quinta-feira, novembro 05, 2015

República Popular da China: o enigma dentro de um enigma

 Alphonse van Worden - 1750 AD

*artigo para o MBA em Relações Internacionais da FGV.




Expressiva parcela dos economistas e cientistas políticos preocupa-se em demasia com a dimensão ‘protocolar’, o ordenamento formal da política; ou, n’outras palavras, com sua superfície jurídico-institucional, mas não com a essência do fenômeno político, ou seja, com a natureza substancial das estruturas de poder que se cristalizam ou não num determinado Estado / formação social ao longo do tempo.

A esse respeito, reveste-se de suma utilidade observar, mesmo que sumariamente, dois casos emblemáticos: o chinês e o russo.

Reiterando o que acima asseveramos, devemos estar sempre atentos, pois, ao que está por trás do mero aspecto formal do ordenamento jurídico-institucional numa dada sociedade: em praticamente 5000 anos de História, por exemplo, a China jamais mudou de sistema de governo: sempre foi e, até onde se pode fazer qualquer previsão, sempre será um império governado por um imperador e seus mandarins, a despeito deste ou daquele modelo de organização econômica, etc. Mao Zedong ou Deng Xiaoping nada mais foram que imperadores sob outro título e protocolo, assim como o PCCh é tão somente um 'mandarinato vermelho'. Portanto, ainda que a organização política específica denominada ‘PCCh’ venha a acabar, será substituída por outra oligarquia de mandarins com as mesmíssimas características e atribuições, sob a égide d'um imperador, seja qual for o título ou designação que venha a assumir.

O caso russo, outrossim, é análogo ao caso chinês: desde o momento em que o país se constituiu como entidade estatal, não conheceu qualquer sistema de governo de caráter não-autoritário. E isto rigorosamente nada tem a ver com o modelo de organização econômica vigente em cada período: tanto sob o modo de produção asiático quanto sob o feudalismo, o capitalismo emergente, o socialismo ou a restauração capitalista, a Rússia viveu sob um sistema político autocrático, vertical e centralizado. Por conseguinte, jamais conheceu qualquer sistema de governo 'democrático', e qualquer governante que eventualmente cometer o catastrófico erro de tentar modificar isto, decerto malogrará fragorosamente; Gorbachev, por exemplo, que chegou a timidamente ensaiar algo nesse sentido, teve menos de 5% dos votos válidos ao candidatar-se à presidência russa em 1996, e é até hoje figura deveras impopular no panorama político do país.

Em suma: da mesma forma que Mao Zedong ou Deng Xiaoping foram tão somente 'imperadores vermelhos', Stalin & Cia. foram nada mais que 'tzares vermelhos'. E tal panorama não se modifica através de mudanças de modelo de organização econômica: sob as reformas capitalistas, a China continua governada por um 'Imperador vermelho' e seu 'mandarinato vermelho' (o PCCh); do mesmo modo, a Rússia pós-restauração da economia de mercado segue governada por um 'tzar presidencial' e seu aparato burocrático-administrativo rigidamente hierarquizado e omnipresente (antes a burocracia tzarista, depois o PCUS e agora a coalizão de 'partidos-fantoche' organizada por Vladimir Putin).

Destarte, quero crer que o problema consiste em acreditar, pois, que as sociedades humanas são determinadas em última instância pelo fator econômico, ignorando, portanto, as fundamentais esferas da cultura, do substrato simbólico-religioso e da política como instância específica. Tal viés analítico leva seus proponentes a hiperdimensionar as diversas possibilidades de organização institucional de um Estado em detrimento da substância político-cultural que informa este mesmo Estado, isto é, o que é passível de mudança em detrimento dos elementos permanentes no seio do Ethos nacional. Enfim: as formas institucionais mudam, mas, n’alguns contextos, a substância política permanece.

Mas concentremo-nos doravante na Rep. Popular da China, que é o objeto precípuo de análise neste artigo.

A partir de todo o interesse despertado pela China nas últimas décadas, mormente no que se refere às marcantes especificidades do modelo chinês, proponho as reflexões que se seguem como locus privilegiado para debatermos, aquele que é, sem dúvida alguma, o país mais enigmático e paradoxal do mundo contemporâneo.

Não há hoje, creio, país que suscite tamanho número de indagações a um só tempo complexas e fascinantes, tanto para economistas quanto cientistas políticos, sociólogos e historiadores; trata-se, com efeito, d'uma portentosa dor de cabeça para as ciências sociais compreender o que realmente se passa no 'Império do Centro', sobretudo nos termos da seguinte questão, também de âmbito mais geral: quais as verdadeiras relações ou, em outras palavras, como se dão as interconexões entre Política, Economia e Sociedade Civil?

A República Popular da China, a partir da onda de choque, tanto simbólico-institucional quanto político-administrativa, desencadeada pela morte de Mao Zedong em 1976, deu início, já em 1978, a um amplo programa de reestruturação econômica. Desde então, o processo chinês, ainda que com movimentos pendulares de maior ou menor intensidade, tem se caracterizado por um norte estratégico nítido: abertura econômica + manutenção do monopólio do poder político por parte do PCCh. Trata-se, portanto, de liberalizar a atividade econômica, de flexibilizar relações trabalhistas e mecanismos de gestão, sem, contudo, renunciar ao controle operacional de todo o processo por parte do mandarinato vermelho. Assim sendo, todas as iniciativas de abertura econômica são estritamente condicionadas pelos desígnios e necessidades estratégicas do Estado chinês; há que frisar, aliás, o sucesso do regime na implementação dessa sutil dialética, pois o Partido não apenas conservou intacto o monopólio do poder, mas logrou fazê-lo ao mesmo tempo em que promove um duradouro ciclo de intensíssimo desenvolvimento econômico capitalista.

Ainda que se possa indagar a propósito da viabilidade ulterior de tal dinâmica, ou seja, sobre por quanto tempo mais o PCCh, que tão hábil vem se revelando na improvável dialética de, a um só tempo, centralizar o poder político e abrir a economia, conseguirá tão prodigiosa mágica socioeconômica, há que reconhecer que, até o momento, tudo está ocorrendo conforme o talante do aparato dirigente. Mesmo o desafio representado, por exemplo, pela comunicação em tempo real, com a massificação da internet, tem sido enfrentado com eficácia pelo Estado, que estabelece um maciço bloqueio do conteúdo online disponível. Além de limitar o acesso a determinados sites, o governo chinês também logra impedir a pesquisa de certos assuntos em mecanismos de busca. Os dispositivos de controle passam ainda pelo redirecionamento de páginas para sítios equivalentes; pela necessidade de autorização prévia do governo para o funcionamento de provedores de internet; e pela canalização de todo o conteúdo online para ‘portas da entrada’, as gateways, onde ocorre uma fiscalização / filtragem geral do tráfego internético. Mesmo o emprego de sistemas de comunicação por VPN (Virtual Private Network), isto é, a criação de redes privadas de acesso, com trocas constantes de endereço de IP para burlar os mecanismos de controle, não garante a privacidade dos usuários, como bem o demonstra o número constante de detenção de dissidentes políticos por intermédio de dados colhidos pela chamada Great Firewall of China.

Não obstante, não há como ignorar as consideráveis tensões e contradições inerentes ao processo chinês. Com efeito, é patente hoje que o PCCh está cada vez mais enredado num dilema de resolução sumamente intrincada: o Partido sabe que, a intensificar-se o processo de abertura, sua inexorável conseqüência lógica na esfera política será a perda do monopólio do poder, o que com razoável grau de certeza é passível de mergulhar o país numa crise de proporções inimagináveis; ao mesmo tempo, a melhor, mais sólida e inquestionável justificativa para a manutenção do regime de partido único é justamente o progresso econômico logrado pelo processo de abertura; assim sendo, o aparato dirigente do Império do Centro tem a seu cargo uma empreitada das mais árduas e intrincadas: conservar a unidade territorial do país e o domínio do Partido sem arrefecer a força motriz do desenvolvimento material.

Conseguirá o PCCh levar a bom termo tal intento? Trata-se d'outra complexa questão.

Outro aspecto, de índole a meu ver crucial para o debate que aqui nos entretêm, passa sem dúvida pelas relações que se estabelecem entre o Estado e a Sociedade. Penso não haver grandes dúvidas, por exemplo, a propósito da constatação que, em termos estritamente econômicos, a China é hoje um país estruturado em bases capitalistas: malgrado o Estado ainda atue como grande indutor e fiador do processo econômico, há vários setores importantes da economia já nas mãos da iniciativa privada; o país adota uma legislação deveras flexível e favorável às atividades do setor financeiro; as leis trabalhistas praticamente inexistem (licença-maternidade, férias e folgas remuneradas, ou outros direitos trabalhistas do mesmo jaez), não havendo, portanto, a estrutura de seguridade social presente, em maior ou menor medida, já há décadas nas grandes economias mundiais (tanto assim que há hoje uma facção do PCCh, tida como a 'esquerda' do Partido, que está a bater-se pela implementação d'uma legislação trabalhista e d'uma rede de previdência social veramente efetivas); total ausência de controle no emprego de energias ‘sujas’, o que está a gerar um crescente problema ambiental no país; estímulo contínuo e sistemático ao consumo interno, de maneira a equilibrar a balança comercial e gerar superávit fiscal de forma artificial; maciço subsídio estatal a diversos setores produtivos, assim propiciando às mercadorias chinesas preços imbatíveis na arena do comércio internacional; política de tolerância velada relação à pirataria e falsificação de produtos, inclusive suscitando de denúncias a respeito do suposto envolvimento de agências governamentais com redes ilegais de atacado e varejo; um panorama, enfim, a exibir todas as características ultrapredatórias de um modelo ‘hipercapitalista’ , cuja agressividade e voracidade são de fazer inveja à Inglaterra vitoriana.

Por outro lado, e porventura em conseqüência do que foi adrede exposto, não se pode de forma alguma considerar a sociedade chinesa como uma sociedade liberal; muito pelo contrário: o ordenamento institucional vigente continua adotando o monopólio da representação política pelo PCCh, que exerce rígido controle sobre todos os mecanismos e instâncias administrativas do país, tanto na esfera executiva quanto em termos de poder legislativo e judiciário. Trata-se, outrossim, d’uma sociedade rigidamente hierárquica e controlada de cima para baixo, com presença maciça da autoridade estatal em todos os níveis, mormente na educação e nos meios de comunicação. Então, pergunta-se: é possível a convivência entre uma economia liberal e uma sociedade sob forte controle do Estado?

A essa altura alguém poderia trazer à baila o notório exemplo chileno, pois de fato o regime autoritário de Pinochet implementou no país políticas econômicas de cunho decididamente monetarista durante as décadas de 70 e 80. Todavia, é mister sublinharmos dois aspectos importantes: a) a economia chilena era e é infinitamente menos complexa e multifacetada que a chinesa; b) muito embora o regime 'pinochetista' possa ser classificado como um regime autoritário, não me parece cabível qualificá-lo como 'totalitário', pois jamais houve no Chile algo sequer vagamente similar à estrutura de controle social, cultural, político e econômico do PCCh, cujo imperativo sobre a sociedade chinesa se capilariza uniformemente em todos os níveis. De maneira que a indagação permanece em pauta: é possível o convívio entre totalitarismo político e liberalismo econômico? Se possível, seria um modelo estável e duradouro ou, pelo contrário, um contexto inevitavelmente fadado a gerar, porventura já a médio prazo, pontos de estrangulamento insuperáveis?

Por fim, é mister assinalar que, em termos geoestratégicos, descortina-se para a sempiterna Catai um cenário deveras alvissareiro: a progressiva consolidação dos laços estabelecidos pela SCO-Shanghai Cooperation Organisation, tratado de segurança mútua firmado em 2001 entre os governos de Rússia, China, Casaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão, envolvendo cooperação militar de alto nível entre os Estados signatários. Vale também sublinhar que, d'entre os países que participam da organização na condição de 'Estados-observadores' inclui-se a República Islâmica do Irã, que já pleiteou seu ingresso definitivo na entidade; consta, enfim, que receberá o status de país-membro em 2016.

Será este porventura, aqui fazendo um despretensioso exercício de futurologia, o embrião d'um futuro Imperium euro-asiático, supina encarnação do ethos telurocrático?

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Muito bem: tendo em vista os elementos que apresentei nos parágrafos anteriores, proponho por fim as seguintes indagações:

1) Tendo em vista que, no horizonte da China contemporânea, Política e Economia evoluem em direções opostas, quais seriam as verdadeiras relações ou, em outras palavras, como se dão as interconexões entre Política, Economia e Sociedade Civil?

2) Logrará o PCCh conservar a unidade territorial do país e o domínio do Partido sem arrefecer a força motriz do desenvolvimento material?

3) É possível a convivência entre uma economia liberal e uma sociedade totalitária?

4) Se possível, seria um modelo estável e duradouro ou, pelo contrário, um contexto inevitavelmente fadado a gerar, quiçá já a médio prazo, pontos de estrangulamento insuperáveis?



4 comentários:

Eduardo Consolo dos Santos disse...

Dai que podemos concluir que a farsa chamada democracia liberal burguesa não é algo universal. Pode funcionar em países como França e Estados Unidos, mas na Rússia, na China ou no Irã a história muda completamente de figura.

Alphonse van Worden disse...

Exatamente. Não é universalizável, tal como pretende a propaganda iluminista-liberal.

Unknown disse...

Escreves bem, sem verborragias e ao mesmo tempo de forma polida. Belo texto, ideias claras e assunto relevante. Bom blog

Saudações marxistas-leninistas!

Alphonse van Worden disse...

Obrigado pela deferência!

Saudações gibelinas!