sexta-feira, março 29, 2024

O peculiar cinema de Jacques Rivette - III

Alphonse van Worden - 1750 AD




MERRY-GO-ROUND (Jacques Rivette / 1981, 160m) foi um fracasso tanto de crítica quanto de público. E muito embora eu tenha até gostado bastante do filme, posso perfeitamente entender o porquê: trata-se d'uma obra profundamente... bem, o melhor adjetivo que encontro é o termo em inglês 'infuriating'. 

Pois em verdade vos digo: raríssimas vezes assisti a um filme de tal modo labiríntico, 'esotérico', praticamente inextricável.  Projeto de retomada do cineasta após o de certo modo traumático encerramento da tetralogia 'Scènes de la Vie Parallèle' (da qual Rivette só completaria os dois primeiros capítulos - DUELLE e NORÔIT), MERRY-GO-ROUND se apresenta como uma espécie de filme policial noir ambientado neste universo paralelo.  Só para os senhores terem uma ideia do que estamos falando, o caráter notoriamente sibilino, dir-se-ia até mesmo hermético, das tramas de clássicos do gênero como THE LADY FROM SHANGAI (Orson Welles / 1947) ou KISS ME DEADLY (Robert Aldrich / 1955), parece em cotejo c/ a obra de Rivette tão singelo y linear quanto o roteiro de uma comédia de Adam Sandler - s/ qq demérito para estas obras-primas do cinema americano, saliente-se. Exemplo disso, vale sublinhar, é a solução adotada por Rivette para a infeliz circunstância de Maria Schneider, talvez a personagem central do filme, ter abandonado as filmagens: empregar a atriz Hermine Karagheuz para substituí-la, s/ todavia fornecer ao espectador qualquer pista ou indício disto, tanto assim que nos créditos ela é simplesmente identificada como 'l'autre'. 

Com efeito, se você compreende a arte cinematográfica como um veículo criado para contar histórias c/ início, meio e fim, um filme como este pode se transformar numa experiência simplesmente excruciante, verdadeiramente insuportável.  Não obstante, para aqueles que concebem o cinema como um dispositivo catalisador de atmosferas, lanterna mágica capaz de conjurar paisagens oníricas, sondar as sendas do inconsciente y peregrinar pelos páramos da irrealidade, do mundo imaginário, este desconcertante filme s/ dúvida pode ser uma jornada das mais estimulantes.   

A mise-en-scéne e a estrutura narrativa de MERRY-GO-ROUND são essencialmente fragmentárias y erráticas, no limite da arbitrariedade aleatória; nesse sentido, os primeiros 25, 30 minutos do filme, relativamente lineares e bem concatenados, funcionam talvez como uma armadilha para espectadores incautos / ingênuos. Um duo formado por um contrabaixista e um clarinetista pontua de quando em quando a ação c/ interlúdios de free improvisation, e estranhamente (ou se calhar emblematicamente) este porventura seja o ponto focal mais constante, o eixo dramático de sustentação mais sólido que Rivette concede ao espectador, o que a meu ver resulta fascinante e particularmente hipnótico, a música como fio condutor da dramaturgia. 

No desfecho de MERRY-GO-ROUND as irmãs protagonistas saem de cena, enquanto o amante / namorado e a elusiva 'outra' trocam sorrisos misteriosos num promontório sombrio, após um exasperante jogo de fuga e perseguição que perdura ao longo de todo o filme.  Qual a conclusão, a última mensagem, a solução definitiva final para este caleidoscópio de enigmas? Nunca saberemos, e acredito que nem mesmo Jacques Rivette alguma vez soube. A impressão que se tem é a de um imenso quebra-cabeças, por certo sugestivo e belo, mas onde estão faltando numerosas peças. É algo que indubitavelmente tem o condão de irritar a esmagadora maioria das pessoas, mas que para mim sempre foi y será fonte de inesgotável fascínio, até mesmo obsessão.



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