quinta-feira, dezembro 04, 2025

O peculiar cinema de Jacques Rivette - VI


 

«Maintenant je suis à toi, tu es à moi.

Où je dois aller, tu m’accompagneras.

Pour ce que je dois faire, tu m’aideras.

Ne me fais pas défaut, sinon tu perdras jusqu’au souvenir de moi.»


Marie (Emmanuelle Béart)


*


É costume dizer que os gatos constituem a primeira linha de defesa d’um feiticeiro contra ataques sobrenaturais de entidades malignas; quando eles começam a morrer, ou mesmo a manifestar qualquer tipo de inquietação, o mago já sabe que alguma coisa não vai bem em seus domínios. Julien (Jerzy Radziwiłowicz) é um relojoeiro; isto é, uma sutil, discreta, elusiva modalidade de feiticeiro, alguém capaz de construir / reparar mecanismos que mensuram, ditam e regem o TEMPO...

Marie (Emmanuelle Béart), por seu turno, é uma revenante, uma alma penada que habita o plano intermediário entre os vivos e os mortos; não logrou atravessar completamente o Umbral, e por isso vaga em agonia, sem conforto y sem consolo, até que possa cumprir seu DESTINO...

Madame X (Anne Brochet), por fim, a um só tempo vilã, vítima & verdugo, desempenha uma função oracular e judicativa. É a Senhora dos Caminhos & Descaminhos, que detém a clave para uma possível REDENÇÃO...


Tempo.


Destino.


Redenção.


Uma tríade de coordenadas assaz adequadas para delimitar o território em que se move HISTOIRE DE MARIE ET JULIEN (2003), porventura a mais sibilina das criações do período final de Jacques Rivette, não por acaso o mais enigmático dos grandes artífices do cinema francês.

Mas... serão mesmo ‘adequadas’? Agora já não sei, com toda pureza d’alma.

Em todo caso, prossigamos. O processo de gestação do filme foi longo e acidentado: em verdade teve início em 1975, no seio do mais ambicioso projeto do cineasta: a tetralogia Scénes de la Vie Paralelle - que aliás a princípio se chamaria Les filles du feu, possivelmente aludiando ao fantástico, feérico y febril universo literário de Gérard de Nerval. Ora bem, entre março-abril daquele ano Rivette rodaria DUELLE (UNE QUARANTAINE) e em maio NOROÎT (UNE VENGEANCE); o cronograma estabelecido pelo realizador e pelo produtor Stéphane Tchalgadjieff previa para agosto o início dos trabalhos para MARIE ET JULIEN, com Leslie Caron e Albert Finney nos papéis principais e Brigitte Rouan interpretando Mme. X. Todavia, tudo iria por água abaixo em apenas dois dias: à beira de um colapso nervoso, Rivette decide cancelar as filmagens; com efeito, mesmo para um notório magnetizador do fogo dos deuses há limites. Desnecessário dizer, suponho, que o quarto título da série (uma comédia musical a ser estrelada por Anna Karina e Jean Marais) também seria arquivado - bem, quiçá misericordiosamente...

Fade out, corta para 2003. Vinte anos depois, Rivette resolve ajustar contas com seus fantasmas. O resultado, como de costume em se tratando do diretor, é mais uma obra admirável em seus acertos & desacertos, descortinando novas possibilidades, dialogando vigorosamente com o passado, sem deixar de trazer à tona, contudo, velhos problemas, paradoxos y perplexidades.

Sublinhemos já de início um elemento que salta aos olhos: a obsessão do realizador francês por simetrias y assimetrias materiais y imateriais, detectáveis na forma e/ou perceptíveis apenas nas diáfanas tramas do IDEAL. Assim como em seu magnvm opvs OUT 1: NOLI ME TANGERE (1971), cada movimento / deslocamento de corpos, mentes y desígnios em HMJ engendra seu perfeito contrário, e vice-versa, desdobrando-se num labirinto fractal. Outrora/Agora, Passado/Presente, Punição/Perdão, Danação/Remissão, Adrienne/X, Marie/Julien, é todo um hipnótico bailado de posições & contraposições, pontos & contrapontos.

Registre-se outrossim a paixão rivettiana pelo críptico maquinário dos conciliábulos & complôs, conspiratas & conjurações, conjuras & conspirações. Da mesma maneira que em seus coirmãos DUELLE e NOROÎT, tudo em HMJ exsuda & irradia inquietação & incerteza: é uma carta que transita entre o Aqui & o Além; uma boneca chinesa, artefato sinistro & soturno, prenhe daquela inefável, misteriosa animação do inorgânico que tanto assombrou o romantismo germânico; um gato - preto, obviamente - , com o fulgor de seu olhar luciferino, eventualmente exercendo a função de psicopompo na narrativa. São, pois, as peças d’um quebra-cabeça que o espectador será obrigado a montar por sua própria conta e risco, um quebra-cabeça evidentemente incompleto, fragmentário - a exemplo, vale dizer, do experimento de índole análoga que ele já nos oferecera em 1981 com MERRY-GO-ROUND.

Tal como vez por outra me apetece fazer quando abordo obras clássicas, ou que no mínimo me impressionaram vivamente, ora concentrar-me-ei com mais vagar numa sequência específica, uma sequência que reputo reveladora da ‘atitude central’ (Paul Valéry) do filme, de seu sentido mais recôndito y fatal.

Pois bem: eu diria que o ponto nevrálgico, o eixo de todas as encruzilhadas, o centro de gravidade, em suma, de HMJ, é a cena onde Marie entra em sua câmara sacrificial (assistam ao filme para compreender o significado disto) para proferir em tom solene, sentencioso y severo um punhado de palavras no idioma gaélico, certamente desconhecido para a grande maioria do público - na cena seguinte o texto é recitado novamente, agora em francês, como vossas excelências podem atestar na epígrafe desta resenha.

Trata-se de um geis, uma espécie de sortilégio / fórmula / rito da arcana tradição celta, que vincula magicamente uma pessoa à outra - o que pode representar uma bênção ou uma maldição, a depender do contexto; de qualquer maneira, descumprir seus termos significa dissolver o elo, apagar a lembrança do ser amado da mente daquele que foi alvo do encantamento.

Cá estamos, meus caros, nas províncias do mito & da mística, no étereo continente das lendas & narrativas. As referências e alusões abundam: n’algumas variantes de TRISTÃO E ISOLDA, recordemos, o vínculo entre os desafortunados jovens não é estabelecido por uma poção mágica, mas sim por um geis; analogamente, nas sagas do herói irlandês CúChulainn, ou ainda nos romances do Ciclo de Fionn mac Cumhaill, ritos similares também são celebrados.

No que concerne à economia simbólica do filme de Rivette, temos um mergulho no sobrenatural numa profundidade se calhar inédita em sua filmografia.

Conforme o próprio cineasta viria a declarar em entrevistas, a cena funciona essencialmente como um ponto de transição, um PORTAL, instaurando uma linha de demarcação, um espaço liminar entre o mundo dos vivos e o reino dos mortos. Para todos os efeitos, é um gesto cerimonial que não pode ser explicado racionalmente: Marie, uma entidade espectral, sela com Julien, ser vivente, um pacto cujo teor é essencialmente ambíguo, nebuloso - jura de amor eterno, por um lado / compromisso preternatural, por outro. Um pacto, vale dizer, que não admite cláusula de exceção: sua ruptura acarretará o esquecimento absoluto de Marie por parte de Julien.

Artista que trabalha com uma atenção ao detalhe verdadeiramente bizantina, Rivette sempre opera em vários níveis. No plano puramente linguístico, por exemplo, é interessante constatar como a construção frasal da fórmula em francês é propositadamente circular e paralelística (”je… tu...” / “je... tu...”), o que tão somente acentua seu caráter de litania ritual.

Importa verificar como o diretor organiza as duas sequências: a câmera se aproxima em dois movimentos (plano médio → close-up) e o som diminui até que a voz - primeiro no gaélico - ocupe todo o espaço diegético. A iteração imediata em francês confere de antemão ao texto um caráter de hipnótico estribilho; a circularidade sintática e a reiteração semântica, convergem para reforçar a sensação de fronteira entre os mundos; as escolhas formais, por seu turno - a iluminação crepuscular, os movimentos de câmera, o silêncio que precede a voz - fazem com que o geis transcenda a condição de mero expediente narrativo, transmutando-se em Portal.

Observe-se ainda que o sortilégio envolve outra dimensão fascinante: via de regra o que se vê nos contos de horror & mistério é o fantasma tentando de todas as formas possíveis y concebíveis transpor o Umbral para enfim encontrar no Além; no filme de Rivette, todavida, o avantesma emprega o geis como recurso in extremis para para conservar seu elo com o mundo dos vivos; destarte, trata-se d’uma alma que se recusa terminantemente a partir.

De resto, há uma indagação que me parece crucial: qual o sentido fundamental do recitativo em gaélico? E por que ele aparece antes da tradução em francês?

A resposta está, quero crer, no próprio título que Jacques Rivette propôs para seu quatuor: cenas da Vida PARALELA.

O texto em gaélico instaura uma twilight zone hermética, esotérica - que já foi a vertiginosa noite parisiense assombrada por Leni & Viva em DUELLE, ou a ruinosa fortaleza pirata de Morag & Giulia em NOROÎT. Em HMJ o cineasta dá um passo adiante em seu radical tratamento das convenções do mise-en-scène: o ‘mundo intermediário’ já não precisa ser figurado / representado como espaço físico, concreto - converteu-se em pura abstração, em projeção psíquica, onírica, espíritual, legendária.

Por fim, os leitores mais atentos decerto se recordarão da seguinte assertiva: “(...) uma obra admirável (...) não sem contudo exumar velhos problemas, paradoxos y perplexidades.” E quais seriam estes ‘problemas’? Muito simples: não há filme de Jacques Rivette sem um componente de gratuidade arrogante, de aleatoriedade indulgente, de pretensão descabida, quando não de deliberada mistificação. São características que sem dúvida incomodam sobremaneira certo tipo de espectador; quanto a mim, estou-me nas tintas: sou fã de carteirinha do homem, chova ou faça Sol. Seus filmes são geniais, brilhantes, inclusive por seus defeitos. Como se não bastasse, o cabra é corajoso: Rivette dobra, triplica, quintuplica a aposta.

SEMPRE.


*


Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

terça-feira, dezembro 02, 2025

Brevíssima nota sobre o sentido da noção de 'Aristocracia do Espírito'



Se há um gesto lírico que epitomiza a noção de Aristocracia do Espírito, bem como o conceito de Torre de Marfim, trata-se da decisão de Jorge Luis Borges de proferir na Univ. de Belgrano uma conferência sobre a imortalidade - da alma, da literatura, do paradoxal destino dos poetas - na mesma data E horário da final da Copa de 1978 na Argentina; recorde-se ainda que não maís do que alguns poucos km separavam o palco do prélio decisivo - o estádio Monumental de Núñez - e o auditório onde o mítico escritor proferiu sua alocução.

Foi em tudo e por tudo uma das mais memoráveis conferências na carreira de Borges; consta, por exemplo, que tão somente um único, solitário espectador compareceu ao evento.

Era quanto bastava para abrir o Portal, estabelecer a Egrégora, fechar o Círculo.


*

Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

segunda-feira, novembro 24, 2025

Descortina-se a NOVA ERA

Cap. Alphonse van Worden - 1750 AD




Retumbâncias, Ressonâncias, Radiâncias. 

Fulgores, Fragores, Fervores. 

Conclamações, Conjurações, Conspirações.

Cataclismas & Catástrofes a Leste & a Oeste de Kandahar; Revoltas & Revoluções nas Ihas Místicas; Guerras & Guerrilhas nos Países Exteriores.


....


ENQUANTO ISSO... 

Enquanto isso... Envoltas nas oníricas emanações de infindas, insondáveis y inexoráveis madrugadas levantinas, brumosas efusões de quimeras & solilóquios se espargem numa rutilante policromia de caleidoscópios fantasmáticos, e as veredas labirínticas da Sierra Morena se dissolvem nos miasmáticos contrafortes do Bastiani, os delíquios sinuosos de Emina e Zibedea evocam a melancolia evanescente de Maria Vescovi, e as espectrais hordas tartáricas precipitam-se em sua cavalgada cinérea sob a égide de Zoto, o Enforcado...

A meu lado, em contrito silêncio, o crepuscular Ten. Drogo entrega-se, creio, a devaneios & divagações do mesmo jaez; cientes, ambos, de que, célere, de nossa jornada o termo final se aproxima, e de que, no da Eternidade abismal oceano, imersos logo estaremos.


...


NÃO OBSTANTE... 

NÃO OBSTANTE... A soturna planície de dédalos agônicos em que vagamos vez por outra é mitigada pelo advento de salvíficas epifanias, sob os etéreos eflúvios, a inefável beatitude & a sacral sapiência de CHRISTUS PANTOCRATORعلي بن أبي طالب; e a despeito da excruciante tribulação engendrada pela azáfama da Guerra Transfinita, os egrégios Senhores do Concento Universal eventualmente ofertam a estes réprobos, míseros servos que somos, o dulcíssimo aljôfar do Entendimento Divino. 


...


ASSIM SENDO... 

Assim sendo... 'inda hoje, à lvx da Avrora Nascente, o avstero & avgvsto tenente Drogo dirigiu-me as seguintes palavras: 

- por obséquio, capitão Van Worden solicito a atenção do preclaro confrade, para juntos considerarmos mister de irrefragável relevância para ambos. Ora bem, y sem mais circunlóquios: há que pregar a PALAVRA com renovado vigor & revigorada vontade, predicá-la por plagas & pradarias nunca d'antes palmilhadas & navegadas; com efeito, o Círculo Ritual de nossos Irmãos d'Armas já não basta. De maneira que vos proponho a seguinte empreitada: a criação d'um novo posto avançado, um baluarte com maior raio de ação, para que a PALAVRA se propague URBI ET ORBI. Se me permitis, já tenho todo o plano de ação traçado, inclusive com o sítio da edificação. 

- ó frater diletíssimo, vossa alocução dissolveu meu coração em lágrimas do mais puro júbilo! Pois outro não era meu talante & desígnio, há já muitos & muitos lustros! Mãos à obra, insigne Drogo: ora dizei-me então o novo sítio, pois incontinenti enviarei uma epístola aos irmãos d'armas. 

- ei-lo:


https://arcanacoelestiauniversalia.substack.com/


Pelo que teve início a NOVA ERA. 


 




quarta-feira, outubro 15, 2025

A propósito de ZANGUEZI (1922 / Velimir Khlebnikov)





Não é sempre que se tem a oportunidade, o privilégio e a ventura de se ler Велими́р Хле́бников (nosso venerando y venerável Velimir Khlebnikov) em bom (e deveras inventivo) português; oportunidade essa que desta feita nos chega pelas competentes mãos de Mário Ramos, poeta e professor de literatura russa na USP desde 2010. 

A obra traduzida por Ramos não poderia ser mais fascinante: Зангези / ZANGUEZI (1921-22 / ed. bras. Nauta 2025), sem dúvida um dos textos mais fascinantes e representativos do autor que V. Maiakovski um dia descreveu como o "Colombo dos novos continentes poéticos, agora povoados e cultivados por todos nós".

Mas que seria este ZANGUEZI, se calhar a grande síntese, a pedra filosofal do projeto estético, poético, conceitual y existencial de Khlebnikov? É decerto um 'monólito negro' em forma de texto literário, diria eu já à partida; um enigma no seio d'outro grande enigma, qual seja, seu próprio criador, este paradoxal, desconcertante, inefável amálgama entre bardo, profeta, linguista, sacerdote, matemático e magnetizador do fogo dos deuses. 


I


A começar pelo título: ZANGUEZI. Alguns estudiosos sustentam que seria um portmanteau formado pela combinação entre os nomes dos rios Zambeze e Ganges, revelando o fascínio do pai fundador do cubofuturismo pela geografia de países 'exóticos' e remotos para o imaginário europeu do período; outros tantos acreditam que possa ser um neologismo derivado do vocábulo calmuque (povo nômade de origem mongol) zyange (que poderia ser traduzido como 'o mensageiro'),  dando conta dos estudos de linguística de Khlebnikov em S. Petersburgo. Ambas as hipóteses são razoáveis e plausíveis - inclusive perfeitamente complementares; entretanto, eu humildemente aventaria uma terceira possibilidade: o escritor eslavo desejava criar uma fraternidade transfinita y transcendental entre seu alter ego espiritual, o Zaratustra histórico da antiga Pérsia e o Zaratustra filosófico de Nietzsche, tão vastas, insondáveis y inextricáveis são as labirínticas (inter)conexões do espírito humano.


II


Isto, pois, quanto ao título. E no que se refere ao gênero, que seria ZANGUEZI? Vejamos o que afirma Khlebnikov em sua introdução ao poema:

“Uma narrativa é construída com palavras, assim como um edifício é construído por unidades. A supernarrativa, ou transnarrativa (сверхповесть) é constituída por fragmentos independentes.”

Este novo gênero, criado pelo poeta para classificar trabalhos sui generis como ZANGUEZI, KA (1915) etc. envolve fundamentalmente uma fusão / combinação - em aparência caótica e aleatória, mas estruturada a partir de uma lógica interna sobremaneira complexa e rigorosa - entre mais os diversos registros, literários e não-literários. Destarte, coexistem na obra a poesia lírica, o poema em prosa, a profecia bíblica, a narrativa épica arcana, a paródia do ensaio acadêmico etc. 

ZANGUEZI é tudo isso, muito embora não possa ser decomposto nos componentes que em tese constituem seu conjunto - se é que os srs. me compreendem. É sintético, misteriosa e elusivamente sintético, totalizante, mas não analítico - malgrado possamos dizer que foi planejado e executado por seu autor com a precisão de um tratado de lógica simbólica.  É sobretudo uma obra a que se pode atribuir o qualificativo de intemporal / atemporal com inteira e absoluta justiça: por um lado, em numerosas passagens soa quase como se fora uma espécie de pendant do GILGAMESH mesopotâmico, evocando o assombro, o terror, o tremor y o êxtase das cousas que pertencem à aurora da História; por outro contudo, não raro transmite a sensação d'um texto que poderia ter sido composto na manhã de hoje. 


III 


Tal é a estrutura, a moldura. Mas e a substância, a matéria de que são feitos os sonhos, pesadelos, delírios & ideais de ZANGUEZI - ou pelos de algumas de suas passagens mais emblemáticas? Trata-se de ZAUM - neologismo formado pelo prefixo за́ ('além', 'trans') e pela palavra умь ('mente', 'conhecimento', 'razão'); um termo cuja mera prosódia já reverbera um sentido mágico, encantatório - ZAUM / ALAKAZAM / ABRACADABRA

Concebido inicialmente pelo poeta Aleksei Kruchyonykh, fraterno amigo de Khlebnikov (com quem aliás colaboraria em diversos projetos), e ulteriormente desenvolvido por ambos, ZAUM pode ser definido como o 'idioma transmental / transracional'. É a linguagem universal do Inconsciente, que ultrapassa / transcende os limites da razão e do pensamento. Refletindo os aspectos mais utópicos do socialismo, seus criadores acreditavam que ZAUM poderia ser um instrumento fundamental para a criação de uma nova consciência coletiva, uma ferramenta crucial no processo de formação do Novo Homem. 

Não obstante, com o autor de A TROMBETA DE MARTE as coisas nunca são assim tão óbvias e unidimensionais; há sempre algo além, outras galáxias, outras dimensões.  Assim sendo, Khlebnikov também caracteriza ZAUM como a "linguagem dos pássaros" (ecos de Farid al Din Attar?); ou a "linguagem dos deuses" (Agrippa?); e ainda a "linguagem das estrelas" (John Dee?); outras galáxias, outras dimensões... universos paralelos.

Na prática, ZAUM se vale de procedimentos tais como a radical desconstrução morfológica, sintática e semântica do idioma; invenção incessante de neologismos; amplo emprego de toda sorte de jogos de palavras, bem como de assonâncias, aliterações etc. Ou seja, um laboratório de audaciosos experimentos linguísticos em moto contínuo. 

Além de ZANGUEZI e KA, suponho que a obra em que ZAUM atinge sua potência máxima de expressão seja a ópera VITÓRIA SOBRE O SOL (Победа над Cолнцем / 1913), porventura o texto-assinatura, o grande carro-chefe do futurismo russo como um todo, de certo modo encapsulando suas melhores possibilidades. É outrossim uma obra-vitrine, pois é o fruto coletivo de um verdadeiro dream team da vanguarda soviética:  libreto de  Kruchyonykh, prólogo de Khlebnikov, cenografia do mítico artista plástico Kazimir Malevich e música de Mikhail Matyushin, compositor hoje relativamente obscuro, mas à época figura de bastante renome.  


IV


Não poderia encerrar este artigo sem acrescentar uma ou duas palavras a propósito d'um dos elementos por assim dizer mais inelutável y inequivocamente crípticos na obra de uma figura por si só tão essencialmente elusiva quanto Khlebnikov: as 'Tábuas do Destino'. 

Com efeito, é o nome que ele atribui a um insólito conjunto de fórmulas matemáticas que alegava ter concebido, e que poderiam ser utilizados para descobrir a existência de padrões cronológicos relativos a eventos históricos marcantes para a Humanidade. Por intermédio desses padrões, o poeta russo  julgava ser possível prever / estabelecer com considerável grau de certeza as datas de acontecimentos futuros importantes. 

Khlebnikov ficou de tal modo obecado com suas 'tábuas' que chegou a dedicar um livro inteiro a esses cálculos e especulações; desafortunadamente, até hoje não há tradução alguma desse trabalho, que imagino ser estrondoso. 


*


De resto, deixo vossas senhorias com um breve tributo que escrevi em louvor a este maravilhoso, incomparável escritor (V); e por fim,  com que o realmente interessa: alguns excertos de ZANGUEZI, na primorosa tra(trans)/recriação de Mário Ramos (VI). Os trechos escolhidos  ilustram bem, assim espero, algumas das facetas mais notáveis / idiossincráticas do poema: as 'tábuas do destino'; correlações misteriosas entre geometria e linguagem; o uso de ZAUM; os vertiginosos rasgos proféticos. 


*


V


ELE, que esbofeteou o Rosto do Público, preparou uma Armadilha para os Críticos, assumiu a presidência do Globo Terrestre e fez soar a Trombeta de Marte, tomando de assalto os insondáveis abismos siderais!


ELE, que nos revelou a Palavra como Tal; nos comoveu pela Fome; nos encantou pelo Riso; e que, magnetizando o Fogo dos Deuses, nos mesmerizou com a Linguagem Transmental, conquistando os infindos universos do inconsciente cósmico!


ELE, Arcano Transfinito, VELIMIR KHLEBNIKOV!!!

   


VI


PLANO IV


(...) As tábuas do destino! Eu vos talharei em letras da noite negra, tábuas do destino! 

Três números! O meu eu da juventude, o meu eu da velhice, o meu eu da meia-idade: juntos sigamos pelo pó dos caminhos! 

105 + 104 + 115 = 742 anos e 34 dias. Leiam, olhos, a lei da ruína dos impérios.

Eis a equação: X = k + n (105 + 104 + 115 - (10² - (2n - 1) 11) dias. 

K é o ponto de partida no tempo, a marcha dos romanos sobre o leste, a batalha do Ácio. O Egito rendeu-se à Roma. Isto foi em dois de setembro do ano 31 A.C. 

Com n=1, o valor de X na equação da ruína dos povos será o seguinte: X=21 de Julho de 711, ou o dia em que a Espanha perdeu sua imponência, conquistada pelos árabes. Caiu a imponente Espanha!

Com n=2, X= 29 de Maio de 1453:  foi o dia da tomada de Constantinopla pelos turcos selvagens. A cidade dos reis inundou-se de sangue e as gaitas de fole turcas transbordaram seu encanto selvagem. Osman pisoteou o cadáver da Segunda Roma. Na catedral de Sofia dos olhos azuis estava a capa verde do Profeta. Sobre os cavalos pançudos vão os vencedores, de turbante branco na cabeça.

A canção das três asas do destino: uma no cravo, outra na ferradura! A unidade sai de cinco e vai para dez, da asa para a roda, e os movimentos dos números em três bases (105 , 104 , 115 ) são fixados pela equação.

Entre a queda da Pérsia, em 1º de outubro de 331 a.C., sob a lança de Alexandre, o Grande, e a queda de Roma, sob os golpes potentes de Alarico, em 24 de agosto de 410, passaram-se 741 anos, ou (10⁵ + 10⁴ + 11⁵) – 3⁶ + 1,5 + 1/2 - 2³ × 3² dias.

As Tábuas do Destino! Leiam, passantes, leiam. Os números guerreiros passarão diante de vós como projeções filmadas em diferentes segmentos de tempo e em diferentes planos de tempo. E todos os seus corpos, de diferentes cidades reunidas, compõem o bloco de tempo entre as quedas dos impérios que traziam o horror.


___


PLANO VIII 


Esta é a língua estelar.

(...)

V significa a rotação de um ponto em torno de outro

(o movimento circular).

L é a quebra da queda, ou os movimentos que, em geral,

vão de um plano a um ponto em queda, em linha transversal (lancha, loar).

R é um ponto que atravessa transversalmente uma área.

P é o movimento rápido de um ponto que sai de outro ponto, e assim, de muitos pontos para outros, uma multidão pontilhada a partir de um ponto; a expansão do volume (pairar, planície).

M é a pulverização do volume em infinitas pequenas partes.

S é a saída de pontos a partir de um ponto imóvel (sinergia).

K é, aqui, o ponto de encontro dos movimentos de muitos pontos num ponto imóvel. Assim, o significado de K é a tranquilidade, a aquietação (...). 


___


PLANO X 


Vai, poderói!

Marcha, poderói! Possarda, possardor!

Possaz, eu podo!

Poderudo, eu posso! Podei, eu podo!

Podei, meu eu prumado! Aprumado! Podei, posseidor!

Poderandai, olhos! Prumados! Aprumados!

Desfilai, podeidades!

Marcha, posseidor! Mãos, mãos!

Possálico, podivinoso semblante

cheio de pondorações!

Poderardentes olhos,

posselhonários pensares,

pondereiros sobreolhos!

O rosto dos pondentreiros.

A mão dos pondentreiros!

Possenvasores!

Mãos, mãos!

Possublimes, possálicas, podivinas.

Portenteiras, potenciosas, poderousadas!

Posserga-se, semblante!

Onipodentes, posserosas, podeidades!

Vocês espalharam-se, cabelos, possindígenos,

Poderanos: poderdeiros, pelo possenhor podivinoso,

por podescendentes,

No meio dos possinfantes: o potentaço, dos poderozes proverossimeis,  

Enrosca-se um sapoderoso,

Possencantado por podivineiros podencantos de possentes  posselhardários. 

Na multidão de possinfantes e poderdeiros.


___


PLANO XVIII


Quando a Horda do Leste 

Saqueou as ruas de Roma, 

E fez do branco mármore negros grilhões, 

Dando de comer às legiões de corvos,

Dentro de duas vezes três à décima primeira 

Ergueu-se de novo a montanha de ossos:

Batalhas nos campos de Kulikovo.

Nisto Moscou punha os pingos nos "is", 

Escrevendo com as tintas das vitórias, 

Do fado de Roma, uma nova história.

Do Leste dos povos cessou a metralha, 

Acabou-se a grandiosa batalha 

Com a carga dos povos do Leste.

O moinho dos tempos 

Dos ossos de Kulikovo

Construiu um dique, um morro de esqueletos. 

Na estepe corre o grito: "Não!" 

É de Moscou o guardião.

Ondas de povos em profusão 

Sobre o Ocidente rolavam 

Os godos, os hunos e mais os tártaros. 

Dentro de duas vezes três à décima primeira.

Moscou ergueu-se num elmo de neve, 

E disse: “Nem mais um passo!" ao leste.

Lá, onde secava a terra tártara (...)



*


Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros








sábado, julho 12, 2025

Esboços para uma nova síntese filósofica: um programa possível

Alphonse van Worden - 1750 AD





Inspirações filosóficas preliminares


- O modelo teórico aqui esboçado apresenta uma alternativa assaz idiossincrática, mas a meu perfeitamente defensável. Em matéria de filosofia política, inspira-se sobretudo nas seguintes linhas de pensamento:


- O realismo cético e 'mecanicista' de Thomas Hobbes (exceção feita à tese contratualista).

- A teoria do direito divino dos reis de Jacques-Bénigne Bossuet.

-  O conservadorismo social de David Hume.

- O tradicionalismo ultramontano de Joseph de Maistre e Donoso Cortés. 

- A teologia política de Charles Maurras. 

- O decisionismo de Carl Schmitt.


- Resumidamente a proposta em jogo consiste na produção d'uma síntese teórica de aspectos das correntes de pensamento supracitadas com os postulados centrais da epistemologia empirista.



I. Fundamentos epistemológicos


1. O primado da experiência sensível e dos limites do observável


- A fonte primordial do conhecimento humano é a experiência sensível, e não a razão inata ou a introspecção metafísica. Só há duas modalidades de enunciados epistemologicamente significativos: QUESTÕES DE FACTO e RELAÇÕES ENTRE IDEIAS (Hume). As 'questões de facto', referentes à realidade concreta que nos cerca, são verificáveis / comprováveis ou não através da experiência; as ‘relações entre ideias', por seu turno, concernentes às matemáticas, são construídas por método axiomático. 


- Interessam-nos aqui fundamentalmente as 'questões de facto'. Nesse sentido, todo juízo válido deve estar ancorado na percepção, na observação, na comparação e na inferência indutiva.


# Corolário político I: não existem direitos naturais, tampouco 'liberdades inalienáveis'. Tais princípios derivam de construções metafísicas não verificáveis. A hipótese d'uma “igualdade natural” entre os homens, por exemplo, é um construto dogmático, não uma constatação empírica. A observação do mundo e o testemunho da História dão conta de que a desigualdade foi, é e provavelmente sempre será regra geral em todos os domínios da Existência.


2. Negação do intelectualismo essencialista


- Não há essências fixas, mas tão somente regularidades, simetrias, assimetrias, parâmetros e padrões de comportamento e ação detectáveis / identificáveis por indução. O conhecimento é falível, provisório, adaptativo. Sistemas morais, modelos de organização política, doutrinas jurídicas etc. devem responder, pois, à realidade concreta, não a universalizações abstratas. Teorias científicas não são estritamente 'verdadeiras', mas sim QUASE-verdadeiras, válidas até que um novo esforço de aproximação correspondencial entre objeto e sistematização teórica produza uma QUASE-verdade mais exata. 

 

# Corolário político II: uma ordem política fundada em abstrações tais como "dignidade humana", "vontade geral" ou "fraternidade universal" será necessariamente ilegítima, improfícua e disfuncional. A política deve ser o reflexo da vida em sociedade e da experiência histórica, não a projeção utópica de uma razão transcendental.  


*


II. Filosofia da História


3. Empirismo, ceticismo e pessimismo


- A História, se considerada sob o escrutínio da observação empírica, não contempla / chancela qualquer noção de progresso moral.  A ciência e a técnica avançam continuamente; a moralidade humana, contudo, permanece a mesma: brutal, tribal, instintiva. A 'guerra de todos contra todos' (Hobbes) segue na ordem do dia; o homem continua a ser o 'lobo do homem'. As revoluções via de regra desaguam em caos ou degradação. As civilizações emergem e colapsam ciclicamente, milênio após milênio. 


# Corolário político III: a concepção liberal de que a liberdade política conduz ao progresso não possui lastro fático e é reiteradamente desmentida pela História. O liberalismo político não raro resulta em entropia, fragmentação social, relativismo moral e dissolução do princípio da autoridade. O Império da Liberdade tende inexoravelmente ao Reino Crepuscular da Anomia.


4. Instituições e Tradições como experimentos que  atravessam os séculos


- As instituições que perduraram ao longo do História podem e devem ser encaradas como 'soluções empíricas' testadas e aprovadas pelo uso. A monarquia, a Igreja, as ordens militares, os códigos de honra, as tradições familiares são exemplos de instituições que corresponderam E correspondem a arranjos históricos criados pelo Homem para atender a necessidades reais da sociedade; destarte, longe de serem um 'entulho autoritário', ou então os 'restos mortais' de tempos idos, constituem uma força viva, que ademais proporciona um sentido de permanência, estabilidade e coesão ao corpo social.  


# Corolário político IV: o Estado teocrático assim como o autocrático não são monstruosidades aberrantes, mas sim o produto histórico resultante de soluções empíricas que funcionaram. O próprio método científico nos obriga a respeitar essas instituições, pois elas como 'tecnologias' políticas, econômicas, sociais e morais validadas pela experiência histórica. 


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III. Antropologia filosófica


5. Naturalismo rigoroso e desigualdade estrutural


- O ser humano é movido por paixões, pulsões, hábitos e interesses próprios. Não há motivo, evidência alguma para crermos em sua capacidade de autogoverno. A igualdade é uma condição biologicamente e socialmente insustentável. A liderança é um fenômeno natural em qualquer agrupamento humano. 


#Corolário político V: o governo das massas é uma impossibilidade estrutural e funcional. A democracia é uma ficção útil para esconder os mecanismos, estratégias e intenções daqueles que exercem o poder real. Um modelo hierárquico, fundado no mérito - compreendido aqui como materialização da Aristocracia do Espírito - e/ou hereditariedade ritualizada, sempre será mais legítimo, eficiente e honesto.


6. O Estado como 'fato' natural


- O Estado não é um contrato, mas sim uma ocorrência natural, um desdobramento orgânico e inevitável, uma extensão do domínio e da obediência presentes em todas as formas de vida social existentes na História. Assim como a alcateia carece do Alpha, a pólis carece do soberano, cuja função precípua consiste em promover a paz civil, o bem-estar social e a prosperidade do corpo político. 


#Corolário político VI: todo 'contratualismo' é uma construção ficcional incompatível com a observação criteriosa da História. Nunca houve um 'pacto' real firmado entre indivíduos livres e iguais para constituir uma sociedade política, teses contratualistas são apenas uma maneira de mascarar as relações de dominação e submissão que caracterizam tanto o processo de formação e consolidação do Estado quanto seu próprio 'maquinário'.  


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IV. Teologia política 


7. Religião como tecnologia social e e Cesaropapismo empírico


- A religião sempre foi, historicamente falando, um instrumento de coesão moral e social sobremaneira eficaz; isto a despeito de quaisquer considerações de índole metafísica, bem entendido. A obediência ritual, a transcendência simbólica, a tradição hierárquica, todas essas instâncias funcionam como estruturas reguladoras do desejo e do conflito.


# Corolário político VII: defender a laicidade absoluta é um erro técnico. A convergência entre o Altar e o Trono pode ser uma resposta empírica legítima e viável para o problema da anomia. A religião oficial, controlada ou promovida pelo Estado, é uma tecnologia de controle social tão necessária quanto o  Exército, a Toga, a Imprensa ou a Moeda.


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V. Soberania e legitimidade


8. Soberania e poder decisório


- A soberania é definida por quem tem a capacidade de decidir em contextos e situações excepcionais (Schmitt); assim sendo, independe de qualquer concepção abstrata de legalidade, lastreando-se pelo contrário por sua capacidade de intervenção e efetividade concreta. A autoridade que se impõe pela força, pela  ordem, pela continuidade e pela faculdade de comandar é legítima pelo simples fato de existir.


# Corolário político VIII: o Direito Divino dos Reis (Bossuet) pode e deve ser reinterpretado como um símbolo empírico da autoridade sacralizada; constitui-se, a esse respeito, num modelo de organização política de longa duração, que garantiu estabilidade institucional por mais tempo que qualquer experimento liberal.


 


quarta-feira, abril 23, 2025

Vox Populi (1883) - Villiers de L'Isle-Adam (tradução minha)

Alphonse van Worden - 1750 AD





Preclaros Irmãos d'armas, saudações. 

Encontrei hoje casualmente em meus arquivos esta tradução - um tanto quanto livre e improvisada, mas nem por isso descuidada - feita já há alguns anos. Trata-se d'um  conto / poema em prosa do brilhante escritor francês Philippe-Avgvste de Villiers de L'Isle-Adam, pouco conhecido entre nós, já que nosso gosto médio sempre foi mais afeito à sensaboria realista / naturalista que às "aspirações desenfreadas pelo Infinito" (como dizia Baudelaire) da literatura fantástica de inspiração simbolista ou decadentista. 

Neste relato em particular o autor demonstra que seu talento e sensibilidade se estendem generosamente a esferas em geral pouco associadas a seu nome: crítica social, filosofia moral, alegoria teológica. 'Entendendores entenderão' porque cargas d'água julguei por bem postá-la justo agora, o que se oculta nas entrelinhas, o texto, o contexto & o subtexto. 

Boa leitura a todos.


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VOX POPULI  (1883)

Jean-Marie-Mathias-Philippe-Auguste Villiers de l'Isle-Adam


Para o sr. Leconte de Lisle


“O soldado prussiano prepara seu café num candeeiro apagado”

Sargento Hoff.


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Grande parada nos Champs-Élysées, naquele dia!

Desde essa visão já lá se foram doze anos de vicissitudes. Um sol de verão atirava suas longas setas douradas sobre os telhados e cúpulas da velha capital. Miríades de janelas devolviam centelhas cintilantes; o povo, imerso numa luz poeirenta, apinhava-se nas ruas para ver o exército passar.

Sentado em frente ao gradil do átrio da Notre-Dame, sobre um banco de madeira — os joelhos cruzados sob andrajos negros — o Mendigo centenário, decano da Miséria de Paris, rosto enlutado e tez cinérea, rugas cor de terra sulcando-lhe a pele, com as mãos postas sob a tabuleta que chancelava oficialmente sua cegueira, oferecia sua figura espectral ao Te Deum do evento em torno.

Toda essa gente — não eram eles, afinal, seus próximos? Os passantes em êxtase — não seriam seus irmãos? Decerto: a raça humana! De resto, esse inquilino do soberano portal não era de todo desprovido de bens: o Estado lhe concedia o apanágio de ser cego.

Detentor desse galardão e da respeitabilidade inerente àquele lugar de esmolas garantidas que oficialmente ocupava, possuindo até mesmo a condição de eleitor — era nosso igual… a não ser pela... LUZ.

E esse homem, espécie de retardatário entre os vivos, murmurava de tempos em tempos um queixume monocórdio — sílaba por sílaba — a expressão profunda de toda a sua existência:

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”

À sua volta, sob as tonitruantes vibrações vindas do campanário — lá fora, além da muralha escura dos seus olhos — o alvoroço da cavalaria pisoteando o solo, e, em ondas, o toque dos clarins, as aclamações da multidão, misturadas às salvas dos Veteranos, às altivas ordens de comando, ao rumor do aço, ao trovejar dos tambores que marcavam o passo de infindáveis desfiles de infantaria — toda uma ruidosa glória lhe chegava! Seus agudos ouvidos captavam até mesmo a flutuação dos estandartes, com suas franjas pesadas perpassando as couraças. 

Milhares de relâmpagos de sensações – pressentidas e nebulosas – eram evocadas na mente daquele velho prisioneiro da escuridão! Ele adivinhava a febre que incendiava os corações e mentes da cidade.

E o povo, como de costume hipnotizado pela aura que envolve a Audácia e a Fortuna, bradava em uníssono a divisa da ocasião: 

“Viva o Imperador!”

Todavia, entre os silêncios dessa tempestade triunfal, uma voz desgarrada se elevava do lado da grade mística. O ancião, a nuca reclinada contra o ferro das barras, girando as pupilas mortas em direção aos céus - esquecido por esse povo cujo verdadeiro anseio ele parecia sozinho encarnar, o anseio oculto sob os ‘hurrahs!’, o anseio secreto e pessoal - salmodiava, como fatídico intercessor, sua frase ora pejada de mistérios: 

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”

__

Grande parada nos Champs-Élysées, naquele dia!

Eis que dez anos se foram desde o sol daquela celebração! Os mesmos ruídos, as mesmas vozes, a mesma fumaça! Uma surdina, não obstante, moderava então a azáfama da euforia popular. Uma sombra saturava os olhares. As salvas convencionais do palanque do Pritaneu se mesclavam, desta vez, com os fragores distantes das baterias de nossos fortes. E, aguçando os ouvidos, a multidão já tentava discernir, no eco, a resposta dos canhões inimigos que se avizinhavam.

Dirigindo a todos muitos sorrisos, o governador passava conduzido pelo trote compassado de seu elegante cavalo. O povo, apaziguado por aquela confiança que uma aparência irrepreensível sempre lhe inspira, saudava a aparição daquele soldado intercalando aplausos marciais e cânticos patrióticos. 

Mas os termos da saudação d’outrora haviam se modificado: aturdida, a massa proferia a divisa do momento: 

“Viva a República!”

E logo ali, ao pé do sublime umbral, ainda se distinguia a solitária voz de Lázaro. O porta-voz da consciência popular oculta não alterava, ele mesmo, a rigidez de sua constante demanda.

Alma sincera dos festejos, erguendo aos céus seus olhos apagados, exclamava, entre silêncios, com um tom de resignada constatação:

“Tende piedade de um pobre cego, por eu vos suplico!”

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Grande parada nos Champs-Élysées, naquele dia!

Então foram nove os anos de sofrimento suportados desde aquele sol turvo!

Oh! O mesmo estrépito! Os mesmos estrondos d’armas! Os mesmos relinchos!  Mais discretos, contudo, que no ano anterior;  mas ainda assim estridentes.

“Viva a Comuna!”, vociferava o povo, ao sabor do vento.

E a voz do sempiterno Eleito do Infortúnio reiterava, em seu espaço sagrado, seu estribilho retificador do único pensamento daquele povo. Balançando a cabeça, gemia nas sombras:

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”

E, duas luas depois, quando, ao som das derradeiras badaladas do sino do sino, o Generalíssimo das forças regulares do Estado passava em revista seus duzentos mil fuzis – ai de nós! – ainda fumegantes da trágica guerra civil, o povo, apavorado, urrava, contemplando ao longe os edifícios em chamas:

“Viva o Marechal!”

E embaixo, emergindo do recinto salubre, a Voz imutável — a voz do veterano da Miséria humana — repetia sua imprecação maquinalmente dolorosa e impiedosa:

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”

E desde então, de ano em ano, de revista em revista, de alarido em alarido, fosse qual fosse o nome lançado ao acaso pelo povo em seus vivas, aqueles que escutam atentamente os rumores da terra sempre distinguiram, no auge das clamorosas proclamações revolucionárias e das festas belicosas que as sucedem, a Voz remota, a Voz verdadeira, a Voz íntima do terrível Mendigo simbólico — o Vigia noturno que bradava a hora exata do Povo — a incorruptível sentinela da consciência dos cidadãos, aquele que restitui integralmente a prece oculta da Multidão e condensa seu suspiro.

Sumo Pontífice implacável da Fraternidade, esse Titular autorizado da cegueira física jamais cessou de implorar, como mediador involuntário, a caridade divina para seus irmãos em consciência.

E quando o Povo, ébrio de fanfarras, sinos e artilharia, turbado por esses arroubos fátuos, tenta em vão, sob quaisquer termos falsamente entusiásticos, ocultar de si mesmo seu verdadeiro desígnio, o Mendigo, voltado para o Céu, com os braços erguidos, tateando em meio às densas trevas que o envolvem, ergue-se no limiar eterno da Igreja, e com uma voz cada vez mais plangente, mas que parece alcançar além das estrelas, continua a manifestar sua inexorabilidade de profeta:

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”



sexta-feira, março 28, 2025

Da série 'reflexões d'uma época de crise'




Nunca entendi, c/ toda pureza d'alma, porque as pessoas resistem tanto ao processo de zombieficação; ora, deve ser muito bom virar zombie, convenhamos.


Senão vejamos:


I - você fica livre de qualquer prurido ou convenção social; ademais, é um modo de vida relativamente simples e prático: tudo que você precisa fazer é sair matando e comendo;

II - não há preconceito de qualquer natureza entre os zombies, seja de cor, idade, gênero sexual, condição social ou qualquer outro tipo: todos são igualmente aceitos e bem acolhidos na comunidade zombie;

III - consequentemente, podemos sem hesitação concluir que o processo de zombieficação abole peremptoriamente toda e qualquer distinção de classe, pelo que se converte, portanto, na única fórmula eficaz até hoje conhecida de se criar uma sociedade legitimamente igualitária;

IV - há, portanto, um genuíno, louvável sentido de vida comunitária entre os zombies. Reparem que jamais encontramos um zombie sozinho, eles sempre agem em conjunto, de forma coordenada e harmoniosa, consoante o seguinte princípio: onde come um zombie, comem todos;

V - e por fim, last but not least, a zombieficação constitui o túmulo definitivo de todo o orgulho, de toda a vaidade, arrogância e presunção, o que sem dúvida constitui um passo de suma importância para a edificação do espírito e elevação da alma.



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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros

quinta-feira, fevereiro 20, 2025

In Praise of the FAERIE QVEENE

Alphonse van Worden - 1750 AD




Se há um autor que não me canso de visitar y revisitar, este é sir Edmund Spenser, sobretudo em se tratando de seu monumental FAERIE QVEENE, magnífica, incomparável e transcendente catedral em versos, onde em síntese magistral se amalgamam o ciclo arturiano; a poesia épica de Virgílio; a engenharia lírica petrarquiana; a exaltação patriótica; o fervor teológico; a arte a serviço da edificação moral dos pósteros. 

Ler o FAERIE QVEENE é mergulhar na própria substância de que são entretecidos os sonhos y as mitologias; é peregrinar por sibilinas sendas, entre vales sombrios e fúlgidas planícies, c/ seus portentosos castelos e ominosas masmorras; entre miríades de dragões, salamandras, ogros, trolls, elfos, quimeras, gigantes, ciclopes, bruxos y feiticeiras, bem como entre audazes cavaleiros andantes e excelsas donzelas, toda uma vertiginosa miríade de lendas y narrativas. Com efeito, trata-se indubitavelmente do píncaro, a grande obra-prima em toda a história da literatura fantástica, o mirífico fanal onde Tolkien e tantos y tantos outros generosamente beberam. 

Como se não bastara, ao contrário do que se poderia pensar, em termos estilísticos é Spenser, e não Shakespeare, o mais influente poeta da literatura inglesa, o que fica patente nas obras de autores como Milton, Pope, Blake, Wordsworth, Coleridge, Shelley, Keats, Tennyson etc.

Por fim, deixo vossas senhorias c/ um dos belíssimos sonetos monostróficos que constam do proêmio da obra. 



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A Vision vpon this conceipt of the Faery Queene


ME thought I saw the graue where Laura lay

Within that Temple, where the vestall flame

Was wont to burne, and passing by that way,

To see that buried dust of liuing fame,

Whose tombe faire loue, and fairer vertue kept,

All suddenly I saw the Faery Queene:

At whose approch the soule of Petrarke wept,

And from thenceforth those graces were not seene.

For they this Queene attended, in whose steed

Obliuion laid him downe on Lauras herse:

Hereat the hardest stones were seene to bleed,

And grones of buried ghostes the heuens did perse.

Where Homers spright did tremble all for griefe,

And curst th'accesse of that celestiall theife






quarta-feira, fevereiro 19, 2025

Breve nota a propósito da weird fiction de William Hope Hodgson


 

Muito embora nem sempre acerte o alvo (suas observações sobre E.T.A Hoffmann não poderiam ser mais equivocadas), não há como negar que SUPERNATURAL HORROR IN LITERATURE (1927), o célebre ensaio de crítica literária de autoria de H. P. Lovecraft, é quase sempre um guia seguro para o gênero. 

 É o caso da novela THE HOUSE ON THE BORDERLAND (1908), do escritor inglês William Hope Hodgson. Lovecraft argumenta que a obra seria um "clássico de primeira categoria" caso não padecesse de alguns clichês sentimentais; aliás, segundo o ficcionista norte-americano, este seria o grande defeito de Hodgson, sobretudo em seu romance de maior fôlego, THE NIGHT LAND (1912 / pretendo ler este ano). 

Pois ouso discordar do excelso autor de THE CALL OF CTHULHU. Pelo menos em se tratando da obra em questão, o componente romântico a meu ver funciona como mais uma faceta na odisseia lisérgico-espacial vivida (sonhada?) pelo protoganista, mais uma peça neste enigmático quebra-cabeças psicofísico.   

THE HOUSE ON THE BORDERLAND parece-me ser um dos primeiros exemplos do que se poderia denominar de 'horror cósmico', vale dizer, a fusão entre a literatura de horror e a então nascente ficção científica, que mais tarde seria celebrizada por autores como o próprio Lovecraft, Lord Dunsany, Clark Ashton Smith, Robert W. Chambers etc. Assim sendo, ao conceber uma trama onde o elemento de terror claustrofóbico e paranoide se expande através de visões monumentais (e em última instância apocalípticas) de eventos em escala cósmica, Hodgson sem dúvida rompe c/ convenções e tropos literários estabelecidos e contribui decisivamente para a criação de um novo paradigma.  

Há ainda um caráter até mesmo 'psicodélico' em diversas passagens do texto. As descrições de fenômenos astronômicos, as viagens no seio do espaço-tempo, o colapso ao fim e ao cabo do Universo conhecido, tudo isso conjura uma atmosfera de alucinatório, feérico e vertiginoso delírio, a experiência do horror sagrado perante tudo aquilo que inconcebivelmente arcano, inefável y insondável, a sensação de 'Space is Deep' tão presente nas melhores narrativas lovecraftianas ou em filmes como 2001: A SPACE ODYSSEY e SOLARIS

Ressalte-se ainda um traço fascinante, que aproxima THE HOUSE ON THE BORDERLAND do que se poderia chamar de modernidade literária: o labiríntico interplay entre Fantasia e Realidade. A mansão em ruínas, situada num recanto hostil e remoto do countryside irlandês, funciona como um portal (meta)físico entre a Terra e dimensões / universos paralelos, além de toda imaginação. Estamos, portanto, num terreno que de certo modo já tangencia autores como Borges, Buzzatti ou Calvino. 

Todavia, a conexão mais evidente e direta é de facto com a ficção lovecraftiana, se calhar sobretudo no que diz respeito ao sentimento de crescentes desamparo, solidão e pavor do homem que constata sua inanidade e insignificância perante ALGO que está muito além de sua compreensão. Em Hodgson já não há monstros e/ou criaturas sobrenaturais de corte tradicional, mas sim forças inomináveis, deidades abissais que desafiam inexoravelmente sua sanidade e até mesmo seu senso de realidade.  

THE HOUSE ON THE BORDERLAND merece, enfim, todos os encômios.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros