Alphonse van Worden - 1750 AD
Inclitíssimos irmãos d’armas:
Tenciono hoje pôr à vossa disposição algumas reflexões a propósito de Paul Valéry, que indubitavelmente tem sido uma das referências intelectuais mais constantes e vitais ao longo de minha trajetória.
À moda dos Cahiers do primus inter pares das letras francesas, do incomparável mâitre à penser da literatura universal no século XX, tais reflexões assumirão um caráter essencialmente assistemático, fragmentário; não obstante, se do autor de Ébauche d’un serpent ainda posso (ainda que tão somente, claro está, em caráter de miserável simulacro) emular dos aforismas o estilo, decerto o refulgente descortino crítico de seu gênio é páramo que nem de muitíssimo longe poderia ter a esperança de vislumbrar.
Isto assente, às nossas lides procedamos.
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Valéry foi inelutavelmente uma das inteligências mais fulgurantes da cultura universal em todos os tempos, tendo se demonstrado capaz de articular exemplarmente as seis virtudes que reputo como cardeais no exercício da atividade intelectual: Criatividade / Rigor / Ousadia / Lucidez / Clareza / Profundidade. Trata-se d'um autor / pensador cujo talento multiforme e surpreendente se manifestou, sempre com rara consistência e beleza, nas mais diversas esferas do conhecimento e da arte. Há que frisar, sobretudo, que a trajetória intelectual de Valéry (obra poética inclusa) pode ser definida como uma ampla investigação, de cariz analítico, metódico e sistemático, dos processos operacionais da inteligência no âmbito da atividade criadora; com efeito, tal é a o alpha e o omega de sua obra, vale dizer, a tentativa de identificar uma 'atitude central' a coordenar todas as operações criadoras do intelecto. Tal perspectiva, creio, delineia horizontes de capital importância no bojo da epistemologia, cujo alcance e profundidade ainda estão a ser mapeados, sobretudo no espectro da vasta galáxia que são seus Cahiers. É mister, outrossim, elencar os demais aspectos cruciais da epopeia valeryana: a autoconsciência progressiva no tocante aos procedimentos e recursos da linguagem, bem como a concentração deliberada nos métodos de composição; a valorização do ostinato rigore (d'après Poe e Mallarmé) como princípio criativo fundamental, em detrimento da inspiração e da espontaneidade, que Valéry em boa medida encara como quimeras românticas; a convicção de que a grande obra de arte não está propriamente no ‘produto acabado’ (quadros, poemas, esculturas etc.) em si, mas no próprio processo de criação, expressão privilegiada da inteligência.
Exemplo lapidar de toda essa refinada ars combinatoria é o célebre poema Le Cimetière marin, composição estruturada com elegância e precisão matemáticas em seus requintados arabescos verbais:
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Ao apreciarmos a ars poetica de Valéry, é possível constatar, pois, que o egrégio vate francês não está propriamente preocupado com o resultado final de seus poemas, mas sim em observar a dinâmica de sua inteligência criativa ao concebê-los. Para Valéry o labor poético é essencialmente uma operação do intelecto; a autoconsciência progressiva no tocante aos recursos e procedimentos da linguagem e a concentração deliberada nos métodos de composição são, destarte, muito mais importantes que elementos vagos como 'espontaneidade', 'inspiração' e 'intuição'. Acrescente-se ainda que não lhe importavam tanto os 'fins', mas sobretudo os 'meios'. Acreditava, pois, que um artista nunca termina efetivamente um trabalho, mas tão somente o 'abandona': o fundamental é o caminho, não o termo, a chegada; e é exatamente por isso que o autor de La jeune parque chega a afirmar que a grande obra de arte não está numa tela, numa escultura ou num poema consumados, mas sim no próprio processo de criação.
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Há uma observação de Valéry que a meu ver reverbera no plano literário a distinção essencial que há em filosofia entre 'analíticos' e 'continentais: a prosa, sobretudo a prosa de não ficção, deve 'terminar' exatamente onde 'termina' a linguagem, ou seja, ela não deve dizer mais do que o plano semântico da linguagem lhe faculta; a poesia, por outro lado, deve 'COMEÇAR' onde 'termina' a linguagem, isto é, ela emerge justamente quando a linguagem já não mais consegue dar conta daquilo que queremos dizer. Sublinhe-se, ademais, que o aedo francês define poesia como "a permanente hesitação entre som e sentido", vale dizer, a oscilação perpétua entre o dizível e o indizível, o tangível e o intangível.
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"M. Teste avait peut-être quarante ans. Sa parole était extraordinairement rapide, et sa voix sourde. Tout s’effaçait en lui, les yeux, les mains. Il avait pourtant les épaules militaires, et le pas d’une régularité qui étonnait. Quand il parlait, il ne levait jamais un bras ni un doigt : il avait tué la marionnette. Il ne souriait pas, ne disait ni bonjour ni bonsoir ; il semblait ne pas entendre le « Comment allez-vous ? »"
La Soirée avec monsieur Teste (originalmente publicado em 1896 / expandido na edição póstuma de 1946 com o acréscimo dos textos que formam o Cycle Teste), misto de romance 'abstrato' / ensaio analítico, sem dúvida constitui uma das obras mais singulares e fascinantes de Paul Valéry.
Trata-se d'uma reflexão sobre a dissociação progressiva entre a 'razão pura' e a sensibilidade no seio da personalidade do protagonista. Teste é obcecado pelo ostinato rigore da EXPRESSÃO, não só na esfera conceitual, verbal e formal, mas também no plano dos sentimentos, e até mesmo no âmbito dos mais prosaicos hábitos e ações do cotidiano. Cada pensamento, sentimento, vocábulo, ato ou gesto supérfluo é por ele rejeitado, o que ao fim e ao cabo terminará por levá-lo a 'inviabilizar' a própria VIDA, dimensão inexoravelmente entretecida nas ramagens do fortuito, do arbitrário e do fugaz.
Algo irônicos e melancólicos, os textos do 'Ciclo' talvez sejam uma espécie de originalíssima autobiografia espiritual do autor.
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A meu juízo a inteligência mais privilegiada já surgida em França, era Valéry era movido, conforme já salientei n'outras ocasiões, por uma busca metódica e sistemática pelo ostinato rigore em todos os campos da linguagem.
O autor de Regards sur le monde actuel chega a afirmar, em determinada passagem de seus Cahiers, que uma demonstração matemática ou uma proposição científica lhe proporcionava mais prazer estético que a leitura d'um romance; buscava, assim, lograr um grau máximo de precisão tanto no plano formal quanto na esfera semântica.
Em Sur Bossuet, magnífico ensaio a propósito do notável bispo e teólogo francês, Valéry sustenta que a prosa de Bossuet é de tal modo rigorosa, majestosa e severa que o facto de concordarmos ou não com as ideias advogadas pelo autor não tem a menor importância. E vai além, n'outra passagem dos Cahiers: dar ou não assentimento às concepções d'um pensador não é o que importa, mas sim verificar a solidez de sua 'engenharia textual', a consistência de sua 'arquitetura conceitual'.
E Valéry está certo. Sempre esteve. Sempre estará.
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Todo artista que atinge alguma consagração, isto é, algum nível de reconhecimento crítico, demonstra n'alguma medida deter autoconsciência a propósito dos recursos e procedimentos de que se serve para criar, dos métodos de composição e de suas possibilidades últimas enquanto criador. Paul Valéry talvez tenha sido o autor mais deliberadamente autoconsciente em toda a história da literatura, o que por si só ilustra o grau de excelência que logrou atingir.
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Num de seus magníficos escritos compilados nos volumes de Variété, Valéry declarou que se calhar seu desiderato supremo seria a criação d'uma 'Commedia da inteligência'. Dante escrevera a Divina; Balzac a Humana; Valéry, por seu turno, almejava a da abstração total. Analogamente, chega a afirmar que uma demonstração matemática proporcionava-lhe maior deleite e satisfação estética que a leitura d'um romance. Por fim, na conferência De l’enseignement de la poétique au Collège de France, especulou sobre a possibilidade de uma história da literatura que não mencionasse autor algum, mas que, com efeito, fosse concebida como uma espécie de "História do Espírito Universal enquanto produtor e consumidor de literatura". Em suma: três exemplos que ilustram à perfeição a 'atitude central' tanto do ars poetica quanto do corpus teórico valeryanos, qual seja, um verdadeiro CULTO da inteligência, não só como uma espécie de apologética suprema da criação, mas inteligência como expressão por excelência da próprio BELO.
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Em Quelques notes sur la technique littéraire (1889), Valéry afirma o seguinte:
"Tanto mais apreciaremos a arte de nosso tempo quanto mais misteriosa, restrita e inacessível ela for para as multidões. Pouco importa que resulte impermeável à maioria, que seja privilegio duma minoria, alcançável apenas por um punhado de eleitos, para quem é um reino divino do mais alto grau de esplendor e pureza."
Como de hábito está correto o grande luminar das letras francesas. Com efeito, é mister que a arte sempre seja apanágio exclusivo d'um cenáculo restrito, perspectiva que hoje, tendo em vista a hecatombe cultural de nossos tempos, precisaria ser advogada com maior veemência ainda. Lembremo-nos sempre: democratização (não só no plano das artes, mas também nas esferas do conhecimento em geral e da política) = vulgarização, diluição, abastardamento.
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