Alphonse van Worden - 1750 AD
Ora falarei, caríssimos irmãos d'armas, a propósito do teólogo, filósofo, linguista e engenheiro militar Attilio Mordini di Selva (1923 - 1966).
Mas por que cargas d'água falar justo agora, em pleno período natalino, sobre este conterrâneo e discípulo tardio de Dante Alighieri? A resposta é simples: Mordini fica a meio caminho entre perspectivas que o vinculam à escola perenealista (Guénon, Evola, Burckhardt,etc.), mormente pela crítica radical à modernidade, à secularização e ao racionalismo; e suas convicções profundamente católicas, sem no entanto jamais indulgir em quaisquer desvios gnósticos. É, portanto, um autor empenhado em restaurar aquilo que caracteriza como a 'tradição perene' da cristandade europeia, sob a égide contudo da ortodoxia romana. Como bem observa o pensador polonês Jacek Bartyzel, Mordini pretendia 'catolicizar' a orientação gibelina do Evola de livros como IMPERIALISMO PAGANO (1928) e IL MISTERIO DEL GRAAL (1937), propondo uma releitura da Teologia Imperial que por certo se inspirava na MONARCHIA de Dante , sem todavia abrir mão da plenitudo potestatis encarnada no Trono Petrino.
Este em tudo y por tudo enigmático, fascinante pensador florentino desafortunadamente morreu muito jovem; acrescente-se a isso o caráter idiossincrático, sobremaneira peculiar de seu estilo literário, e o fato de sua obra ter sido publicada de modo esparso e fragmentário - via de regra em editoras pequenas e revistas de acesso restrito - e temos a receita perfeita para a obscuridade a que este grande autor foi injustamente relegado no panorama do pensamento tradicionalista / dissidente europeu do século XX.
A obra mais conhecida (e porventura a mais influente) de Mordini é sem dúvida IL CATTOLICO GHIBELLINO (1989), a que enfim tive acesso em cópia física este ano. Trata-se d'uma compilação de conferências e artigos publicados originalmente entre 1956-62 em revistas como Il Ghibellino, Carattere etc. E é sobre o sentido geral desses textos que discorreremos brevemente.
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Atente-se já à partida para este o título, deliberadamente provocativo, até mesmo bombástico, sobretudo no âmbito da cultura católica italiana:
'O Católico Gibelino'
Como os srs. bem sabem, os gibelinos eram os partidários do Sacro Império na península itálica em seu intrincado, complexo e amargo conflito contra o Papado - por seu turno defendido pelos guelfos - no transcurso dos séculos XII - XIV; com efeito, é uma das faces do sempiterno antagonismo entre o Poder Espiritual e o Poder Espiritual através dos tempos. O propósito de Mordini é retomar essa controvérsia histórica para reinterpretá-la / solucioná-la à luz de uma nova teologia política.
E é justamente nesse sentido que o filósofo florentino empreenderá seu esforço para 'catolicizar' aquilo que em Evola emerge como mística imperial herdada de uma tradição solar pagã. A contrapelo do barão romano, Mordini insiste que o Império só é legítimo enquanto instrumento da Igreja. Em sua concepção o Imperador não é uma instância autônoma, mas sim o braço armado da Cátedra Petrina; assim sendo, logra articular exemplarmente duas teses aparentemente contraditórias: a) o primado da ordem imperial defendido pelos gibelinos e b) a supremacia do papado através da plenitudo potestatis, única instância capaz de conferir real legitimidade ao poder temporal.
De maneira que o 'católico gibelino' é um arquétipo, um tipo ideal weberiano, uma figura (no sentido jüngeriano do termo) aparentemente paradoxal, mas em verdade perfeitamente cabível, e no fundo até mesmo imprescindível para enfrentar os desafios da História: reivindica, por um lado, a grandeza e a universalidade do Império contra a reforma protestante, as revoluções nacionais, o iluminismo, o comunismo proletário, o laicismo moderno; e por outro, enquanto católico, submete a esfera do político ao horizonte do espírito, o mundo secular ao Reino de Deus.
Toda essa teologia política por certo envolve uma teologia da história. Para Mordini, o advento da Modernidade representou a desintegração da unidade existente no Medievo, onde Papado e Império eram os pilares da Civitate Dei. O humanismo, o liberalismo, o nacionalismo, o marxismo etc. são no fundo sintomas de um mesmo mal: a dessacralização do poder político, consequência funesta da ruptura entre o plano temporal e o espiritual. Há, pois, que retornar à Ordem tradicional: o Papa como Vicarius Christi que consagra o Imperador; o Imperador como Stupor Mundi (recuperando aqui o belo epíteto d'um dos mais magníficos soberanos do Sacro Império, Friedrich II Hohenstaufen), que reina sobre os homens.
IL CATTOLICO GHIBELLINO pode e a meu ver deve, em suma, ser interpretado como oportuna tentativa de se formular uma teologia política católica de índole tradicionalista em plena Guerra Fria, partindo do pressuposto de que tanto o capitalismo liberal quanto o comunismo marxista são ignomínias da modernidade. Mordini advoga teses de corte restauracionista, mas sem acalentar ilusões ingênuas: sua perspectiva é uma clave interpretativa da História, e nesse sentido muito mais uma fonte de inspiração do que qualquer coisa que possa se assemelhar a um programa político com pretensões concretas.
Sua morte precoce em 1966, com apenas 43 anos, mais ou menos coincide com o encerramento do Concílio Vaticano II; nefasto, aziago, pérfido sincronismo: no esteio do evento que transformaria profundamente a identidade da Igreja, pavimentando o caminho para uma postura de tolerância e, sejamos francos, em última instância submissão à mentalidade moderna, desaparecia um dos mais resolutos, indômitos e insignes apóstolos da Tradição. O legado de Mordini, inconveniente para todos aqueles seduzidos pelo luciferino esplendor das 'coisas novas' ('entendedores' entenderão...), foi relegado às sombras, enquanto falsos ídolos subiram à ribalta. Mas não importa: apesar de tudo, o legado permanece.
EXEMPLO TEU, LUTA NOSSA!
('entendedores' entenderão - pt. II a missão...)
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De resto, gostaria apenas de fazer duas observações adicionais: uma sobre as relações entre Mordini e Dante Alighieri, outra sobre a forma como ele compreende a noção de Katechon.
a) O ponto de partida do pensador toscano é indubitavelmente o modelo proposto por Dante em seu DE MONARCHIA: um Império Universal correspondendo à própria estrutura da Realidade, uma esfera harmônica e ordenada sob o primado do Criador. Somente este Corpo Político seria capaz de garantir a paz universal e, consequentemente, a possibilidade de plena realização espiritual de cada indivíduo. Dante sustenta que o imperador recebe sua autoridade diretamente de Deus, sem qualquer mediação do Papa. Mordini, por seu turno, tenciona corrigir o ilustre conterrâneo: ao mesmo tempo em que exalta a força e o glória da visão imperial, quer preservar a plenitudo potestatis do romano pontífice.
b) Mordini entende que a Igreja, Corpo Místico de Cristo, é a dimensão espiritual e teológica que informa o Katechon. Não obstante, para ser protegida na esfera temporal, a Igreja carece d'uma salvaguarda, que é a civilização católica sob a égide de um Império. O Katechon emerge, portanto, como a unidade orgânica entre Igreja, Civilização Católica e Império. E tal unidade se enfraquece significativamente pelo menos desde o século XVI. Sob a égide da Igreja, encarnação histórica do Corpo de Cristo; do Sacro Império, herdeiro político do Império Romano do Ocidente; e do Império Bizantino, por seu turno herdeiro politico do Império Romano do Oriente, forja-se a Cristandade. Com o Cisma de 1054, a Cristandade se divide entre a civilização católica, à oeste, e a ortodoxa, à leste. Ainda assim, conservam-se os elementos centrais da fé cristã, tanto no Ocidente católico quanto no Oriente ortodoxo. Permanece intacto, pois, o Katechon durante todo o transcurso do Medievo. A Reforma Protestante constitui, entretanto, um trágico ponto de inflexão, vale dizer, o início de um processo gradativo e inexorável de 'descristianização' do Ocidente, que se acentuaria dramaticamente com o advento da modernidade iluminista, filha dileta das heresias de Lutero e Calvino.
Hoje, no século XXI, perante uma Igreja cada vez menos influente no seio da civilização que deveria ser sua salvaguarda, talvez não seja irrazoável proclamar que em breve deixaremos de contar com a proteção do Katechon. Há que sublinhar que o termo final da descristianização do Ocidente seria o dobre de finados da Igreja, a morte do Katechon; e, portanto, a clave para a vinda do Anticristo. Caso a Santa Madre seja reduzida a uma situação de irresgatável impotência, a substância primordial que informa a Cristandande não logrará sobreviver - terrível e inexorável conclusão, que a meu ver Mordini assinaria embaixo.


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