«Maintenant je suis à toi, tu es à moi.
Où je dois aller, tu m’accompagneras.
Pour ce que je dois faire, tu m’aideras.
Ne me fais pas défaut, sinon tu perdras jusqu’au souvenir de moi.»
Marie (Emmanuelle Béart)
*
É costume dizer que os gatos constituem a primeira linha de defesa d’um feiticeiro contra ataques sobrenaturais de entidades malignas; quando eles começam a morrer, ou mesmo a manifestar qualquer tipo de inquietação, o mago já sabe que alguma coisa não vai bem em seus domínios. Julien (Jerzy Radziwiłowicz) é um relojoeiro; isto é, uma sutil, discreta, elusiva modalidade de feiticeiro, alguém capaz de construir / reparar mecanismos que mensuram, ditam e regem o TEMPO...
Marie (Emmanuelle Béart), por seu turno, é uma revenante, uma alma penada que habita o plano intermediário entre os vivos e os mortos; não logrou atravessar completamente o Umbral, e por isso vaga em agonia, sem conforto y sem consolo, até que possa cumprir seu DESTINO...
Madame X (Anne Brochet), por fim, a um só tempo vilã, vítima & verdugo, desempenha uma função oracular e judicativa. É a Senhora dos Caminhos & Descaminhos, que detém a clave para uma possível REDENÇÃO...
Tempo.
Destino.
Redenção.
Uma tríade de coordenadas assaz adequadas para delimitar o território em que se move HISTOIRE DE MARIE ET JULIEN (2003), porventura a mais sibilina das criações do período final de Jacques Rivette, não por acaso o mais enigmático dos grandes artífices do cinema francês.
Mas... serão mesmo ‘adequadas’? Agora já não sei, com toda pureza d’alma.
Em todo caso, prossigamos. O processo de gestação do filme foi longo e acidentado: em verdade teve início em 1975, no seio do mais ambicioso projeto do cineasta: a tetralogia Scénes de la Vie Paralelle - que aliás a princípio se chamaria Les filles du feu, possivelmente aludiando ao fantástico, feérico y febril universo literário de Gérard de Nerval. Ora bem, entre março-abril daquele ano Rivette rodaria DUELLE (UNE QUARANTAINE) e em maio NOROÎT (UNE VENGEANCE); o cronograma estabelecido pelo realizador e pelo produtor Stéphane Tchalgadjieff previa para agosto o início dos trabalhos para MARIE ET JULIEN, com Leslie Caron e Albert Finney nos papéis principais e Brigitte Rouan interpretando Mme. X. Todavia, tudo iria por água abaixo em apenas dois dias: à beira de um colapso nervoso, Rivette decide cancelar as filmagens; com efeito, mesmo para um notório magnetizador do fogo dos deuses há limites. Desnecessário dizer, suponho, que o quarto título da série (uma comédia musical a ser estrelada por Anna Karina e Jean Marais) também seria arquivado - bem, quiçá misericordiosamente...
Fade out, corta para 2003. Vinte anos depois, Rivette resolve ajustar contas com seus fantasmas. O resultado, como de costume em se tratando do diretor, é mais uma obra admirável em seus acertos & desacertos, descortinando novas possibilidades, dialogando vigorosamente com o passado, sem deixar de trazer à tona, contudo, velhos problemas, paradoxos y perplexidades.
Sublinhemos já de início um elemento que salta aos olhos: a obsessão do realizador francês por simetrias y assimetrias materiais y imateriais, detectáveis na forma e/ou perceptíveis apenas nas diáfanas tramas do IDEAL. Assim como em seu magnvm opvs OUT 1: NOLI ME TANGERE (1971), cada movimento / deslocamento de corpos, mentes y desígnios em HMJ engendra seu perfeito contrário, e vice-versa, desdobrando-se num labirinto fractal. Outrora/Agora, Passado/Presente, Punição/Perdão, Danação/Remissão, Adrienne/X, Marie/Julien, é todo um hipnótico bailado de posições & contraposições, pontos & contrapontos.
Registre-se outrossim a paixão rivettiana pelo críptico maquinário dos conciliábulos & complôs, conspiratas & conjurações, conjuras & conspirações. Da mesma maneira que em seus coirmãos DUELLE e NOROÎT, tudo em HMJ exsuda & irradia inquietação & incerteza: é uma carta que transita entre o Aqui & o Além; uma boneca chinesa, artefato sinistro & soturno, prenhe daquela inefável, misteriosa animação do inorgânico que tanto assombrou o romantismo germânico; um gato - preto, obviamente - , com o fulgor de seu olhar luciferino, eventualmente exercendo a função de psicopompo na narrativa. São, pois, as peças d’um quebra-cabeça que o espectador será obrigado a montar por sua própria conta e risco, um quebra-cabeça evidentemente incompleto, fragmentário - a exemplo, vale dizer, do experimento de índole análoga que ele já nos oferecera em 1981 com MERRY-GO-ROUND.
Tal como vez por outra me apetece fazer quando abordo obras clássicas, ou que no mínimo me impressionaram vivamente, ora concentrar-me-ei com mais vagar numa sequência específica, uma sequência que reputo reveladora da ‘atitude central’ (Paul Valéry) do filme, de seu sentido mais recôndito y fatal.
Pois bem: eu diria que o ponto nevrálgico, o eixo de todas as encruzilhadas, o centro de gravidade, em suma, de HMJ, é a cena onde Marie entra em sua câmara sacrificial (assistam ao filme para compreender o significado disto) para proferir em tom solene, sentencioso y severo um punhado de palavras no idioma gaélico, certamente desconhecido para a grande maioria do público - na cena seguinte o texto é recitado novamente, agora em francês, como vossas excelências podem atestar na epígrafe desta resenha.
Trata-se de um geis, uma espécie de sortilégio / fórmula / rito da arcana tradição celta, que vincula magicamente uma pessoa à outra - o que pode representar uma bênção ou uma maldição, a depender do contexto; de qualquer maneira, descumprir seus termos significa dissolver o elo, apagar a lembrança do ser amado da mente daquele que foi alvo do encantamento.
Cá estamos, meus caros, nas províncias do mito & da mística, no étereo continente das lendas & narrativas. As referências e alusões abundam: n’algumas variantes de TRISTÃO E ISOLDA, recordemos, o vínculo entre os desafortunados jovens não é estabelecido por uma poção mágica, mas sim por um geis; analogamente, nas sagas do herói irlandês CúChulainn, ou ainda nos romances do Ciclo de Fionn mac Cumhaill, ritos similares também são celebrados.
No que concerne à economia simbólica do filme de Rivette, temos um mergulho no sobrenatural numa profundidade se calhar inédita em sua filmografia.
Conforme o próprio cineasta viria a declarar em entrevistas, a cena funciona essencialmente como um ponto de transição, um PORTAL, instaurando uma linha de demarcação, um espaço liminar entre o mundo dos vivos e o reino dos mortos. Para todos os efeitos, é um gesto cerimonial que não pode ser explicado racionalmente: Marie, uma entidade espectral, sela com Julien, ser vivente, um pacto cujo teor é essencialmente ambíguo, nebuloso - jura de amor eterno, por um lado / compromisso preternatural, por outro. Um pacto, vale dizer, que não admite cláusula de exceção: sua ruptura acarretará o esquecimento absoluto de Marie por parte de Julien.
Artista que trabalha com uma atenção ao detalhe verdadeiramente bizantina, Rivette sempre opera em vários níveis. No plano puramente linguístico, por exemplo, é interessante constatar como a construção frasal da fórmula em francês é propositadamente circular e paralelística (”je… tu...” / “je... tu...”), o que tão somente acentua seu caráter de litania ritual.
Importa verificar como o diretor organiza as duas sequências: a câmera se aproxima em dois movimentos (plano médio → close-up) e o som diminui até que a voz - primeiro no gaélico - ocupe todo o espaço diegético. A iteração imediata em francês confere de antemão ao texto um caráter de hipnótico estribilho; a circularidade sintática e a reiteração semântica, convergem para reforçar a sensação de fronteira entre os mundos; as escolhas formais, por seu turno - a iluminação crepuscular, os movimentos de câmera, o silêncio que precede a voz - fazem com que o geis transcenda a condição de mero expediente narrativo, transmutando-se em Portal.
Observe-se ainda que o sortilégio envolve outra dimensão fascinante: via de regra o que se vê nos contos de horror & mistério é o fantasma tentando de todas as formas possíveis y concebíveis transpor o Umbral para enfim encontrar no Além; no filme de Rivette, todavida, o avantesma emprega o geis como recurso in extremis para para conservar seu elo com o mundo dos vivos; destarte, trata-se d’uma alma que se recusa terminantemente a partir.
De resto, há uma indagação que me parece crucial: qual o sentido fundamental do recitativo em gaélico? E por que ele aparece antes da tradução em francês?
A resposta está, quero crer, no próprio título que Jacques Rivette propôs para seu quatuor: cenas da Vida PARALELA.
O texto em gaélico instaura uma twilight zone hermética, esotérica - que já foi a vertiginosa noite parisiense assombrada por Leni & Viva em DUELLE, ou a ruinosa fortaleza pirata de Morag & Giulia em NOROÎT. Em HMJ o cineasta dá um passo adiante em seu radical tratamento das convenções do mise-en-scène: o ‘mundo intermediário’ já não precisa ser figurado / representado como espaço físico, concreto - converteu-se em pura abstração, em projeção psíquica, onírica, espíritual, legendária.
Por fim, os leitores mais atentos decerto se recordarão da seguinte assertiva: “(...) uma obra admirável (...) não sem contudo exumar velhos problemas, paradoxos y perplexidades.” E quais seriam estes ‘problemas’? Muito simples: não há filme de Jacques Rivette sem um componente de gratuidade arrogante, de aleatoriedade indulgente, de pretensão descabida, quando não de deliberada mistificação. São características que sem dúvida incomodam sobremaneira certo tipo de espectador; quanto a mim, estou-me nas tintas: sou fã de carteirinha do homem, chova ou faça Sol. Seus filmes são geniais, brilhantes, inclusive por seus defeitos. Como se não bastasse, o cabra é corajoso: Rivette dobra, triplica, quintuplica a aposta.
SEMPRE.
*
Ten. Giovanni Drogo
Forte Bastiani
Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros


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