = 4) ou enunciados sintéticos empiricamente (a molécula da água é formada por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio). Tenciono, na verdade, ver o pensamento social livre de tais amarras epistemológicas, voltado exclusivamente para aquele que é seu precípuo mister: atuar como ‘guia para a ação’, ou seja, como saber capaz de interpretar corretamente os sinais emitidos pelas cambiantes conjunturas sociais. Para tanto, não é necessário estar sob o primado da razão lógico-demonstrativa, mas também somente a capacidade de criar instrumentos pragmáticos eficazes para a ação humana. Devemos ter em mente que a finalidade do pensamento social não é formular uma sistematização analítica da realidade empírica, mas uma dinâmica transformativa do universo social.

Insisto: qual a necessidade, para efeito de sua efetiva aplicação como instrumento de luta política, de o marxismo ser considerado uma teoria científica? A resposta parta esta questão nos remete, a meu juízo, para outra indagação: por que atribuir ao estatuto científico primazia em termos de instância de legitimação para os saberes humanos? Examinemos este ponto com mais vagar: dentre todos os sistemas conceituais elaborados pela humanidade, qual logrou conquistar a maior legitimidade social, política e histórica ao longo do tempo? O pensamento religioso, isto é, precisamente a modalidade de saber mais refratária aos ditames da racionalidade científica! E como atua o pensamento teológico? Como modelo para a conduta humana, tanto em termos individuais quanto sociais. 

É, portanto, nesse horizonte que o marxismo deve também se inserir: como guia para ação social humana, como instrumento político-ideológico para a ação revolucionária. Para tanto, não se faz necessária a gestação de uma hermenêutica científica da realidade empírica, mas a elaboração de estratégias pragmáticas capazes de conquistar corações e mentes para um determinado objetivo político. 

 É mister admitir que há, de facto, um grande fetichismo no que tange à racionalidade científica como nec plus ultra definitivo da cultura universal; com efeito, não podemos negar que a noção de que a ciência fala a 'linguagem da verdade' é bastante difundida. Todavia, volto a frisar: em seu caráter precípuo de guia político para ação revolucionária, o marxismo prescinde por completo de qualquer pretensão de legitimidade científica: revoluções, enquanto processos sociais, são um fenômeno messiânico e largamente irracionalista, que não pode ser sintetizado/descrito/analisado a partir de categorias racionais.

Por outro, não se pode extrair de minhas considerações a assertiva de que os pressupostos e concepções do pensamento social seriam, por assim dizer, meros 'palpites'. Consoante a perspectiva que advogo, tais saberes, quando adequadamente empregues, são capazes de interpretar com eficácia os indícios emitidos pelas diversas formações e instâncias sociais, gerando, desta forma, dispositivos pragmáticos de orientação para a ação humana. Para desempenhar esta tarefa, ou seja, para configurar-se como dinâmica transformativa do universo social, o pensamento marxista não precisa de modo algum satisfazer a critérios de cientificidade, mas tão somente funcionar como uma espécie de sismógrafo da História.  

Prossigamos, contudo, com as objeções que um marxista eventualmente poderia  apresentar. Digamos que nosso interlocutor imaginário afirme o seguinte: 'um objeto único - a sociedade - e em constante mutação não invalida um arcabouço científico se este assume a variabilidade da dinâmica interna do objeto. No final o objeto é sempre o mesmo, quer tratemos do século XIX, quer abordemos a época atual'.

Peço a atenção dos senhores para as considerações acima esboçadas. O que seria um 'objeto único'? Um ente unívoco, que não envolve contradições internas ou ambigüidade conceitual em sua formulação, que é sempre idêntico a si mesmo, pois o que foi ontem é o que hoje é e também o que amanhã será. Um objeto, portanto, como o oxigênio, sem dúvida preenche todos esses requisitos: é únivoco, não envolve ambigüidade em sua definição e é sempre idêntico a si mesmo no espaço-tempo. 

Examinemos agora o termo 'sociedade'. À partida há que assinalar que, ao contrário de 'oxigênio', não estamos diante de um objeto dado, mas sim de um objeto construído, isto é, d'uma generalização indutiva elaborada a partir da observação sobre agrupamentos de indivíduos que habitam um determinado espaço geográfico num determinado lapso temporal. Trata-se, aliás, como podemos verificar, muito mais de um conceito que um objeto; admitamos todavia, somente para efeito da discussão em tela, que 'sociedade' é um objeto, para então sujeitá-lo ao mesmo escrutínio enfrentado pelo objeto 'oxigênio'. É 'sociedade', assim como 'oxigênio, uma entidade inequívoca?  À partida já podemos constatar que a definição de nosso objeto envolve conceitos polissêmicos como 'grupo' e 'habitar', para os quais dificilmente poderíamos oferecer determinações inequívocas. É 'sociedade' um objeto sempre idêntico a si mesmo? Talvez sua definição o seja, mas não o que ela designa: a sociedade dos zulus, por exemplo, é distinta da dos esquimós, assim como a sociedade londrina do século XVIII é distinta da do século XXI. Seria destarte mais correto falarmos não em 'sociedade' mas em 'sociedades', uma vez que são múltiplas no espaço e no tempo as entidades que tal termo pode significar.  O mesmo não ocorre, contudo, com o objeto 'oxigênio': 'oxigênio' foi, é e sempre será 'oxigênio', seja entre zulus, esquimós, londrinos do século XVIII ou do século XXI. Retornando às exigências da razão lógico-demonstrativa, podemos com certeza afirmar como o objeto 'oxigênio' irá comportar-se dadas certas condições pré-determinadas; em outras palavras, podemos gerar conhecimento científico a partir da observação de 'oxigênio'. O mesmo procedimento, entretanto, não pode ser dispensado ao objeto construído 'sociedade', cuja índole polissêmica e metamórfica nos faculta tão somente a formulação de considerações provisórias e assistemáticas. O conhecimento científico, portanto, não trabalha com objetos variáveis e equívocos, mas tão somente com aqueles passíveis de definição únivoca e universalmente válida em qualquer contexto espaço-temporal. 





sábado, outubro 01, 2011

Os argumentos neo-dualistas na perspectiva 'fisicalista' de John Perry - I

Alphonse van Worden - 1750 AD
































No primeiro capítulo de seu livro Knowledge, Possibility and Consciousness (2001), John Perry nos diz que sua estratégia geral no decorrer da obra será a de defender uma versão do fisicalismo que adote as visões do senso comum sobre a realidade e a importância do caráter subjetivo da experiência. O autor denomina sua versão da concepção fisicalista como fisicalismo antecedente. A tese central de Perry procura evidenciar que os argumentos neodualistas fatalmente impingem ao fisicalismo doutrinas de que ele prescinde.

 Logo na abertura do livro Perry afirma que uma maneira de explicar o objetivo de seu livro seria dizer que ele constitui uma tentativa de demonstrar a coerência filosófica de uma passagem do filme Fantastic Voyage (Richard Fleischer, 1966). Na passagem supracitada os personagens estão atravessando, em seu microscópico submarino, o cérebro do cientista que devem salvar. Há uma espécie de vapor azul que surge em certa parte do cérebro, atraindo a atenção da equipe de resgate. Estarrecido Arthur Kennedy diz para Rachel Welch: “Veja, somos os primeiros a verdadeiramente ver pensamentos humanos”.

O episódio apresentado no filme de Fleischer assume ser concebível a possibilidade de que alguém observe, usando seus sentidos físicos, pensamentos ou experiências de outrem. Para Perry, essa é uma constatação óbvia, uma vez que acredita que nossos pensamentos e experiências constituem eventos em nossos cérebros. No entanto, como salienta o autor, a tradição filosófica consideraria como absurda semelhante concepção. Leibniz nos convida a imaginar um cérebro do tamanho de um moinho, que poderíamos percorrer e examinar tudo que estivesse acontecendo. De acordo com o filósofo alemão não veríamos nada semelhante a um pensamento ou experiência. O filósofo inglês A. C. Ewing, endossando o ponto de vista de Leibniz, afirma que conhecemos através da experiência o que significa sentir uma dor, as reações fisiológicas a essa dor, sabendo que essas duas instâncias são totalmente diferentes. As características mentais e fisiológicas de um estado cerebral podem pertencer a uma mesma substância, mas são diferentes em termos qualitativos, no sentido em que são dois conjuntos de qualidades distintos.

No entender de Perry, Leibniz e Ewing enfatizam o fato de que estar tendo uma experiência é inteiramente diferente daquilo que se supõe ser a percepção do que poderia ser um estado ou processo cerebral; ambos concluiriam que experiências e pensamentos não são estados ou processos cerebrais. Perry define essa concepção da seguinte maneira: dizer que isto, a sensação que estou percebendo quando, por assim dizer, olho para dentro, é isto, a coisa sobre a qual estou lendo, parece apenas um disparate. O absurdo derivará de quão diferente são as propriedades que notamos – as características subjetivas de nossa experiência - daquelas que imaginamos ver ou ler sobre. Esse argumento será denominado por Perry como argumento do lapso da experiência (experience gap argument, no original em em inglês).

O argumento do lapso da experiência poderia ser inicialmente rejeitado, nos diz Perry, pelo seguinte motivo: se tudo que acontece no universo é físico, então minha consciência deve ser física, e esta sensação deve ser física, a despeito de quão estranho isso pareça. No entanto, como o próprio autor reconhece, o supracitado argumento estabelece alguns problemas filosóficos que devem ser analisados mais acuradamente.

 Em primeiro lugar, deve ser destacado o problema apresentado pela relação de identidade. Identidade, tal como Perry a define, é simplesmente a relação que um objeto tem consigo mesmo e com nenhum outro. É, pois, a relação que se estabelece entre a e b quando existe apenas uma coisa que é simultaneamente a e b; se a e b são idênticos, devem então compartilhar suas propriedades, pois há apenas uma coisa cujas propriedades estão em questão.

À partida, tal definição parece favorecer o argumento do lapso da experiência. De facto, as propriedades que encontramos num estado do qual estamos subjetivamente conscientes, a sensação de dor, parecem bastante diferentes das propriedades associadas a qualquer estado cerebral identificado fisicamente. Um estado cerebral irá, por exemplo, envolver certas partes do cérebro, enquanto minha sensação de dor parece estar localizada em minha mão na medida em que possui uma localização corporal. No entanto, nos diz Perry, se atentarmos mais uma vez para a questão suscitada pelo problema da identidade, veremos que as coisas não são tão simples quanto pareciam à primeira vista. Não é suficiente demonstrar que as que as propriedades que descobrimos sobre a, considerado de uma maneira, são distintas das propriedades que associamos a b, considerado de uma outra forma. É necessário que demonstremos claramente que a não possui uma propriedade existente em b. escreve o autor: suponhamos que Arthur Kennedy e Raquel Welch estão em meu cérebro tendo sensações visuais sobre as diversas coisas que nele estão ocorrendo. Eu tenho uma sensação de dor. A questão não é saber se suas sensações visuais e minha sensação de dor são sensações de uma mesma coisa; é, ao contrário, saber se minha sensação em si mesma, a dor, é o estado, propriedade ou processo sobre o qual suas sensações visuais se referem. A dor que tenho é o estado cerebral que eles observam? Um mero apelo à lógica da identidade e à intuição de Ewing não são suficientes para provar o dualismo de propriedades, isto é, que características fisiológicas e mentais podem hipoteticamente pertencer a uma mesma substância, mas diferem em qualidades; nem tampouco, assevera Perry, um apelo à possibilidade de identidades informativas e até mesmo surpreendentes, porém verdadeiras, será suficiente para refuta-lo. A questão permanece: podemos realmente conceber a idéia de que esta sensação, este aspecto do que ocorre dentro de mim, seja ela uma dor de dente, uma dor de cabeça, o perfume de uma gardênia ou o sabor de um nabo, é um aspecto de meu cérebro que alguém, uma Raquel Welch em miniatura, poderia, a princípio, ver?

Perry afirma que tal concepção é plausível. A partir deste o ponto, o cerne de sua argumentação será dirigido contra três argumentos de filosóficos analíticos contemporâneos, que Perry encara como desenvolvimentos elaborados e variações do argumento do lapso da experiência: o argumento do zumbi, o argumento do conhecimento e o argumento modal. A posição sustentada por tais argumentos é denominada pelo autor como neo-dualismo.

domingo, setembro 11, 2011

Longa vida à Morte!!!


Alphonse van Worden - 1750 AD


Cá celebro e exalto homenagear os 19 ínclitos mujahideen  que, há 10 anos atrás, magnificamente golpearam o GRANDE SATÃ no dia refulgente dia 11/09/2001!!!

Ei-los aqui, distribuídos respectivamente consoante as aeronaves que tomaram de assalto por ocasião da supracitada operação de jihad:


AMERICAN AIRLINES #11 BOEING 767

1)Satam M.A. Al Suqami - Possible Saudi national
-Dates of birth used: June 28, 1976; Last known address: United Arab Emirates

2)Waleed M. Alshehri - Possible Saudi national
-Dates of birth used: September 13, 1974; January 1, 1976; March 3, 1976; July 8, 1977; December 20, 1978; May 11, 1979; November 5, 1979
-Possible residence(s): Hollywood, Florida; Orlando, Florida; Daytona Beach, Florida
-Believed to be a pilot

3)Wail M. Alshehri
-Date of birth used: September 1, 1968
-Possible residence(s): Hollywood, Florida; Newton, Massachusetts
-Believed to be a pilot

4)Mohamed Atta - Possible Egyptian national
-Date of birth used: September 1, 1968
-Possible residence(s): Hollywood, Florida; Coral Springs, Florida; Hamburg, Germany
-Believed to be a pilot
-Alias: Mehan Atta; Mohammad El Amir; Muhammad Atta; Mohamed El Sayed; Mohamed Elsayed; Muhammad Muhammad Al Amir Awag Al Sayyid Atta; Muhammad Muhammad Al-Amir Awad Al Sayad

5)Abdulaziz Alomari - Possible Saudi national
-Dates of birth used: December 24, 1972 and May 28, 1979
-Possible residence(s): Hollywood, Florida
-Believed to be a pilot


AMERICAN AIRLINES #77 BOEING 757

1)Khalid Almihdhar - Possible Saudi national
-Possible resident of San Diego, California, and New York
-Alias: Sannan Al-Makki; Khalid Bin Muhammad; 'Addallah Al-Mihdhar; Khalid Mohammad Al-Saqaf

2)Majed Moqed - Possible Saudi national
-Alias: Majed M.GH Moqed; Majed Moqed, Majed Mashaan Moqed

3)Nawaf Alhazmi - Possible Saudi national
-Possible resident of Fort Lee, New Jersey; Wayne, New Jersey; San Diego, California
-Alias: Nawaf Al-Hazmi; Nawaf Al Hazmi; Nawaf M.S. Al Hazmi

4)Salem Alhazmi - Possible Saudi national
-Possible resident of Fort Lee, New Jersey; Wayne, New Jersey

5)Hani Hanjour -
-Possible resident of Phoenix, Arizona, and San Diego, California
-Alias: Hani Saleh Hanjour; Hani Saleh; Hani Hanjour, Hani Saleh H. Hanjour


UNITED AIRLINES #93 BOEING 757

1)Saeed Alghamdi
-Possible residence: Delray Beach, Florida
-Alias: Abdul Rahman Saed Alghamdi; Ali S Alghamdi; Al- Gamdi; Saad M.S. Al Ghamdi; Sadda Al Ghamdi; Saheed Al-Ghamdi; Seed Al Ghamdi

2)Ahmed Ibrahim A. Al Haznawi - Possible Saudi national
-Date of birth used: October 11, 1980
-Possible residence: Delray Beach, Florida
-Alias: Ahmed Alhaznawi

3)Ahmed Alnami
-Possible residence: Delray Beach, Florida
-Alias: Ali Ahmed Alnami; Ahmed A. Al-Nami; Ahmed Al- Nawi

4)Ziad Samir Jarrah
-Believed to be a pilot
-Alias: Zaid Jarrahi; Zaid Samr Jarrah; Ziad S. Jarrah; Ziad Jarrah Jarrat, Ziad Samir Jarrahi

UNITED AIRLINES #175 BOEING 767


1)Marwan Al-Shehhi
-Date of birth used: May 9, 1978
-Possible residence(s): Hollywood, Florida
-Believed to be a pilot
-Alias: Marwan Yusif Muhammad Rashid Al-Shehi; Marwan Yusif Muhammad Rashid Lakrab Al-Shihhi; Abu Abdullah

2)Fayez Rashid Ahmed Hassan Al Qadi Banihammad
-Possible residence(s): Delray Beach, Florida
-Alias: Fayez Ahmad; Banihammad Fayez Abu Dhabi Banihammad; Fayez Rashid Ahmed; Banihammad Fayez; Rasid Ahmed Hassen Alqadi; Abu Dhabi Banihammad Ahmed Fayez; Faez Ahmed

3)Ahmed Alghamdi
-Alias: Ahmed Salah Alghamdi

4)Hamza Alghamdi
-Possible residence(s): Delray Beach, Florida
-Alias: Hamza Al-Ghamdi; Hamza Ghamdi; Hamzah Alghamdi;
Hamza Alghamdi Saleh

5)Mohand Alshehri
-Possible residence(s): Delray Beach, Florida
-Alias: Mohammed Alshehhi; Mohamd Alshehri; Mohald Alshehri





quinta-feira, setembro 01, 2011

A propósito do conceito de KATECHON na Cristandade contemporânea


Alphonse van Worden - 1750 AD






 Em entrevista a respeito do pensador católico Joseph de Maistre, o também francês Philippe Sollers faz uma observação severa, malgrado deveras pertinente, sobre a situação da maior parte dos católicos na sociedade contemporânea:


Les catholiques ne veulent pas être catholiques. Ils font du bricolage, mais ne savent rien. L’ignorance sur les questions religieuses est quasiment totale. Je passe mon temps à voir des gens qui ne savent pas ce que c’est. Alors, ils voient à peu près les fêtes, encore que savoir ce qu’est l’Ascension, l’Assomption, la Pentecôte… Ils ne peuvent même pas écouter une messe, car ils ne savent pas de quoi ça parle. Ils sont donc extérieurs à la culture occidentale. 


É emblemático atentar para o facto de que Sollers, mesmo tendo recebido educação religiosa, está longe de ser o que se poderia chamar de um 'escritor católico'; mesmo assim, ao afirmar justamente que os católicos que desconhecem a substância mais profunda de sua religião culturalmente não fazem parte do Ocidente, diagnostica com precisão cirúrgica um dos mais graves problemas enfrentados hoje pela fé católica.

Tais reflexões nos conduzem, parece-me claro, à seguinte assertiva: sem Ocidente não existe Igreja, da mesma maneira que sem Igreja não há Ocidente. Recorrendo aqui às Escrituras, quero crer que a afirmação acima fica mais cabal a partir do que está disposto em 2 Tessalonicenses 2: 3-7:


3 Ninguém de modo algum vos engane. Porque primeiro deve vir a apostasia, e deve manifestar-se o homem da iniqüidade, o filho da perdição,

4 o adversário, aquele que se levanta contra tudo o que é divino e sagrado, a ponto de tomar lugar no templo de Deus, e apresentar-se como se fosse Deus.


5 Não vos lembrais de que vos dizia estas coisas, quando estava ainda convosco?


6 Agora, sabeis perfeitamente que algo o detém, de modo que ele só se manifestará a seu tempo.


7 Porque o mistério da iniqüidade já está em ação, apenas esperando o desaparecimento daquele que o detém. 



 Trata-se, com efeito, da célebre passagem bíblica em que S. Paulo menciona a figura do Katechon, isto é, 'aquele' ou 'aquilo' que detém o 'adversário'. O caráter notoriamente críptico dos supracitados versículos suscitou, claro está, diversas interpretações: qual seria, enfim, a força capaz de deter, durante sua permanência ao longo dos séculos, o advento do Anticristo: O Império Romano? A Igreja? o Papado? O Sacro Império?

Seja qual for a interpretação adotada, verifica-se que natureza primordial de o Katechon consiste num poder que seria a própria seiva vital da Cristandade. A meu juízo, tal poder é a Civilização Católica, sob a égide dos ‘dois gládios’: o Império e Igreja.

 Isto dito, é inevitável indagar: o progressivo afastamento entre tal civilização e seu alicerce espiritual não simbolizaria, de certo modo, o encerramento do ciclo histórico do Katechon e, portanto, a aproximação do Final dos Tempos?

 Muitos católicos desconsideram, ou pelo menos subestimam, o caráter da Igreja como instituição histórica, humana. Ora, o próprio Cristo, como Filho de Deus, está fora do Tempo, mas Seu advento constitui inequivocamente um facto histórico, que engendrou circunstâncias analogamente históricas. A Igreja é a manifestação da providência divina no curso da História; outrossim, Seu destino não pode ser dissociado do contexto histórico-civilizacional em que surgiu.

 A Igreja, Corpo Místico de Cristo, é a dimensão espiritual e teológica que informa o Katechon. Não obstante, para ser protegida na esfera temporal, a Igreja carece d'uma salvaguarda, que é a civilização católica sob a égide de um Império. O Katechon emerge, portanto, como a unidade orgânica entre Igreja, Civilização Católica e Império. E tal unidade se enfraquece significativamente pelo menos desde o século XVI.

 Poder-se-ia argüir a hipótese, de todo cabível no âmbito da omnipotência divina, d’uma Cristandade estabelecida n’outro contexto e circunstância; todavia, é mister admitir que a Societas Christiana efetivamente existente não pode ser dissociada das instituições históricas em que se encarna; do contrário, estaríamos a considerar meras possibilidades, e não a realidade.

 Sob a égide da Igreja, encarnação histórica do Corpo de Cristo; do Sacro Império, herdeiro político do Império Romano do Ocidente; e do Império Bizantino, por seu turno herdeiro politico do Império Romano do Oriente, forja-se a Cristandade. Com o Cisma de 1054, a Cristandade se divide entre a civilização católica, à oeste, e a ortodoxa, à leste. Ainda assim, conservam-se os elementos centrais da fé cristã, tanto no Ocidente católico quanto no Oriente ortodoxo. Permanece intacto, pois, o Katechon durante todo o transcurso do Medievo. A Reforma Protestante constitui, entretanto, um trágico ponto de inflexão, vale dizer, o início de um processo gradativo e inexorável de 'descristianização' do Ocidente, que se acentuaria dramaticamente com o advento da modernidade iluminista, filha dileta das ignomínias de Lutero e Calvino.

Hoje, no século XXI, perante uma Igreja cada vez menos influente no seio da civilização que deveria ser sua salvaguarda, talvez não seja irrazoável proclamar que em breve deixaremos de contar com a proteção do Katechon. Há que sublinhar que o termo final da descristianização do Ocidente seria o dobre de finados da Igreja, a morte do Katechon; e, portanto, a clave para a vinda do Anticristo.

 Ainda há espaço, não obstante, para esperança: muito embora a civilização católica forjada pela Igreja seja hoje, em larga escala, parte do passado, é preciso salientar que a Santa Madre (apesar de todos os 'modernismos') segue atuando sob o primado dos princípios, rituais e ordenamentos que nortearam a Civiltá Catolica. Assim, o verdadeiro 'Ocidente', como conjunto de valores e visão de mundo, continua a existir, ainda que precariamente, no seio da Igreja. Estejamos, contudo, em guarda: caso a Santa Madre seja reduzida a uma situação de irresgatável impotência, a substância primordial que informa a Cristandande não logrará sobreviver.