Celebrando o ethos libertário e catártico que deveria estar sempre presente no rock'n'roll, não apenas enquanto perspectiva estética mas também como horizonte existencial, tenciono desta feita vos falar dos norte-americanos do Gun Club.
Certa vez ao elaborar meu Top 10 melhores álbuns do punk rock, fiquei em dúvida sobre incluir ou não a fulgurante e inolvidável obra-prima do Gun Club: afinal, trata-se de um disco que vai além dos marcos estéticos do punk, malgrado esteja de certo modo historicamente enraizado no hardcore norte-americano. Em todo caso, Fire of Love certamente assumiria o primeiro posto da supracitada lista caso estivesse nela presente, pois a meu ver talvez seja simplesmente dos 10 melhores álbuns de toda a história do rock, ponto.
Lançado em 1981, Fire of Love nutre-se do delta blues do ‘coração das trevas’ sulista, do country’n’western de Hawk Williams e do psychobilly dos Cramps para explodir no então nascente hardcore em luciferina, sulfúrica e absolutamente apaixonante 'summa theologica' de toda a história do rock’n’roll; é sobretudo o fruto mais consumado do errático mas imenso talento de Mr. Jeffrey Lee Pierce, bardo etílico / poeta marginal / junkie rocker texano que radicou-se em LA no final dos anos 70. Sem dúvida também contribuiu para o estupendo resultado final o facto de Pierce ter tido à sua disposição o melhor line up em toda a trajetória do Gun Club: a ‘cozinha’ sólida e precisa a cargo de Rob Ritter (baixo) e Terry Graham (bateria) lastreando o uivo seco, feroz e hipnótico do par de guitarras ‘limpa trilhos’ de Ward Dotson e Pierce, com nosso Elvis from Hell emoldurando a massa sonora com sua voz passional e imperativa; para arrematar com chave de ouro, as magníficas letras do mestre, cronista da alma humana da augusta estirpe de um Robert Johnson ou Son House, urdindo atormentadas narrativas de morte, horror, danação eterna, sexo e amor desesperado. E assim temos memoráveis temas originais como Sex Beat, She’s Like Heroin, Fire Spirit (trinca de ases onde as águas barrentas do country blues encontram o asfalto punk de LA em combustão espontânea); For The Love of Ivy (malevolente épico gothabilly composto por um Pierce endemoniado em parceria com Kid Congo Powers - da formação original do Gun Club e depois integrante dos Cramps - em homenagem à sua ex-parceira de banda e mítica musa underground Poison Ivy); Ghost on the Highway, Black Train, Goodbye Johnny (magníficos exemplos de intoxicante alquimia country/hardcore); bem como estraçalhantes releituras para dois clássicos do blues (Preaching The Blues - Robert Johnson e Cool Drink Of Water - Tommy Johnson).
Infelizmente a banda jamais conseguiria repetir o mesmo diapasão maníaco e perfeito de sua estréia; problemático e doidão, Jeff Pierce bebia /cheirava/injetava todas, de modo que a trajetória ulterior de seu ‘Clube de Tiro’ oscilou entre sucessos parciais (The Las Vegas Story, The Birth the Death the Ghost, Mother Juno) e melancólicos equívocos (Miami, Pastoral Hide & Seek, Lucky Jim). Uma pena: houvesse gravado mais um ou dois monumentos como Fire of Love, o Gun Club certamente seria uma das 10 ou até mesmo 5 melhores bandas de todos os tempos! Ainda assim, contudo, deixaram sua assinatura em letras de ouro no ‘Grande Livro do Rock’ com um dos discos mais brilhantes e inesquecíveis da história do gênero.
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Em tempo I: Jeffrey Lee Pierce morreu em 1996, e esta resenha é uma modesta mas sincera homenagem a ele: aonde quer que estejas, keep on rocking, Jeff!!!
Em tempo II: Pierce foi um dos grandes letristas de sua geração, sempre destilando suas peculiares obsessões; na letra que postarei a seguir, o clima é de danação eterna em psicose redneck nos confins do Deep South:
For The Love Of Ivy
You look just like an Elvis from HELL
My heart is broken, so I'm going to HELL
bury me way down deep in HELL
I'm a steel drivin' man, I want to go to HELL!
then go tell Ivy oh-oh!
for the love of Ivy yeah-yeah!
I did it for Ivy oh-oh!
you're the one
Gonna buy me a graveyard of my own
kill everyone who ever done me wrong
gonna buy me a gun just as long as my arm
kill everyone who ever done me harm
then go tell Ivy oh-oh!
for the love of Ivy yeah-heah!
I did it for Ivy oh-oh!
you're the one
Well, jawbone eat and jawbone talk
jawbone eat you with a knife and fork
I was hunting for niggers down in the dark
when suddenly I got a better thought
let's go hunt Ivy, oh-oh!
let's go get Ivy, Yeah-yeah!
for the love of Ivy, oh-oh!
you're the one.
I did it for Ivy
I did it for Ivy
HA HA HA! Ivy!
I was all dressed up like Elvis from HELL! HELL!
*
Ten. Giovanni Drogo
Forte Bastiani
Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros
Forte Bastiani
Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros
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