quarta-feira, novembro 01, 2006

Presença de Robert Wise

Alphonse van Worden - 1750 AD


Desde que o estudioso francês de cinema Alexandre Astruc publicou, em 1949, seu célebre artigo Naissance d'une nouvelle avant-garde : la caméra-stylo, onde advogava a noção de que o cineasta, assim como o escritor ou o pintor, 'escreve', 'pinta' com a câmera; e que François Truffaut, ainda crítico de cinema no Cahiers du Cinéma, desenvolveu a chamada politique des auteurs, enfatizando o papel do diretor como autor, isto é, como responsável pelo produto final que o espectador verá na tela, formou-se uma espécie de consenso crítico a enaltecer quase que exclusivamente autores que possuem uma assinatura formal característica, uma estilística que, de certo modo, enfeixa seus trabalhos num opus coerente: Godard, Dreyer, Resnais, Antonioni, Murnau, Eisenstein, etc.; valorizou-se destarte, cada vez mais, não somente a noção de 'roteiro original', mas sobretudo a perspectiva do cinema como expressão de subjetividade autoral, transcendendo gêneros e parâmetros impostas pelo mercado, ou quaisquer outras instâncias alheias a um labor artístico radicalmente pessoal.

Há, não obstante, grandes cineastas que lograram se destacar mesmo estando agrilhoados às estruturas autoritárias e castradoras do studio system, e que criaram, malgrado talvez por vias mais transversas e erráticas, uma obra cuja envergadura se compara ao trabalho dos diretores supracitados; a meu juízo, quiçá o norte-americano Robert Wise seja o melhor exemplo deste tipo de cineasta, que a princípio se afirma mais como artesão talentoso, como laborioso ourives, que como propriamente entidade criativa autônoma, portadora d'uma centralidade autoral, mas em cuja obra, mesmo sob a capa de uma variedade de gêneros preestabelecidos, é possível perceber a mesma personalidade; a mesma marca registrada; o mesmo vigor artístico, enfim, que encontramos nos diretores mais propriamente 'autorais'.


Do legado de Wise é mister salientar, em primeiro lugar, a assombrosa versatilidade do artesão capaz de lavrar, com igual mestria, materiais de índole narrativa ou formal distinta, para não dizer veramente antípodas; assim sendo, pouquíssimos cineastas foram capazes de produzir verdadeiras obras-primas em tantos gêneros diferentes, da ficção científica (The Day the Earth Stood Still - 1951, um dos sci fi mais cool e formalmente elegantes de todos os tempos, num gênero onde abunda atroz 'cafonália') a dramas noir como Lady of Deceit - 1947, The Set Up - 1949 (cuja seqüência final na luta de boxe é das mais selvagens de todos os tempos) ou Odds Against Tomorrow - 1959 (com uma trama que aborda a questão da tensão racial nos EUA de forma particularmente criativa e surpreendente; de filmes de horror como The Haunting - 1963, uma fita criminosamente subestimada, vera fantasmagoria gótica em compasso de intrincado pesadelo freudiano, ou The Curse of the Cat People - 1944, sibilina seqüência para o também clássico Cat People - 1942, de Val Lewton, aos musicais West Side Story - 1961, que é sem dúvida uma das mais originais e criativas adaptações de material literário clássico que o cinema já viu, e The Sound of Music - 1965, notório sucesso do diretor.

Em segundo lugar, outrossim é forçoso destacar o virtuosismo técnico de Wise, cujos enquadramentos, cenografia e fotografia, caudatários em larga medida do expressionismo alemão e dos delírios barrocos de Orson Welles, são via de regra impecáveis, mormente em seus filmes em P&B, onde a câmara, como se finíssimo estilo de bambu nas mãos de um calígrafo nipônico fosse, desenha na tela caligramas e arabescos de requintada fatura, aspergindo silhuetas e sombras que não seriam indignos das diáfanas texturas d'um Shubun ou d'um Sesshu, tal como podemos admirar, por exemplo, no esplêndido The Haunting, com espectros sutilmente sugeridos pela geometria labiríntica de sua hábil montagem ; e nas obras em cor, ainda que parte da excelência formal d'outrora tenha se perdido, a beleza e precisão dos enquadramentos manteve-se imaculada, o que pode ser constatado, por exemplo, na arrojada composição visual de West Side Story, a celebrar os ritmos e circunvoluções estratosféricas da dança moderna.


Por fim, há que recordar o artista que, mesmo sob a impiedosa égide de uma indústria voraz e multitentacular, logrou imprimir às suas obras um cariz humanista e libertário, sempre a exaltar, d'uma forma ou de outra, a inebriante aventura da liberdade humana, traço a meu ver recorrente em toda arte que se pretende digna de ser lembrada. A esse respeito, destaco Wise por me parecer importante sublinhar a possibilidade de obter resultados de alto nível mesmo sob o tacão d’uma estrutura avessa à criatividade e à liberdade; trata-se, creio, de uma questão esquecida por muitos artistas, que ficam a choramingar por não desfrutarem de 'condições ideais' para criar, convenientemente olvidando-se de que é possível fazer arte mesmo nas condições mais adversas, quer do ponto vista político, quer do comercial.

9 comentários:

Anónimo disse...

Fui passeando pela web e caí no blog lá stonedguitar. Fui achando seus posts dotados de uma perspicácia interessante, mas você me ganhou com o post do Flipper. Dali pra frente dei umas risadas altas em alguns momentos, em outros simplesmente aprendi e fiz a devida apreciação. Acabei caindo aqui no seu blog e estou ainda mais impressionado. Poulantzas, Coltrane, enfim, o fino do fino. Depois vou fazer a apreciação longa e minuciosa do seu blog, mas precisava parabenizá-lo desde já. FODIDO!

Alphonse van Worden disse...

Agradeço muito, confrade, fico no aguardo de tuas considerações!

Abs,
AVW

Anónimo disse...

Talvez o único erro do Wise tenha sido Helena de Tróia. E mesmo no seu erro, trouxe às telas Brigitte Bardot, então pode ser facilmente perdoado.
Parabéns pelo blog. Um dos mais interessantes da rede.

Alphonse van Worden disse...

Muito obrigado, confrade.

Realmente,"Helena de Tróia" é fraquinho mesmo, mas Bardot tudo redime!

Anónimo disse...

A verdade é que o cinema nunca teve uma verdadeira Helena de Tróia.
Não apenas pela associação de nomes, mas a Helen Mirren é, para mim, a imagem perfeita de Helena. Não atualmente, claro. Isso até faz pensar em uma Ilíada dirigida pelo Peter Greenaway, o que é um sonho bastante agradável.
Já Bardot, literalmente destrói em O Desprezo. A impressão que me passa é que ela nunca mais foi a mesma pessoa depois de mergulhar naquele papel.

Alphonse van Worden disse...

Há que considerar que ela jamais voltaria a ser dirigida por um monstro sagrado como Godard, o que pesa muito.

Anónimo disse...

Exatamente isso que eu quis dizer! É como se Godard, como fantástico diretor que era, tivesse encontrado e exposto uma faceta da Bardot de tal forma, que ela nunca conseguiu voltar exatamente ao que era. Mas é apenas uma impressão.

Alphonse van Worden disse...

Pois é... até mesmo pq ela não era exatamente uma grande atriz hehehe.

Anónimo disse...

Hahahahah! Que maldade com a pobre Brigitte. Bom, mas mesmo que fosse, não deve ser tão simples agüentar dentro de si os conceitos de uma personagem do Godard. Se até mesmo Glauber Rocha declarou não acreditar como Godard se mantinha vivo com tudo aquilo lhe pressionando a cabeça, imaginemos o efeito disso em uma moça de intelecto tão...hm!...leviano...