Alphonse van Worden - 1750 AD
O conto Uma
Visita de Alcibíades, de Machado de Assis, se insere à perfeição em um
gênero literário presente há muitos séculos no panorama da literatura
ocidental, mas que viria a ser
definitivamente consagrado nos séculos XVIII e XIX: a narrativa satírica
de caráter fantástico. Podemos encontrar exemplos similares nos mais diversos
autores , dentre os quais se destaca aquele que talvez tenha sido o maior
representante do gênero: o romântico alemão E.T.A Hoffmann, que
conseguiu fundir fantasia e humor de modo irretocável em relatos memoráveis
como Princesa Brambilla , Senhor Formica, O Conselheiro Krespel, O Pequeno Cinábrio Chamado Zacarias
e, sobretudo, na extraordinária coleção de novelas e crônicas enfeixadas no
romance Vida e Opiniões do gato Murr,
onde o irônico felino é o contraponto satírico dos delirantes devaneios de seu
dono, o Maestro Kreisler. Poderíamos ainda destacar outros escritores que
praticaram de forma notável a sátira de corte fantástico: nomes do porte de Jan Potocki, Nikolai Gogol,
Gustavo Adolfo Becquer, Gerard de Nerval, Villiers de L’Isle-Adam, Marcel
Schwob, Ambroise Bierce, Robert Louis Stevenson, Oscar Wilde; mais recentemente, no século XX,
o gênero continuou a ser cultivado por autores como Karel Tchapek, Gilbert
Keith Chesterton, Sigismund Krzyzanowski, Macedônio Fernandez,
Bioy-Casares, Stanislaw Lem, Italo
Calvino.
A modalidade literária de que estamos tratando se
caracteriza principalmente por dois elementos: o uso do insólito, do fantástico,
como instrumento para surpreender e seduzir o leitor, capturando sua atenção; e
o desfecho irônico como desenlace aparentemente inusitado, mas pretendido desde
o início da narrativa. Os elementos supracitados constituem, no âmbito da
estrutura textual, as duas etapas complementares de uma estratégia narrativa:
tendo sua imaginação despertada pelo sobrenatural, o leitor está preparado para
ingressar numa suspension of disbelief à
moda de S.T.Coleridge, condição indispensável para transitar numa zona de
sombra onde as leis da natureza e da lógica deixam de
vigorar; mergulhado, pois, na disposição mental própria do fantástico, o leitor
é surpreendido pela irrupção do elemento satírico, que subverte, no apagar das luzes do
texto, as expectativas progressivamente acalentadas pelo desenrolar da
fantasia.
Em Uma visita
de Alcibíades, o Desembargador X..., preguiçosamente estirado em seu
sofá depois do jantar, folheia as Vidas Paralelas de Plutarco; o
acaso escolhe como destino as páginas
que discorrem sobre a vida de
Alcibíades, o célebre general ateniense. Com o livre fluxo dos pensamentos ao
sabor do fortuito, o cultor das letras helênicas especula sobre as impressões
que o vestuário moderno causaria em Alcibíades; adepto do espiritismo (que
considera como o mais “criativo” dentre sistemas de idéias que são “puras
nulidades”), decide, entre a pilhéria e a vaidade, evocar o espírito do
lendário ateniense. Neste preciso
momento, o autor coloca em cena o Fantástico:
Alcibíades aparece, não apenas como espectro, mas em carne e osso. Machado de
Assis, vale dizer, introduz o componente
extravagante de modo casual,
sóbrio, sem malabarismos estilísticos e
fogos de artifício verbais, de acordo
com os procedimentos consagrados por Hoffmann,
primus inter pares do gênero. O advento de Alcibíades é, pois, ainda que
extraordinário, de certo modo natural.
Estupefacto, nosso
personagem não está mais preocupado em questionar Alcibíades sobre a moda
moderna; na conversação que em seguida entabulam, relata ao general helênico
alguns dos principais acontecimentos históricos que movimentaram a Grécia no decorrer dos séculos. A presença
tangível de tão remota figura, entretanto, longe de ser fonte de contentamento, provoca crescente aflição no atabalhoado
desembargador. Pretextando ter de ir a um baile, procura livrar-se do incômodo visitante. Alcibíades, todavia, ainda
que abalado pela revelação de que os deuses olímpicos não mais constituem
objeto de devoção, manifesta vontade de acompanhar seu anfitrião. Este, descorçoado, procura argumentar que o general não poderia
sair à rua em seus trajes de ateniense
antigo. Alcibíades, decidido, replica: “Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira
do século. Não tens alguma roupa que me emprestes?”. O helenista acaba por concordar,
convencendo-se de que esta pode ser a melhor forma de se livrar do fantasma. Dirigem-se os dois então para
os aposentos íntimos do dono da casa, que começa a vestir-se. Alcibíades não
pode conter seu espanto ante os “canudos fechados”, as calças, e os “canudos
abertos”, a casaca, que o outro veste, ambos de sombria e uniforme cor negra:
“És a cousa mais singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo côr de
noite (...). O mundo deve andar imensamente melancólico, se escolheu para uso
uma côr tão morta e tão triste. Nós éramos mais
alegres; vivíamos....”. Quando o
desembargador termina de trajar-se, a singular consternação do helênico não
poderia ser maior. Perguntando se nada restava a ser acrescentado, se aquilo
tudo era o que restava da elegância pelos gregos legada à posteridade, nosso anfitrião lembra-se então de colocar
seu chapéu. Alcibíades, contudo, não resiste a este último golpe desferido contra a singela e serena excelência formal dos ideais estéticos
clássicos; tomba, morto pela “segunda vez”, aos pés do assombrado
desembargador.
No desenlace da fantasia
tramada por Machado, irrompe, coroando a narrativa, a surpreendente,
patética e tragicômica dimensão satírica: Alcibíades resiste à morte dos Deuses
e da polis ateniense, mas não à morte
da beleza. Lembremos, de
passagem, que para o pensamento grego, o
que pode ser constatado através da leitura de uma obra capital como a Ética a
Nicômaco de Aristóteles,
as noções de belo, bom e verdadeiro estão intimamente associadas; assim sendo, se a beleza desaparece do horizonte humano,
também o bem e a verdade deixam de existir...
Mas será tão somente esta a mensagem que Machado de Assis pretendeu nos comunicar com o hábil e caprichoso devaneio farsesco
aqui considerado? Se porventura não é
necessária, conforme os mestres do estilo nos ensinaram, a preocupação em
detalhar as circunstâncias do aparecimento do fantástico, por que motivos deveríamos nos entregar a inúteis
cavilações sobre os possíveis níveis de leitura, subtextos, cadeias significativas que uma sátira pode
encerrar? Contentemo-nos, pois, em
concluir que Machado, em Uma Visita
de Alcebíades, executou com
felicidade a tarefa precípua do gênero narrativo em pauta: recorrendo ao
fantástico, atraiu a atenção de seu leitor para depois surpreende-lo com o
advento de um inesperado desfecho satírico.
2 comentários:
Excelente!! Sempre me alegram seus textos :)
Muito obrigado, dileto Anônimo.
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