- Na medida em que a nomenklatura exercia, no âmbito da sociedade soviética, um controle absoluto sobre o aparato estatal, pode-se dizer que se apropriava diretamente dos excedentes oriundos do processo produtivo, de modo que o 'lucro social' não revertia em benefício da sociedade in totum, mas de uma pequena camada encastelada no comando do Estado e à testa do Partido; nesse sentido, o grande desafio de uma revolução socialista permanece sendo o de assegurar uma gestão efetivamente democrática e coletiva do processo.
- Num Estado operário degenerado poderiam ocorrer distorções políticas, certa preponderância do aparato burocrático, mas não a completa inversão de perspectivas que se verificou na experiência soviética, onde a apropriação do trabalho social voltou a estar concentrada nas mãos de um único estamento, que tomava a seu cargo todos os procedimentos decisórios em termos políticos e econômicos. A ausência, pois, de uma gestão veramente democrática no seio do aparato partidário e da máquina estatal, possibilitou a emergência de uma burocracia rapace e parasita; aliás, com o fim da URSS, num contexto de severa deterioração da economia, foi possível constatar a consumação lógica deste processo, uma vez que, com a privatização em massa das empresas estatais, a classe de administradores públicos de imediato converteu-se em empresariado privado, havendo apenas uma transferência jurídico-formal da propriedade.
- A meu juízo a posição em termos de processo produtivo não constitui o único critério possível para identificarmos a presença de uma classe social, e nisto a análise de Milovan Djilas (1911 - 1995), célebre comunista dissidente jugoslavo, me parece perfeita: a nomenklatura soviética, ainda que não tenha se configurado como formação autônoma em termos de estrutura produtiva, passou a apropriar-se em larga escala do 'trabalho social' de toda a sociedade, e assim forjou-se como nova classe numa acepção ampla do termo; se nova classe não foi em stricto sensu, sem dúvida logrou sê-lo lato sensu por via parasitária.
- Há que admitir, não obstante, que o processo histórico deu razão a Trotsky no sentido de que a expropriação política da burocracia por parte da ação revolucionária do proletariado seria, ao fim e ao cabo, a única forma de impedir que a dinâmica contra-revolucionária acabasse por reinstaurar o capitalismo na URSS. Vale dizer que, no âmbito do mesmo processo, a nomenklatura transformou-se, quase que de maneira automática, seqüencial e orgânica, de estamento administrativo em classe proprietária; de facto, ao nos debruçarmos sobre o vertiginoso ciclo de privatização da economia que se deu com o advento da era Yeltsin, constataremos que grande parte da antiga burocracia gerencial soviética, tanto em termos de setor industrial quanto de financeiro, converteu-se maciçamente em classe proprietária. A expropriação econômica desencadeou-se portanto como epifenômeno lógico-empírico de um processo de expropriação política que já havia se forjado décadas atrás.
- Num primeiro momento poderíamos definir tal dinâmica como uma metamorfose radical, o que de certa refutaria as considerações djlianas: o estamento administrativo transformando-se em alta burguesia proprietária; não obstante, se examinarmos mais acuradamente o fenômeno em tela, veremos que se trata, na verdade, não de uma metamorfose estrutural, mas sim de uma transferência maciça de titularidade nominal, uma vez que os meios de produção já estavam informalmente sob controle total de uma parcela de burocratas; ocorre, por conseguinte, a conversão formal de uma situação que se fazia presente em termos operacionais. Destarte, a 'nova classe' analisada por Djilas já existia nas entrelinhas da sociedade soviética, e tão somente adquiriu plena visibilidade e novo estatuto no período de restauração.
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