Alphonse van Worden - 1750 AD
A tentativa de estabelecer um fundamento racional para a Fé , mormente no que concerne à existência de Deus é, se calhar, a questão mais importante de toda a filosofia produzida sob o signo do cristianismo. Não há, destarte, tanto na Patrística quanto na Escolástica, autor que não tenha se debruçado sobre a questão em tela.
Creio, no entanto, que uma indagação, não raro relegada a uma posição secundária, se reveste de importância axial no âmbito deste tópico: qual a REAL necessidade, a pertinência de qualquer esforço em 'provar', via demonstração lógica, a existência de Deus?
Por meu turno, penso tratar-se de empreitada de todo improfícua e, ao fim e ao cabo, danosa, pois a Fé se fortalece à medida que prescinde de quaisquer alegações racionais. Creio, tal como o ínclito filósofo e teólogo inglês William of Ockham (1288 -1348), que não há argumentação lógica capaz de 'substituir' a intuição íntima e intransferível que proporciona a um ser humano a crença na existência de Deus.
Isto posto, abordarei algumas objeções recorrentes à perspectiva advogada pelo Venerabilis Inceptor.
_____
Uma causa única e primordial é metafisicamente necessária
Supondo a veracidade da supracitada assertiva, indago: ser 'metafisicamente necessária' significa ser passível de demonstração lógica, ou de comprovação empírica? Não. E recordemos, inclusive tendo em vista o âmbito das possibilidades de demonstração racional da existência de Deus, que está a se falar aqui na existência de Deus como algo logicamente demonstrável.
Ao sustentarmos a 'necessidade metafísica' d'algo, estamos a dizer que a Realidade é inconcebível sem tal crença, mas de forma alguma significa afirmar que a referida crença possa ser objeto de conhecimento empírico ou de demonstração lógica. Trata-se, pelo contrário, d'uma intuição que gera CERTEZA, mas não CONHECIMENTO. Sem descrição empírica ou demonstração lógica pode haver SAPIÊNCIA, no sentido mais literal do termo, mas não conhecimento.
Em suma: SABEMOS que Deus é necessário, mas não somos capazes de demonstrar logicamente sua existência, e muito menos de comprová-la empiricamente, o que nos conduz, ao fim e ao cabo, à conclusão de que não podemos 'Conhecê-lo'.
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Para Ockham, uma verdade racionalmente demonstrada pode constituir, ao mesmo tempo, uma verdade teológica. Teológicas são todas as verdades indispensáveis ao homem peregrino ("viator" em oposição a "comprehensor") para alcançar a salvação. Daí poderem ser teológicas certas verdades naturalmente atingíveis: “'Ex isto sequitur, quod aliquae veritates naturaliter notae seu cognoscibiles sunt theologicae, sicut quod Deus est, Deus est sapiens, bonus, etc., cum sint necessariae ad salutem..." (Ordinatio). Esta afirmação bastaria, por si só, para invalidar a alegação, amiúde reiterada, de que Guilherme de Ockham teria divorciado a filosofia da teologia, ou separado a razão da fé" (Philotheus Boehner - História da Filosofia Cristã).
Philotheus Boehner foi indubitavelmente um grande comentador de Ockham; isto não significa, contudo, que estudiosos de igual envergadura não tenham formulado interpretações distintas.
Vejamos, por exemplo, o que Giovanni Reale e Dario Antiseri afirmam, a propósito da teoria do conhecimento ockhamista, em sua História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média:
"As tentativas de Tomás, Boaventura e Escoto no sentido de mediar a relação razão e fé com elementos aristotélicos ou agostinianos, através da elaboração de complexas construções metafísicas e gnosiológicas, pareciam-lhe inúteis e danosas.”
Citando obra de lavra do próprio Ockham (Lectura libri sententiarum):
"Os artigos de fé não são princípios de demonstração nem conclusões, não sendo nem mesmo prováveis, já que parecem falsos para todos, para a maioria ou para os sábios, entendendo por sábios os que se entregam à razão natural, já que só de tal modo se entende o sábio na ciência e na filosofia.”;
e ainda:
“A razão não está em condições de oferecer qualquer suporte para a fé porque não consegue tornar o dado revelado mais transparente do que pode fazê-lo a fé."
Por fim, creio que a seguinte passagem, de lavra do insigne Étienne Gilson, é capaz de dissipar qualquer controvérsia a respeito das idéias de Ockham:
Appliquons maintenant cet instrument de connaissance aux problèmes traditionnels que nous pose la théologie naturelle, et demandons-nous quel genre de réponses il nous permet de leur apporter. On peut prédire sans crainte de se tromper que la plupart des réponses seront ou négatives ou dubitatives. Lorsqu'on s'interdit de dépasser les constatations expérimentales, on ne va pas loin dans le domaine de la théologie naturelle. Or les intentions d'Occam ne laissent pas place au moindre doute; en abordant les problèmes philosophiques et théologiques il entend bien ne rien rabattre de ses exigences en matière de démonstration. Que l'on donne toutes les propositions que l'on voudra comme objets de foi parce que fondées sur la révélation, il y consent ; mais Occam ne peut pas souffrir que l'on prétende transformer en vérités démontrables ce qui n'est qu'un donné de la révélation. Il y aura donc chez lui un sentiment très vif de l'indépendance absolue du philosophe en tant que tel et une tendance extrêmement accusée à reléguer tout le métaphysique dans le domaine du théologique. C'est ce que nous allons constater immédiatement en discutant la valeur des preuves de l'existence de Dieu.
La philosophie au moyen âge II, Capítulo V (La Philosophie aux XIV Siècle), I. - Guillaume d'Occam et ses prédécesseurs.
_____
Por NECESSIDADE, qualquer discurso a respeito de uma experiência anterior é uma tentativa de conceituar essa experiência, geralmente com o intuito de transmiti-la para outrem.
Pois bem: sustentar que "qualquer discurso a respeito de uma experiência anterior é uma tentativa de conceituar essa experiência" equivale, ao fim e ao cabo, não compreender a distinção entre PENSAMENTO / CONHECIMENTO. Nem todo conteúdo mental é passível de transmissão discursiva, e tampouco de ser transformado, via universalização conceitual, em CONHECIMENTO.
A crença na existência de Deus é, creio eu, uma INTUIÇÃO, isto é, um PENSAMENTO cujo conteúdo não pode ser universalizável, isto é, alvo de sistematização conceitual.
Desnecessário sublinhar que qualquer afirmação tão somente pode ser expressa via codificação lingüística do pensamento. Isto não significa, contudo, que o CONTEÚDO de uma assertiva é necessariamente de natureza conceitual. É perfeitamente possível narrar, por exemplo, um delírio, ou seja, dar-lhe, através de analogias, metáforas, etc., uma forma lingüística. Não obstante, o CONTEÚDO de um delírio não é passível de sistematização conceitual.
Analogamente: se afirmo "creio em Deus porque sinto Sua presença", estou exprimindo um PENSAMENTO que, entretanto, não pode ser transformado em CONHECIMENTO, já que não é passível de universalização conceitual.
_____
Ockham não pretende desconhecer a existência de Deus, mas sim destacar a fraqueza dos argumentos humanos.
Seria um disparate ímpar afirmar que Ockham 'desconheça' a existência de Deus. Não há, entretanto, como negar que, para o Doctor Invencibilis, os argumentos que a razão humana é capaz de conceber para demonstrar a existência de Deus são insuficientes, ou seja, não são capazes de gerar CONVICÇÃO ABSOLUTA, dimensão esta inacessível à razão.
Claro está, portanto, que o filósofo inglês não predica o agnosticismo; todavia, penso ser patente que sua teoria do conhecimento fatalmente conduz, digamos assim, a uma forma 'mitigada' de fideísmo.
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A formação intelectual do indivíduo, sobretudo se condicionada por paradigmas materialistas, é fator preponderante para que o mesmo seja incapaz compreenda a base metafísica necessária à demonstração racional da existência de Deus.
A meu juízo, tal alegação não resiste à análise. Ockham, filósofo da mesma envergadura, por exemplo, de São Tomás de Aquino, o grande baluarte da tradição escolástica, teve, ademais, a mesmíssima formação intelectual, a mesmíssima 'base metafísica' do célebre dominicano italiano e, todavia, chegou a uma conclusão antagônica: questões de fé não são racionalmente comprováveis.
Se Aquino e Ockham discordam a propósito das possibilidades de demonstração racional da existência de Deus, e tendo em vista que ambos não foram influenciados por uma educação 'deturpadora', bem como de que ambos partem da mesma 'base metafísica primordial', logo não é a adesão per si à referida base metafísica que, em última análise, lastreia a posição tomista, mas sim uma INTERPRETAÇÃO de tal base metafísica; outrossim, o mesmo se dá no tocante a Ockham.
O franciscano inglês afirma, pois, que as 'verdades da fé' constituem precisamente a esfera do que NÃO pode ser conhecido por intermédio da razão natural.
Poder-se-ia, claro está, alegar que Ockham é um filósofo ‘inferior’ ao Doutor de Aquino; mas não é cabível afirmar, contudo, sustentar que sua 'base metafísica' e formação intelectual são distintas das de São Tomás.
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Ainda que um católico não lograsse provar a existência de Deus à luz da razão, consoante as resoluções adotadas no Concílio Vaticano II, ele vê-se obrigado a professar, sob pena de heresia, que a existência de Deus é passível de demonstração racional.
Nestes termos, seríamos obrigados a dizer que o próprio Paulo de Tarso deveria, então, ser condenado como herege:
"19 Está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e anularei a prudência dos prudentes (Is 29,14).
21 Visto como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação.
20 Onde está o sábio? Onde o erudito? Onde o argumentador deste mundo? Acaso não declarou Deus por loucura a sabedoria deste mundo?
(...)
22 Os judeus pedem milagres, os gregos reclamam a sabedoria;
23 mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos;
24 mas, para os eleitos - quer judeus quer gregos -, força de Deus e sabedoria de Deus.
25 Pois a loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens." (Coríntios I, I)
Analogamente, teólogos da estatura de Tertuliano, Meister Eckhart, Santa Teresa de Ávila, San Juan de La Cruz, etc. e, de resto, todos os autores que propugnam a via mística como única possibilidade do ser humano intuir a existência de Deus, também se veriam em maus lençóis.
______________________________________
Por fim, é sempre bom lembrarmos que o próprio São Tomás de Aquino, um ou dois dias antes de falecer, disse as seguintes palavras, após uma experiência mística que o marcou profundamente:
Mihi videtur ut palea - "Tudo quanto escrevi parece-me somente palha"
Desafortunadamente, todavia, até hoje os que propugnam uma teologia 'intelectualista' não compreenderam o profundo significado embutido na supracitada frase.
E, à guisa de conclusão para estas breves notas, e como material para reflexões ulteriores, encerro lançando as seguintes indagações:
1) Quais as razões que levaram a Igreja a perder, mormente a partir do século XVIII, a primazia como grande matriz intelectual do Ocidente?
2) Ou, em termos mais específicos: por que não há, do século XVIII em diante, qualquer filósofo católico que chegue aos pés dos gigantes da Patrística e da Escolástica?
Penso que o dogmatismo de certas posições adrede expostas é um bom começo de resposta...
A tentativa de estabelecer um fundamento racional para a Fé , mormente no que concerne à existência de Deus é, se calhar, a questão mais importante de toda a filosofia produzida sob o signo do cristianismo. Não há, destarte, tanto na Patrística quanto na Escolástica, autor que não tenha se debruçado sobre a questão em tela.
Creio, no entanto, que uma indagação, não raro relegada a uma posição secundária, se reveste de importância axial no âmbito deste tópico: qual a REAL necessidade, a pertinência de qualquer esforço em 'provar', via demonstração lógica, a existência de Deus?
Por meu turno, penso tratar-se de empreitada de todo improfícua e, ao fim e ao cabo, danosa, pois a Fé se fortalece à medida que prescinde de quaisquer alegações racionais. Creio, tal como o ínclito filósofo e teólogo inglês William of Ockham (1288 -1348), que não há argumentação lógica capaz de 'substituir' a intuição íntima e intransferível que proporciona a um ser humano a crença na existência de Deus.
Isto posto, abordarei algumas objeções recorrentes à perspectiva advogada pelo Venerabilis Inceptor.
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Uma causa única e primordial é metafisicamente necessária
Supondo a veracidade da supracitada assertiva, indago: ser 'metafisicamente necessária' significa ser passível de demonstração lógica, ou de comprovação empírica? Não. E recordemos, inclusive tendo em vista o âmbito das possibilidades de demonstração racional da existência de Deus, que está a se falar aqui na existência de Deus como algo logicamente demonstrável.
Ao sustentarmos a 'necessidade metafísica' d'algo, estamos a dizer que a Realidade é inconcebível sem tal crença, mas de forma alguma significa afirmar que a referida crença possa ser objeto de conhecimento empírico ou de demonstração lógica. Trata-se, pelo contrário, d'uma intuição que gera CERTEZA, mas não CONHECIMENTO. Sem descrição empírica ou demonstração lógica pode haver SAPIÊNCIA, no sentido mais literal do termo, mas não conhecimento.
Em suma: SABEMOS que Deus é necessário, mas não somos capazes de demonstrar logicamente sua existência, e muito menos de comprová-la empiricamente, o que nos conduz, ao fim e ao cabo, à conclusão de que não podemos 'Conhecê-lo'.
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Para Ockham, uma verdade racionalmente demonstrada pode constituir, ao mesmo tempo, uma verdade teológica. Teológicas são todas as verdades indispensáveis ao homem peregrino ("viator" em oposição a "comprehensor") para alcançar a salvação. Daí poderem ser teológicas certas verdades naturalmente atingíveis: “'Ex isto sequitur, quod aliquae veritates naturaliter notae seu cognoscibiles sunt theologicae, sicut quod Deus est, Deus est sapiens, bonus, etc., cum sint necessariae ad salutem..." (Ordinatio). Esta afirmação bastaria, por si só, para invalidar a alegação, amiúde reiterada, de que Guilherme de Ockham teria divorciado a filosofia da teologia, ou separado a razão da fé" (Philotheus Boehner - História da Filosofia Cristã).
Philotheus Boehner foi indubitavelmente um grande comentador de Ockham; isto não significa, contudo, que estudiosos de igual envergadura não tenham formulado interpretações distintas.
Vejamos, por exemplo, o que Giovanni Reale e Dario Antiseri afirmam, a propósito da teoria do conhecimento ockhamista, em sua História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média:
"As tentativas de Tomás, Boaventura e Escoto no sentido de mediar a relação razão e fé com elementos aristotélicos ou agostinianos, através da elaboração de complexas construções metafísicas e gnosiológicas, pareciam-lhe inúteis e danosas.”
Citando obra de lavra do próprio Ockham (Lectura libri sententiarum):
"Os artigos de fé não são princípios de demonstração nem conclusões, não sendo nem mesmo prováveis, já que parecem falsos para todos, para a maioria ou para os sábios, entendendo por sábios os que se entregam à razão natural, já que só de tal modo se entende o sábio na ciência e na filosofia.”;
e ainda:
“A razão não está em condições de oferecer qualquer suporte para a fé porque não consegue tornar o dado revelado mais transparente do que pode fazê-lo a fé."
Por fim, creio que a seguinte passagem, de lavra do insigne Étienne Gilson, é capaz de dissipar qualquer controvérsia a respeito das idéias de Ockham:
Appliquons maintenant cet instrument de connaissance aux problèmes traditionnels que nous pose la théologie naturelle, et demandons-nous quel genre de réponses il nous permet de leur apporter. On peut prédire sans crainte de se tromper que la plupart des réponses seront ou négatives ou dubitatives. Lorsqu'on s'interdit de dépasser les constatations expérimentales, on ne va pas loin dans le domaine de la théologie naturelle. Or les intentions d'Occam ne laissent pas place au moindre doute; en abordant les problèmes philosophiques et théologiques il entend bien ne rien rabattre de ses exigences en matière de démonstration. Que l'on donne toutes les propositions que l'on voudra comme objets de foi parce que fondées sur la révélation, il y consent ; mais Occam ne peut pas souffrir que l'on prétende transformer en vérités démontrables ce qui n'est qu'un donné de la révélation. Il y aura donc chez lui un sentiment très vif de l'indépendance absolue du philosophe en tant que tel et une tendance extrêmement accusée à reléguer tout le métaphysique dans le domaine du théologique. C'est ce que nous allons constater immédiatement en discutant la valeur des preuves de l'existence de Dieu.
La philosophie au moyen âge II, Capítulo V (La Philosophie aux XIV Siècle), I. - Guillaume d'Occam et ses prédécesseurs.
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Por NECESSIDADE, qualquer discurso a respeito de uma experiência anterior é uma tentativa de conceituar essa experiência, geralmente com o intuito de transmiti-la para outrem.
Pois bem: sustentar que "qualquer discurso a respeito de uma experiência anterior é uma tentativa de conceituar essa experiência" equivale, ao fim e ao cabo, não compreender a distinção entre PENSAMENTO / CONHECIMENTO. Nem todo conteúdo mental é passível de transmissão discursiva, e tampouco de ser transformado, via universalização conceitual, em CONHECIMENTO.
A crença na existência de Deus é, creio eu, uma INTUIÇÃO, isto é, um PENSAMENTO cujo conteúdo não pode ser universalizável, isto é, alvo de sistematização conceitual.
Desnecessário sublinhar que qualquer afirmação tão somente pode ser expressa via codificação lingüística do pensamento. Isto não significa, contudo, que o CONTEÚDO de uma assertiva é necessariamente de natureza conceitual. É perfeitamente possível narrar, por exemplo, um delírio, ou seja, dar-lhe, através de analogias, metáforas, etc., uma forma lingüística. Não obstante, o CONTEÚDO de um delírio não é passível de sistematização conceitual.
Analogamente: se afirmo "creio em Deus porque sinto Sua presença", estou exprimindo um PENSAMENTO que, entretanto, não pode ser transformado em CONHECIMENTO, já que não é passível de universalização conceitual.
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Ockham não pretende desconhecer a existência de Deus, mas sim destacar a fraqueza dos argumentos humanos.
Seria um disparate ímpar afirmar que Ockham 'desconheça' a existência de Deus. Não há, entretanto, como negar que, para o Doctor Invencibilis, os argumentos que a razão humana é capaz de conceber para demonstrar a existência de Deus são insuficientes, ou seja, não são capazes de gerar CONVICÇÃO ABSOLUTA, dimensão esta inacessível à razão.
Claro está, portanto, que o filósofo inglês não predica o agnosticismo; todavia, penso ser patente que sua teoria do conhecimento fatalmente conduz, digamos assim, a uma forma 'mitigada' de fideísmo.
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A formação intelectual do indivíduo, sobretudo se condicionada por paradigmas materialistas, é fator preponderante para que o mesmo seja incapaz compreenda a base metafísica necessária à demonstração racional da existência de Deus.
A meu juízo, tal alegação não resiste à análise. Ockham, filósofo da mesma envergadura, por exemplo, de São Tomás de Aquino, o grande baluarte da tradição escolástica, teve, ademais, a mesmíssima formação intelectual, a mesmíssima 'base metafísica' do célebre dominicano italiano e, todavia, chegou a uma conclusão antagônica: questões de fé não são racionalmente comprováveis.
Se Aquino e Ockham discordam a propósito das possibilidades de demonstração racional da existência de Deus, e tendo em vista que ambos não foram influenciados por uma educação 'deturpadora', bem como de que ambos partem da mesma 'base metafísica primordial', logo não é a adesão per si à referida base metafísica que, em última análise, lastreia a posição tomista, mas sim uma INTERPRETAÇÃO de tal base metafísica; outrossim, o mesmo se dá no tocante a Ockham.
O franciscano inglês afirma, pois, que as 'verdades da fé' constituem precisamente a esfera do que NÃO pode ser conhecido por intermédio da razão natural.
Poder-se-ia, claro está, alegar que Ockham é um filósofo ‘inferior’ ao Doutor de Aquino; mas não é cabível afirmar, contudo, sustentar que sua 'base metafísica' e formação intelectual são distintas das de São Tomás.
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Ainda que um católico não lograsse provar a existência de Deus à luz da razão, consoante as resoluções adotadas no Concílio Vaticano II, ele vê-se obrigado a professar, sob pena de heresia, que a existência de Deus é passível de demonstração racional.
Nestes termos, seríamos obrigados a dizer que o próprio Paulo de Tarso deveria, então, ser condenado como herege:
"19 Está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e anularei a prudência dos prudentes (Is 29,14).
21 Visto como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação.
20 Onde está o sábio? Onde o erudito? Onde o argumentador deste mundo? Acaso não declarou Deus por loucura a sabedoria deste mundo?
(...)
22 Os judeus pedem milagres, os gregos reclamam a sabedoria;
23 mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos;
24 mas, para os eleitos - quer judeus quer gregos -, força de Deus e sabedoria de Deus.
25 Pois a loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens." (Coríntios I, I)
Analogamente, teólogos da estatura de Tertuliano, Meister Eckhart, Santa Teresa de Ávila, San Juan de La Cruz, etc. e, de resto, todos os autores que propugnam a via mística como única possibilidade do ser humano intuir a existência de Deus, também se veriam em maus lençóis.
______________________________________
Por fim, é sempre bom lembrarmos que o próprio São Tomás de Aquino, um ou dois dias antes de falecer, disse as seguintes palavras, após uma experiência mística que o marcou profundamente:
Mihi videtur ut palea - "Tudo quanto escrevi parece-me somente palha"
Desafortunadamente, todavia, até hoje os que propugnam uma teologia 'intelectualista' não compreenderam o profundo significado embutido na supracitada frase.
E, à guisa de conclusão para estas breves notas, e como material para reflexões ulteriores, encerro lançando as seguintes indagações:
1) Quais as razões que levaram a Igreja a perder, mormente a partir do século XVIII, a primazia como grande matriz intelectual do Ocidente?
2) Ou, em termos mais específicos: por que não há, do século XVIII em diante, qualquer filósofo católico que chegue aos pés dos gigantes da Patrística e da Escolástica?
Penso que o dogmatismo de certas posições adrede expostas é um bom começo de resposta...
1 comentário:
William of Ockham - Na Barbearia
Um belo dia apareceu na barbearia de Ockham um velho filósofo agostiniano, que ao fim do serviço disse, tranqüilamente, que não iria pagar. À reação estupefata do barbeiro, o freguês justificou-se:
- A Verdade não pode ser captada com os sentidos habituais de percepção. Só pela convicção íntima e pessoal propiciada pela Fé. Sendo assim, a sensação que eu tenho de que tu cortaste meu cabelo é falsa - não levo a menor fé em teu trabalho. Portanto, o corte não aconteceu, e não pagarei por ele.
Ockham, após pensar por pouquíssimos instantes (até nisso era unha-de-fome), afiou a navalha e, a aproximando do rosto do freguês:
- Se a percepção pelos sentidos é falsa, posso tranqüilamente cortar tua orelha, pois tudo o que ouves é ilusório. Ou poderia, incontinente, extirpar-te o nariz, visto que o que o olfato te proporciona é falso. Ou mesmo teus olhos eu poderia arrancar fora, já que tua visão te passa registros irreais.
- Tanto faz - obtemperou o incrivelmente tranqüilo freguês, agora já nem tão tranqüilo assim. - Eu recorreria às autoridades em busca de reparação. Ignorantes como são, essas mesmas autoridades, não conhecendo os fundamentos escolásticos nem tampouco a essência abstrata da Verdade, dariam por muito reais as feridas que infligir-me-ias, e, além de prender-te, obrigar-te-iam a me ressarcir.
Ockham não viu outra saída. Encostou a navalha no pescoço do velhaco:
- Estás correto. Eu poderia também cortar-te a garganta e, uma vez morto, não terias como recorrer às autoridades. Eu enterrar-te-ia nos fundos de minha barbearia e, partindo do princípio que norteia nossa conversa, daria o caso por ilusório e nenhum remorso por homicídio abater-me-ia.
O freguês, agora nada tranqüilo e já suando frio, esperou alguns instantes, apalpou o embornal e saiu-se com uma admirável constatação filosófica:
- Presumo que aceites vale-ceia!...
Oh Glória, Hosannah nas alturas!!
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