*artigo para o MBA em Relações Internacionais da FGV.
Expressiva parcela dos
economistas e cientistas políticos preocupa-se em demasia com a dimensão
‘protocolar’, o ordenamento formal da
política; ou, n’outras palavras, com sua superfície jurídico-institucional, mas
não com a essência do fenômeno
político, ou seja, com a natureza substancial das estruturas de poder que se
cristalizam ou não num determinado Estado / formação social ao longo do tempo.
A esse respeito,
reveste-se de suma utilidade observar, mesmo que sumariamente, dois casos
emblemáticos: o chinês e o russo.
Reiterando o que acima
asseveramos, devemos estar sempre atentos, pois, ao que está por trás do
mero aspecto formal do ordenamento jurídico-institucional numa dada sociedade:
em praticamente 5000 anos de História, por exemplo, a China jamais mudou de
sistema de governo: sempre foi e, até onde
se pode fazer qualquer previsão, sempre será um império governado por um
imperador e seus mandarins, a despeito deste ou daquele modelo de organização
econômica, etc. Mao Zedong ou Deng Xiaoping nada mais foram que imperadores sob
outro título e protocolo, assim como o PCCh é tão somente um 'mandarinato
vermelho'. Portanto, ainda que a organização política específica denominada
‘PCCh’ venha a acabar, será substituída por outra oligarquia de mandarins com as
mesmíssimas características e atribuições, sob a égide d'um imperador, seja
qual for o título ou designação que venha a assumir.
O caso russo, outrossim,
é análogo ao caso chinês: desde o momento em que o país se constituiu como
entidade estatal, não
conheceu qualquer sistema de governo de caráter não-autoritário. E isto
rigorosamente nada tem a ver com o modelo de organização econômica vigente em
cada período: tanto sob o modo de produção asiático quanto sob o feudalismo, o
capitalismo emergente, o socialismo ou a restauração capitalista, a Rússia
viveu sob um sistema político autocrático, vertical e centralizado. Por
conseguinte, jamais conheceu qualquer sistema de governo 'democrático', e
qualquer governante que eventualmente cometer o catastrófico erro de tentar
modificar isto, decerto malogrará fragorosamente; Gorbachev, por exemplo, que chegou a timidamente ensaiar algo nesse
sentido, teve menos de 5% dos votos válidos ao candidatar-se à presidência
russa em 1996, e é até hoje figura deveras impopular no panorama político do
país.
Em suma: da mesma forma
que Mao Zedong ou Deng Xiaoping foram tão somente 'imperadores vermelhos',
Stalin & Cia. foram nada mais que 'tzares vermelhos'. E tal panorama não se
modifica através de mudanças de modelo de organização econômica: sob as
reformas capitalistas, a China continua governada por um 'Imperador vermelho' e
seu 'mandarinato vermelho' (o PCCh); do mesmo modo, a Rússia
pós-restauração da economia de mercado segue governada por um 'tzar
presidencial' e seu aparato burocrático-administrativo rigidamente
hierarquizado e omnipresente (antes a burocracia tzarista, depois o PCUS e
agora a coalizão de 'partidos-fantoche' organizada por Vladimir Putin).
Destarte, quero crer que
o problema consiste em acreditar, pois, que as sociedades humanas são
determinadas em última instância pelo fator econômico, ignorando, portanto, as
fundamentais esferas da cultura, do substrato simbólico-religioso e da política
como instância específica. Tal viés analítico leva seus proponentes a
hiperdimensionar as diversas possibilidades de organização institucional de um
Estado em detrimento da substância político-cultural que informa este mesmo
Estado, isto é, o que é passível de mudança em detrimento dos elementos
permanentes no seio do Ethos
nacional. Enfim: as formas institucionais
mudam, mas, n’alguns contextos, a substância
política permanece.
Mas concentremo-nos
doravante na Rep. Popular da China, que é o objeto precípuo de análise
neste artigo.
A partir de todo o
interesse despertado pela China nas últimas décadas, mormente no que se refere
às marcantes especificidades do modelo chinês, proponho as reflexões que se
seguem como locus privilegiado
para debatermos, aquele que é, sem dúvida alguma, o país mais enigmático e
paradoxal do mundo contemporâneo.
Não há hoje, creio, país
que suscite tamanho número de indagações a um só tempo complexas e fascinantes,
tanto para economistas quanto cientistas políticos, sociólogos e historiadores;
trata-se, com efeito, d'uma portentosa dor de cabeça para as ciências sociais
compreender o que realmente se passa no 'Império do Centro', sobretudo nos
termos da seguinte questão, também de âmbito mais geral: quais as verdadeiras
relações ou, em outras palavras, como se dão as interconexões entre Política,
Economia e Sociedade Civil?
A República Popular da
China, a partir da onda de choque, tanto simbólico-institucional quanto
político-administrativa, desencadeada pela morte de Mao Zedong em 1976, deu
início, já em 1978, a um amplo programa de reestruturação econômica. Desde
então, o processo chinês, ainda que com movimentos pendulares de maior ou menor
intensidade, tem se caracterizado por um norte estratégico nítido: abertura
econômica + manutenção do monopólio do poder político por parte do PCCh.
Trata-se, portanto, de liberalizar a atividade econômica, de flexibilizar
relações trabalhistas e mecanismos de gestão, sem, contudo, renunciar ao
controle operacional de todo o processo por parte do mandarinato vermelho.
Assim sendo, todas as iniciativas de abertura econômica são estritamente
condicionadas pelos desígnios e necessidades estratégicas do Estado chinês; há
que frisar, aliás, o sucesso do regime na implementação dessa sutil dialética,
pois o Partido não apenas conservou intacto o monopólio do poder, mas logrou
fazê-lo ao mesmo tempo em que promove um duradouro ciclo de intensíssimo
desenvolvimento econômico capitalista.
Ainda que se possa
indagar a propósito da viabilidade ulterior de tal dinâmica, ou seja, sobre por
quanto tempo mais o PCCh, que tão hábil vem se revelando na improvável dialética
de, a um só tempo, centralizar o poder político e abrir a economia, conseguirá
tão prodigiosa mágica socioeconômica, há que reconhecer que, até o momento,
tudo está ocorrendo conforme o talante do aparato dirigente. Mesmo o desafio
representado, por exemplo, pela comunicação em tempo real, com a massificação
da internet, tem sido enfrentado com eficácia pelo Estado, que estabelece um
maciço bloqueio do conteúdo online disponível. Além de limitar o acesso a
determinados sites, o governo chinês também logra impedir a pesquisa de certos
assuntos em mecanismos de busca. Os dispositivos de controle passam ainda pelo
redirecionamento de páginas para sítios equivalentes; pela necessidade de
autorização prévia do governo para o funcionamento de provedores de internet; e
pela canalização de todo o conteúdo online para ‘portas da entrada’, as gateways, onde ocorre uma fiscalização /
filtragem geral do tráfego internético. Mesmo o emprego de sistemas de
comunicação por VPN (Virtual Private
Network), isto é, a criação de redes privadas de acesso, com trocas
constantes de endereço de IP para burlar os mecanismos de controle, não garante
a privacidade dos usuários, como bem o demonstra o número constante de detenção
de dissidentes políticos por intermédio de dados colhidos pela chamada Great Firewall of China.
Não obstante, não há
como ignorar as consideráveis tensões e contradições inerentes ao processo chinês.
Com efeito, é patente hoje que o PCCh está cada vez mais enredado num dilema de
resolução sumamente intrincada: o Partido sabe que, a intensificar-se o
processo de abertura, sua inexorável conseqüência lógica na esfera política será a perda do monopólio
do poder, o que com razoável grau de certeza é passível de mergulhar o país
numa crise de proporções inimagináveis; ao mesmo tempo, a melhor, mais sólida e
inquestionável justificativa para a manutenção do regime de partido único é
justamente o progresso econômico logrado pelo processo de abertura; assim
sendo, o aparato dirigente do Império do Centro tem a seu cargo uma empreitada
das mais árduas e intrincadas: conservar a unidade
territorial do país e o domínio do Partido sem arrefecer a força motriz do
desenvolvimento material.
Conseguirá o PCCh levar a
bom termo tal intento? Trata-se d'outra complexa questão.
Outro aspecto, de índole
a meu ver crucial para o debate que aqui nos entretêm, passa sem dúvida pelas
relações que se estabelecem entre o Estado e a Sociedade. Penso não haver
grandes dúvidas, por exemplo, a propósito da constatação que, em termos estritamente
econômicos, a China é hoje um país estruturado em bases capitalistas: malgrado
o Estado ainda atue como grande indutor e fiador do processo econômico, há
vários setores importantes da economia já nas mãos da iniciativa privada; o
país adota uma legislação deveras flexível e favorável às atividades do setor
financeiro; as leis trabalhistas praticamente inexistem (licença-maternidade,
férias e folgas remuneradas, ou outros direitos trabalhistas do mesmo jaez),
não havendo, portanto, a estrutura de seguridade social presente, em maior ou
menor medida, já há décadas nas grandes economias mundiais (tanto assim que
há hoje uma facção do PCCh, tida como a 'esquerda' do Partido, que está a
bater-se pela implementação d'uma legislação trabalhista e d'uma rede de
previdência social veramente efetivas); total ausência de controle no emprego
de energias ‘sujas’, o que está a gerar um crescente problema ambiental no
país; estímulo contínuo e sistemático ao consumo interno, de maneira a
equilibrar a balança comercial e gerar superávit fiscal de forma artificial;
maciço subsídio estatal a diversos setores produtivos, assim propiciando às
mercadorias chinesas preços imbatíveis na arena do comércio internacional; política de
tolerância velada relação à pirataria e falsificação de produtos, inclusive
suscitando de denúncias a respeito do suposto envolvimento de agências
governamentais com redes ilegais de atacado e varejo; um panorama, enfim, a
exibir todas as características ultrapredatórias de um modelo ‘hipercapitalista’
, cuja agressividade e voracidade são de fazer inveja à Inglaterra vitoriana.
Por outro lado, e porventura em conseqüência do
que foi adrede exposto, não se pode de forma alguma considerar a sociedade
chinesa como uma sociedade liberal; muito pelo contrário: o ordenamento
institucional vigente continua adotando o monopólio da representação política
pelo PCCh, que exerce rígido controle sobre todos os mecanismos e instâncias
administrativas do país, tanto na esfera executiva quanto em termos de poder legislativo
e judiciário. Trata-se, outrossim, d’uma sociedade rigidamente hierárquica e
controlada de cima para baixo, com presença maciça da autoridade estatal em
todos os níveis, mormente na educação e nos meios de comunicação. Então,
pergunta-se: é possível a convivência entre uma economia liberal e uma
sociedade sob forte controle do Estado?
A essa altura alguém poderia trazer à baila o
notório exemplo chileno, pois de fato o regime autoritário de Pinochet
implementou no país políticas econômicas de cunho decididamente monetarista
durante as décadas de 70 e 80. Todavia, é mister sublinharmos dois aspectos
importantes: a) a economia chilena era e é infinitamente menos complexa e
multifacetada que a chinesa; b) muito embora o regime 'pinochetista' possa ser classificado
como um regime autoritário, não me parece cabível qualificá-lo como
'totalitário', pois jamais houve no Chile algo sequer vagamente similar à
estrutura de controle social, cultural, político e econômico do PCCh, cujo
imperativo sobre a sociedade chinesa se capilariza uniformemente em todos os
níveis. De maneira que a indagação permanece em pauta: é possível o convívio
entre totalitarismo político e liberalismo econômico? Se possível, seria um
modelo estável e duradouro ou, pelo contrário, um contexto inevitavelmente
fadado a gerar, porventura já a médio prazo, pontos de estrangulamento
insuperáveis?
Por fim, é mister assinalar que, em termos
geoestratégicos, descortina-se para a sempiterna Catai um cenário deveras
alvissareiro: a progressiva consolidação dos laços estabelecidos pela SCO-Shanghai
Cooperation Organisation, tratado de segurança mútua firmado em 2001
entre os governos de Rússia, China, Casaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e
Uzbequistão, envolvendo cooperação militar de alto nível entre os Estados
signatários. Vale também sublinhar que, d'entre os países que participam da
organização na condição de 'Estados-observadores' inclui-se a República
Islâmica do Irã, que já pleiteou seu ingresso definitivo na entidade; consta,
enfim, que receberá o status de
país-membro em 2016.
Será este porventura, aqui fazendo um
despretensioso exercício de futurologia, o embrião d'um futuro Imperium euro-asiático, supina
encarnação do ethos telurocrático?
_____
Muito bem: tendo em vista os elementos que
apresentei nos parágrafos anteriores, proponho por fim as seguintes indagações:
1) Tendo em vista que, no horizonte da China
contemporânea, Política e Economia evoluem em direções opostas, quais seriam as
verdadeiras relações ou, em outras palavras, como se dão as interconexões entre
Política, Economia e Sociedade Civil?
2) Logrará o PCCh conservar a unidade territorial
do país e o domínio do Partido sem arrefecer a força motriz do desenvolvimento
material?
3) É possível a convivência entre uma economia
liberal e uma sociedade totalitária?
4) Se possível, seria um modelo estável e
duradouro ou, pelo contrário, um contexto inevitavelmente fadado a gerar, quiçá já a
médio prazo, pontos de estrangulamento insuperáveis?
4 comentários:
Dai que podemos concluir que a farsa chamada democracia liberal burguesa não é algo universal. Pode funcionar em países como França e Estados Unidos, mas na Rússia, na China ou no Irã a história muda completamente de figura.
Exatamente. Não é universalizável, tal como pretende a propaganda iluminista-liberal.
Escreves bem, sem verborragias e ao mesmo tempo de forma polida. Belo texto, ideias claras e assunto relevante. Bom blog
Saudações marxistas-leninistas!
Obrigado pela deferência!
Saudações gibelinas!
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