Alphonse van Worden - 1750 AD
VARGTIMMEN.
A 'Hora do Lobo'.
Uma arcana expressão nórdica para o horário que a maior parte dos grimoires medievais considera mais propício à celebração de pactos e invocação do... Diabo. Três horas da manhã, para ser mais exato.
E é precisamente o momento do dia em que o protagonista Johan Borg (magnificamente interpretado por Max von Sydow) se vê acossado / assaltado pelos espectros (imaginários?) de seu passado, ora convertidos numa legião de vampíricos avantesmas emergindo dos báratros abismais do inconsciente.
VARGTIMMEN (1968) é de certo modo um ponto fora da curva na trajetória de seu criador Ingmar Bergman. Trata-se essencialmente de um filme de horror. Um soturno y sombrio pesadelo gótico, não obstante carregado de humor negro y sarcasmo cruel - o que aliás corresponde ao universo estético que o cinesta sueco exalta neste filme: o fantasmagórico mundo do romantismo e do expressionismo alemães. C/ o acréscimo, vale dizer, de generosas doses de fantasia surrealista; aliás, se me permitem uma analogia extravagante, eu diria que o filme poderia ser descrito como a versão que um improvável Buñuel escandinavo eventualmente faria para o magnífico Vampyr (1932) de C.T. Dreyer.
Pois VARGTIMMEN é uma grande declaração de amor de Bergman ao que de mais augusto a arte germânica produziu, que ele aqui evoca através da delirante fábula gnóstica da Zauberflöte de Mozart; da magia onírica dos contos de Hoffmann em sua faceta mais noturna, inclusive recorrendo diretamente a dois célebres personagens do ficcionista prussiano - o arquivista Lindhorst e o maestro Kreisler; da pulsão de morte do expressionismo, com suas falanges de sombras espectrais, macabros duplos e marionetes em soirées alucinatórias (um aceno talvez ao mítico Schatten - Eine nächtliche Halluzination / 1920 , de Arthur Robison), seus sinistros espelhos e labirintos, admiravelmente reproduzidos pela fotografia de Sven Nyqvist.
Em VARGTIMMEN Bergman propõe ao espectador um mundo assombrado pelas 'emanações glaciais do além' de que falava Béla Balázs. É o incerto, instável y inefável universo do homem que já não vê, mas tem VISÕES. É, c/ efeito, o inquietante domínio da 'misteriosa agitação do inorgânico' dos românticos teutônicos, onde seres vivos e objetos estão em estado de animação suspensa, um mundo paralelo onde o indivíduo não tem mais acesso aos dados objetivos da Realidade, podendo tão somente projetar visões subjetivas e interiorizantes a partir de suas quimeras.
Wilhelm Worringer falava sobre a presença d'um denso véu entre o homem nórdico e a Natureza. Eu diria que há um fosso, e não somente entre o homem nórdico e Natureza, mas entre toda a Humanidade e a própria Realidade como um todo. E este fosso está aumentando, inexoravelmente, dia após dia, ano após ano, geração após geração. E talvez já fosse intransponível à época do filme. VARGTIMMEN (que se calhar se converteu em meu Bergman predileto c/ o passar do tempo) é uma terrificante visão do fosso, a partir do fosso e sobre o fosso. O artista, antena da raça que é, proclama o veridito: não há escapatória. Que Deus se apiede de nós.
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PS
Aos amigos y confrades que pretendem reivindicar qualidades inadvertidas para o que se poderia chamar de 'cinema de entretenimento', sobretudo em cotejo c/ o que por outro lado poderíamos designar como 'cinema de arte', eu replicaria o seguinte:
Tais qualidades não são apenas inadveridas - o problema é que quase sempre elas simplesmente INEXISTEM mesmo.
De resto, o legado de mestres como Bergman, Welles, Dreyer, Rivette, Eisenstein ou Murnau não pode ser subestimado. Certamente pode ser criticado, reavalidado, redimensionado, relativizado, mas nunca subestimado, o que inevitavelmente acontece quando elevamos criadores e obras menores ao mesmo plano de excelência. E o cinema não merece isso, assim como a literatura ou a música.
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