sexta-feira, dezembro 01, 2006

Notas de reflexão crítica II - a propósito da ideologia neocon





- A ideologia neocon, que predica uma espécie de 'liberalismo' pró-imperialista e de índole militarista, representa o auge da contradição ideológica vigente na contemporaneidade; destarte, poucas coisas poderiam ser mais visceralmente antiliberais do que, por exemplo, a política de keynesianismo aplicado que caracteriza o complexo industrial-militar estadunidense, hoje mais do que nunca fomentado pelo intervencionismo da camarilha que governa os EUA; não obstante, estes insólitos 'liberais' não hesitam um segundo sequer em hipotecar seu apoio a tal dinâmica, não lhes importando à mínima que a mesma seja de todo antiliberal.

- Outrossim, tais setores fazem altissonante profissão de fé na imaculada 'democracia' norte-americana, como se esta não fosse tão somente um disfarce institucional para o verdadeiro regime que vige por lá: uma plutocracia inteiramente pautada pelos interesses econômicos do ‘partido do complexo industrial-militar e do capital financeiro’ (ou, como diria mais sucintamente Gore Vidal, o ‘Partido do Dinheiro’), que se divide nas alas ‘republicana’ e ‘democrata’. Há que ter em mente, sobretudo, algo da mais precípua importância: as administrações federais norte-americanas não se pautam pela 'varejo' partidário, pelos ‘arranjos de ocasião’, mas sim por uma política de ESTADO, que implementa / defende os interesses estratégicos de longo prazo dos setores econômicos e militares que lastreiam tal estrutura de poder. Mutatis Mutandis, trata-se d’um amálgama admiravelmente monolítico entre o que o pensador político anglo-americano James Burnham chamava de ‘coletivismo oligárquico’; o que o sociólogo alemão Robert Michels denominava de ‘lei de ferro da oligarquia’; e o que o economista italiano Vilfredo Pareto conceituava como ‘circulação das elites’: a lógica do ‘coletivismo oligárquico’, claramente embutida no complexo industrial-militar estadunidense , bem como na falsa dicotomia entre republicanos e democratas, que encarna de modo exemplar a noção de ‘circulação das elites’, criam um cenário onde a perspectiva democrática é tão somente uma miragem, cujo mero processo de alternância formal no poder é garantido em caráter permanente pela ‘lei de ferro da oligarquia’.

- É muito interessante ver como os neocons (pouco importa se ‘republicanos’ ou ‘democratas’) insistem em afirmar que suas políticas pró-imperialistas e intervencionistas atuam em defesa dos valores da 'democracia' norte-americana, da 'civilização ocidental' e do livre mercado, quando o que ocorre é justamente o oposto: o que a histeria militarista está conseguindo é precisamente colocar em risco a permanência dos valores tradicionais da América, como a liberdade individual, a ausência do Estado e o antimilitarismo. Como é possível constatar através do estudo da História, o militarismo sempre prepara o terreno para um incremento do poder estatal, seja por intermédio de maiores impostos ou do cerceamento às liberdades públicas por razões de 'segurança nacional' (vide o famigerado patriot act). Assim sendo, o que o imperialismo neocon está gestando é justamente o contrário de qualquer projeto liberal autêntico: um Estado-Leviatã armado até os dentes, omnipresente e omnipotente.

- Que seria, portanto, o complexo industrial-militar estadunidense senão uma entidade simbiótica público-privada, uma vez que mesmo que as indústrias de armamentos não sejam de propriedade estatal, tão somente podem existir em função da demanda do Estado? Da mesma maneira, tais empresas não podem funcionar em regime de livre mercado, uma vez que não podem vender livremente seus produtos para qualquer um... ou alguém julga, por exemplo, que a Northrop Corporation pode vender um de seus bombardeiros B-2 Spirit para qualquer um, seguindo os ditames do livre comércio? E a dinâmica em tela não se limita apenas a questões de foro exclusivamente militar; basta recordarmos, a título de ilustração, como surgiu e se desenvolveu a internet...

- A indústria de armamentos é seguramente uma das atividades econômicas mais lucrativas do planeta, de maneira que uma política de Estado imperialista, advogando guerras preventivas como método habitual de intervenção externa, representa um estímulo descomunal, fonte contínua de lucros para tal ramo de atividade.

- Por seu turno, um dos elementos centrais do pensamento econômico keynesiano é a defesa do Estado como agente indutor de desenvolvimento numa economia de mercado, que é justo o que ocorre no país dos grandes paladinos do 'liberalismo' econômico.

- O complexo industrial-militar estadunidense, complexa simbiose público-privada que entrelaça o Pentágono aos principais conglomerados produtores de armamentos do mundo (Northrop Grumman Corporation, McDonnell Douglas, Lockheed Corporation,General Dynamics, etc.), bem como indústrias químicas, biotecnológicas, eletrônicas, etc., é indubitavelmente um dos exemplos mais flagrantes de keynesianismo aplicado nos últimos 50 anos.; constitui, destarte, o principal eixo de sustentação da administração federal norte-americana desde a II Guerra Mundial, influência essa que só fez aumentar com o advento da choldra neocon.

- Logo, os neocons representam uma forma de neokeynesianismo militar de ÓBVIO caráter ANTILIBERAL...

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E na verdade, diletos confrades, estas notas aqui postadas têm por móvel dar ensejo a uma discussão ainda mais ampla e importante, e que poderia ser formulada da seguinte forma:

Considerando os seguintes fatores:

1)O entrelaçamento dinâmico e progressivo entre as finanças globais;

2)o facto de vivermos em sociedades cada vez mais complexas, onde cada ramo e instância da administração pública envolvem decisões altamente técnicas e especializadas;

3)e o primado dos interesses estratégicos do Estado, de longo prazo ou até mesmo permanentes (e que decerto tão somente modificar-se-iam por ocasião d'um processo revolucionário que subvertesse a própria ordem estatal vigente) sobre os desígnios 'varejo partidário' de ocasião, qual seria, ao fim e ao cabo, o poder decisório dos cidadãos nas complexas 'democracias' representativas contemporâneas? Ou, n'outra clave: em que a 'alternância de poder', tendo em conta os fatores acima elencados, proporcionaria a real oportunidade de escolha entre programas políticos efetivamente DISTINTOS?

Em suma, irmãos d'armas: até que ponto a 'democracia' não é apenas uma fraude conveniente, uma encenação protocolar, uma pantomima para persuadir o conjunto da sociedade de que ela detém um poder decisório realmente CONCRETO?


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

2 comentários:

Fernando disse...

De fato, somente sujeitos muito cínicos poderiam acreditar ainda os neoconservadores tenham tanto apreço assim pela democracia norte-americana a ponto de moverem campanhas militares simultâneas em diversas partes do globo que poderão destruir essa mesma e própria democracia! Ademais, você foi bastante preciso em apontar o fato de que o complexo industrial-militar necessita, e muito, da intervenção estatal para que não venha abaixo, o que se faz, como? Vendendo tanques e aviões a jato para o John ou a Mary, cidadãos comuns voltados para suas vidas comuns, suas famílias, seus círculos de amigos, seus empregos, suas comunidades religiosas?!
Evidente que não, evidente que isso se faz apenas e tão-somente mediante dois expedientes: ou financiando guerras ao redor do mundo, ou tomando parte nelas por si mesmo. Não é necessário ser muito inteligente nem especialmente antiamericano para dar-se conta de que os EUA não apenas cobram o escanteio como adiantam-se para cabeçear a bola na pequena área...
Seu texto, no que espero que entenda como um elogio sincero, ecoa um quê de Charles Wright MIlls, quando este autor afirmava, já em meados do século passado, serem os EUA uma economia voltada permanentemente para a guerra.
E outra referências que me surgem da leitura de seu texto, meu caro, é Heinrich Winkler, quando em artigo publicado no Mais!, de 6 de julho de 2003, afirma que a Doutrina Bush, ao propor-se a atacar preventivamente todo e qualquer inimigo em potencial dos EUA, não deixa de ser um "´ato revolucionário` em sua violência e do qual os europeus ainda não tomaram plena consciência".
O que me parece extremamente perigoso são as implicações desse estado de coisas para este nosso insignificante pedacinho do globo chamado Brasil: pois, de um lado, temos EUA e também China e Rússia, que não deixam de ser também complexos industriais-militares que rivalizam com o norte-americano; de outro, as pretensões de um Hugo Chávez, que sob a temerosa ideologia do "socialismo do século XXI", ameaça-nos roubar a única coisa de que, bem ou mal, nos poderíamos orgulhar até uns temos atrás: nossa "liderança natural na América Latina", uma falácia, eu o sei, mas ainda assim, algo que nem por isso fora desprovido de valor e interesse para o Brasil.
Bom, é isso, findo por aqui meu comentário. Grande abraço e felicitações!

Alphonse van Worden disse...

Agradeço imenso pelo alentado e percuciente comentário, bem como pelas indicações bibliográficas, as quais ainda desconheço. :-)