sábado, setembro 01, 2007

Notas de reflexão crítica VII - a propósito do pensamento político de Novalis





Conforme nos foi possível observar em escrito anterior, as convicções do poeta anglo-americano T.S.Eliot a respeito da decadência da cultura ocidental estão intimamente relacionadas a seu medievalismo, ou seja, à concepção da Idade Média como auge da civilização européia; neste particular, trata-se, sem sombra de dúvida, de autor caudatário de toda uma linhagem do pensamento conservador dos séculos XVIII e XIX: Edmund Burke, Novalis, Joseph de Maistre, Louis de Bonald, Donoso Cortés, Otto Weininger, etc. No âmbito da presente nota, trataremos da notável figura de Georg Philipp Friedrich Freiherr von Hardenberg (1772 - 1801), dito Novalis.

Descendente d’uma insigne linhagem de aristocratas prussianos, Novalis foi um emblemático representante da vertente, por assim dizer, mais soturna, fatalista e propriamente ‘germânica’ do romantismo alemão, ao lado de nomes como Johann Gottfried Herder (1744 - 1803), Ludwig Tieck (1773 - 1853) e E.T.A. Hoffmann (1776 - 1822). Plena de passagens caracterizadas pelo mais delirante evasionismo poético, sua obra também apresenta, contudo, algumas reflexões de índole filosófica (tal como podemos observar em seus célebres 'fragmentos') , bem como de âmbito político, ainda que sob a égide d'uma weltanschauung intrinsecamente idealista. Assim sendo, para além do elegíaco hermetismo de seus magníficos Hymnen an die Nacht* (1800); da etérea beleza dos romances inacabados Heinrich von Ofterdingen (1801 - obra em que apresenta o célebre arquétipo da ‘flor azul’ como inatingível ideal de transfiguração mitopoética da existência, uma espécie de réplica romântica ao ‘romance de formação’ Wilhelm Meister , de Goethe, que Novalis encarava como demasiado prosaico) e Die Lehrlinge zu Sais (1798 / 99 - texto de profunda inspiração esotérica, muito influenciado pelos escritos do místico cristão Jakob Böhme); e da densidade filosófica dos aforismos compilados em Blüthenstaub (Pollen) (1798), o escritor prussiano também foi autor do ensaio de teologia política Die Christenheit oder Europa (1799); nesta esplêndida peça de apologética cristã, Novalis advoga um retorno à Idade Média, cuja unidade harmônica poderia regenerar uma Europa convulsionada por dissensões políticas e religiosas; seria, pois, o caminho para o reencantamento do mundo moderno, fragmentado e desprovido de um sentido maior. A noção de um ‘todo’ uno e coerente, ou seja, de uma cosmovisão capaz de articular de forma convergente e coesa as instâncias política, econômica, cultural e religiosa, bem como de conferir transcendência à vida social, é a perspectiva dominante neste escrito, consoante sua notável abertura nos revela: “Belos, esplêndidos tempos: a Europa era terra cristã, e a Cristandade habitava una este recanto de mundo humanamente configurado...”. Assim sendo, o autor crê que a Europa deixara de ser um paraíso sobre a terra devido à evolução das relações comerciais, que gerou o esfacelamento do continente em vários estados nacionais beligerantes; e enquanto o continente não retornar à unidade transcendente em Cristo, Novalis, deveras sombrio, assevera que “o sangue correrá através da Europa”, sublinhando que apenas “a religião será capaz de ressuscitar a Europa, bem como de dar segurança a seu povo... e o resto do mundo aguarda pela ascensão e reconciliação da Europa, de maneira a somar-se a ela e assim ingressar no Paraíso”.

O declínio do universo fechado, unitário e integrado da Gemeinschaft (comunidade) rural; a entrada no mundo dos negócios, do prosaísmo cotidiano que esmaga a poesia e a espiritualidade; a passagem, enfim, da humanidade em perfeita harmonia com o seu meio, para uma nova concepção de homem marcada pela instrumentalização mercantil de suas relações, pela busca desenfreada da propriedade, bem como do saber desvinculado de elevação espiritual, constituem, para Novalis, os grandes males que então enfermavam o continente: “O ódio à Religião (...) transforma a música do universo, infinita e criadora, em um matraquear uniforme de um moinho monstruoso que é impulsionado pela tempestade do acaso e, nadando sobre ela, é um moinho em si, sem arquiteto ou moleiro, e na verdade um autêntico perpetuum mobile, um moinho que mói a si mesmo”. Na origem de tão ominosa situação está o culto insensato do saber filosófico desvinculado da fé religiosa, que o autor localiza na França iluminista. Consoante Novalis, a resposta à crise moderna viria da Alemanha (e aí temos uma das fontes ideológicas do futuro nacionalismo germânico), que caminha “à frente dos demais países europeus, com o seu passo lento, mas seguro”: ao invés de se dedicar à guerra, à especulação e aos partidarismos estéreis, ela peregrina em direção a uma época de elevação cultural e espiritual.

Em contraposição à pérfida realidade da Europa em que vivia, o poeta alemão nos apresenta, pois, um modelo de organização social no sentido kantiano (ainda que com polaridade filosófica invertida, é mister sublinhar), a saber, transcendental, de uma “idéia reguladora” capaz de assegurar a reconciliação desse homem decaído com seu meio; assim sendo, concebe o catolicismo como a única religião capaz de reconciliar uma Europa fragmentada. Verifique-se, a título de ilustração, como nosso autor descreve de maneira idealizada as relações entre o poder temporal e o espiritual no medievo: “Os príncipes apresentavam suas disputas ao pai da Cristandade, depositavam solicitamente a seus pés as coroas e os esplendores, e, enquanto membros dessa alta corporação consideravam até uma glória concluir o ocaso da vida, entre solitárias paredes de um convento, em divinas meditações”. Novalis tenciona, com efeito, projetar na Idade Média um modelo transcendente de sociedade que deveria guiar as transformações do presente; há, portanto, um potencial revolucionário em tal perspectiva 'restitucionista'; e uma nova ‘Idade de Ouro’ pode ser atingida se esse potencial vier a lume. O poeta/filósofo deve ser o arauto privilegiado dessa transformação. Para Novalis a modernidade, o protestantismo e o Iluminismo representaram passos equivocados na trajetória da humanidade, obstando a manifestação dessa autêntica dinâmica de sublimação espiritual. Mais que uma instância ideal a ser 'restaurada' simplesmente no plano simbólico, a Europa católica converte-se, pois, em transcendência a ser concretizada de maneira integral, potencializando o que o ethos medieval tinha de mais puro e augusto.

Por fim, à guisa de conclusão, devemos reconhecer ser cada vez mais premente a necessidade de regenerar espiritualmente a Europa: à leste, sob o primado do Patriarca de Moscou; à oeste, sob a égide do Sumo Pontífice de Roma.

E tal mister, como a leitura dos parágrafos acima tão bem o demonstra, está longe de ser uma preocupação recente: a partir do século XVIII, pois, numa dinâmica que até hoje permanece viva, numerosos pensadores atentado para este tópico de fundamental importância.

Destarte, a pergunta que se impõe é a seguinte: seria o ideal de Novalis, e tantos outros ilustres autores, ainda plenamente realizável no mundo contemporâneo...? Decerto que não, mormente em termos de organização econômica; quero crer, todavia, que é algo parcialmente exeqüível como movimento cultural, e que, portanto, seria possível pugnar por tal iniciativa, que seria não apenas sobremaneira salutar para o continente europeu, mas também para todos nós que, cultural e espiritualmente, somos herdeiros do Velho Mundo.

O grande busílis radica, contudo, na trágica incompreensão, por parte de muitos cristãos, de que tanto o socialismo quanto o liberalismo são tão somente as 'duas cabeças de Janus' do grande inimigo histórico da fé cristã: o iluminismo.

O movimento que tenho em mente deveria partir d'um esforço concreto, verdadeiramente efetivo, de convergência entre ortodoxos e católicos. Ora, as razões que conduziram ao Cisma de 1054 são hoje, em sua esmagadora maioria, questões históricas inteiramente mortas, ou então sutis bizantinismos teológicos que, sejamos francos, hoje só interessam à 'meia dúzia de três' doutíssimos nefelibatas.

Enfim, mesmo havendo um legado de incompreensões mútuas, de arestas a serem aparadas, é mister superar tais contenciosos em nome d'um móvel infinitamente mais importante: a preservação da Cristandade, isto é, do pilar central de nossa fé, de nossa cultura, de nosso próprio destino.




* Abrindo aqui um parêntese, cito aqui, como exemplo de estupenda prosa poética de Novalis, uma passagem do segundo hino: “Por que a manhã deve sempre retornar? O despotismo do dia nunca terá fim? A atividade profana consome a visita angélica da noite. Nunca chegará o dia em que o sacrifício oculto do Amor arderá eternamente? Veio o tempo da Luz; porém, o domínio da Noite é eterno e ilimitado. A duração do sono é eterna. Sono Sagrado, servo dedicado da Noite, não se preencha de júbilo no trabalho mundano do dia. Os tolos julgam-te mal, nada conhecendo do sono exceto a sombra que lanças piedosamente sobre nós no crepúsculo da noite real. Eles não te sentem no fluxo dourado das videiras, no óleo mágico da árvore das amêndoas, e no suco marrom do pomo da papoula. Eles não sabem que és tu quem assombra o seio da bela dama, e transforma em Céu a sua nobreza; jamais suspeitam que és tu, guardiã do Céu, quem envia a eles as antigas histórias, mensageira silenciosa dos segredos infinitos, portadora da chave para a morada dos abençoados”.

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

1 comentário:

Domingos disse...

Paz, graça e bem

- Quanto a forma: Absolutamente perfeita e impecável. Autêntico clássico.

- Quanto ao conteúdo: Exato e fiel ao pensamento do autor.

- Quanto ao ideário: Sou o nefelibata ominoso.

Discordo marcadamente da leitura do Pe Henri Delassus, o qual pecou por superficialidade pelo simples fato de não ter vinculado o Comunismo (O qual jamais pode ser confundido com Socialismo) ao Capitalismo (do qual recebeu seu éthos naterialista) e este ao protestantismo (como fez Weber); no qual se encontra a fonte e raiz de nossa crise civilizacional, a qual porém, em certa medida, podemos remontar ao agostinianismo ou ao século V.