segunda-feira, março 01, 2010

Breve nota sobre a questão do ‘Guerreiro Santo’ no âmbito do pensamento de Yamamoto Tsunetomo

Alphonse van Worden - 1750 AD





No ensaio de minha lavra a propósito do pensamento de Sheykh Osamma Bin Laden (disponível neste espaço), mencionei, a respeito do arquétipo do 'Guerreiro Santo', bem como à guisa de exemplo da convergência entre as diversas esferas da Tradição, a figura do monge zen e bushi japonês Yamamoto Tsunetomo (1659 - 1719).

Muito bem: trata-se do autor do célebre Hagakure (1710), obra que expõe os preceitos do Bushidō, o código de honra samurai. E logo à partida, Tsunetomo nos oferece se calhar a mais sublime definição do arquétipo em tela, cujos traços essenciais reverberam nos '10.000 imortais' de Xerxes; no janízaro otomano; no kṣhatriya védico; nos hashasheen de Al Alamut; no cruzado cristão, etc.:


"Descobri que a Via do Samurai reside na morte. Numa situação de crise, quando as possibilidades de viver ou morrer são iguais, devemos optar pela morte; é necessário, para tanto, munir-se de coragem e agir. Há quem diga que morrer sem ter levado a bom termo sua missão significa morrer em vão. Trata-se do argumento advogado pelos mercadores arrogantes que enxameiam por Osaka; na verdade, contudo, não passa d’uma contrafação simiesca da ética dos samurais.

É muito difícil fazer uma escolha criteriosa num contexto onde as possibilidades de viver ou morrer são equivalentes. Todos nós preferimos viver, e é natural que o ser humano sempre acabe encontrando boas razões para seguir vivendo. Todavia, aquele que escolhe continuar vivo após ter fracassado em sua missão será desprezado, a um só tempo qualificado como covarde e vil. Aquele que, por outro lado, morre após ter falhado, pode ser até considerado um fanático que desperdiçou sua vida; não obstante, não será desonrado. Tal é a Via do Samurai.

Para ser um samurai perfeito, é mister estar sempre preparado para morrer. Quando um samurai está permanentemente disposto a morrer, logrou alcançar mestria na Via, e assim pode dedicar-se, sem cessar, ao pleno exercício de seus deveres."


N’outra passagem, o autor enfatiza, em termos análogos, a atitude adequada de um guerreiro:


"Todos os dias, sem falta, devemos nos considerar mortos. Existe um ditado dos antigos: ‘Saia de baixo do beiral do telhado, e você é um homem morto. Saia pelo portão e o inimigo está esperando’. Não é questão de ser cuidadoso. É considerar-se morto de antemão."


Alguns meses antes de ler o Hagakure, por acaso estive a investigar um livro assaz interessante (Zen War Stories, Brian Daizen Victoria, Routledge-Curzon, 2003), onde é abordada a profunda relação existente entre algumas doutrinas do zen-budismo e o militarismo japonês. O autor adota um  risível tom de 'denúncia' no tocante à questão, mas o que de facto importa no livro é a descrição, sucinta e informativa, a propósito da peculiar 'ética guerreira' que emerge dos ensinamentos zen-budismo, ethos aliás comum a todas as sociedades 'tradicionais' (empregando aqui o termo 'tradicional' em sua acepção de ‘anti-moderno’):


"Muitos dos soldados na presente guerra estão de tal modo determinados a morrer no campo de batalha, que conduzem seus próprios funerais públicos antes de partir para o front. Isto não comporta nenhum elemento de ridículo para os japoneses. Pelo contrário, é admirado como espírito do verdadeiro samurai, que segue para a batalha sem nenhum pensamento de retornar."


Conforme já tivemos a oportunidade de frisar n’outras ocasiões, tal é, atravessando incólume o manar dos séculos, a atitude do verdadeiro guerreiro, do autêntico kshatriya, homem para quem a guerra é um veículo de realização espiritual; uma esfera à parte, que vai muito além das causas e circunstâncias que condicionam cada conflagração em particular; dimensão cósmica, pois, que se projeta na Eternidade, onde os ‘guerreiros santos’ não podem ser derrotados pelos escravos do ‘Reino da Matéria’, da névoa fátua e efêmera do AGORA, submetidos que estão ao fluxo errático e transitório do Tempo.

Trata-se d’algo que o pragmatismo ocidental, pejado de confiança irrestrita no domínio da técnica sobre a vontade, no primado da superioridade tecnológica em detrimento da força inerente a uma convicção espiritual arcana, jamais logrará compreender. Olvidaram-se, pois, de prestar atenção aos que, lucidamente, e já há muitos lustros, denunciaram a insensata prepotência de tal visão de mundo:


"A energia que de fato molda o mundo emana das emoções - orgulho racial, culto a líderes, crença religiosa, amor à guerra - que os intelectuais liberais descartam como anacronismos e que, em geral, destruíram por completo em si mesmos a ponto de terem perdido todo o poder de ação."

(George Orwell - Wells, Hitler and the World State - 1941)



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