Alphonse van Worden - 1750 AD
A percepção que se tem do Romantismo e do Expressionismo não raro restringe-se, até mesmo nos meios cultos, aos aspectos mais especificamente 'estéticos', isto é, ao legado artístico-literário de tais movimentos.
Tal concepção não poderia ser mais reducionista: tanto o romantismo quanto o expressionismo (ainda que este último em menor escala) transcendem sobremaneira a esfera de movimentos artísticos, afirmando-se, em verdade, como VISÕES DE MUNDO.
Assim sendo, logram uma ressonância infinitamente mais profunda e abrangente, pois refletem, muito mais que um determinado acervo de padrões estéticos, não só perspectivas filosóficas, políticas e espirituais, mas, sobretudo, facetas permanentes da própria condição humana.
E muito embora a cosmovisão expressionista seja caudatária do ethos romântico, é precisamente a este respeito que podemos identificar a diferença crucial entre ambos: enquanto o romantismo se estabelece como revolta contra a 'Realidade' de âmbito IDEALISTA, o expressionismo encarna a mesma atitude de revolta sob um cariz NIILISTA.
Ou seja: o espírito romântico contempla a possibilidade de uma ‘realidade alternativa’ em relação ao ‘desencantamento do mundo’ (Max Weber) gerado pelo advento do iluminismo. Tal talante transformativo pode, por seu turno, revestir-se tanto d’um caráter RESTITUCIONISTA quanto dum matiz REVOLUCIONÁRIO.
No primeiro caso, postula essencialmente o retorno a um
Tradionswelt , ou seja, uma ‘Idade de Ouro’, que vai decididamente de encontro ao caráter utilitário, pragmático e 'quantificável' da modernidade, em nome dos valores perenes d'uma Ordem transcendente, atemporal, pautada pelos princípios da HONRA, da LEALDADE, da REALIZAÇÃO ESPIRITUAL, da CORAGEM, da RENÚNCIA e do ASCETISMO MATERIAL, o que podemos claramente diagnosticar, por exemplo, na obra de um poeta e pensador como o alemão Friedrich Von Hardenberg, dito Novalis, mormente em seu ensaio A "Cristandade ou a Europa" (1799), onde o autor advoga um retorno à Idade Média sob os auspícios da Igreja, cuja unidade harmônica poderia regenerar espiritualmente uma Europa convulsionada por dissensões políticas e religiosas; ou então através dos romances medievalistas de seu compatriota Achim Von Arnim, animados por uma fervorosa apologética católica, bem como em numerosos outros autores do período.
Em se tratando da variante revolucionária, temos a projeção no futuro d’uma nova Humanidade liberta dos grilhões do materialismo, do egoísmo e da injustiça (a esse respeito, poderíamos citar a figura do inglês William Blake, e seu célebre poema "The French Revolution" (1791), por exemplo, onde os eventos do processo revolucionário decorrido em França entre 1789 / 1794 são transfiguradas à luz d’uma concepção mítica da História, encarada como processo em direção à sublimação total do Espírito; ou ainda o também inglês John Keats, que em composições como "Ode to Liberty" (1820), retrata o futuro como esfera de realização d’uma radiosa utopia de Amor e de Beleza, expressão suprema de todas as virtudes que, em épocas passadas, eram apenas um anseio fugidio.
Nos marcos do expressionismo, por outro lado, já não há qualquer esperança de redenção para a Humanidade, tanto no ‘passado’ quanto no ‘futuro’; seu espírito de revolta assume, portanto, um caráter de desespero cósmico, de urro primal e apocalíptico contra o sumo horror d’uma Realidade que já não mais pode ser transformada. Não por acaso, vale dizer, a poesia, o cinema, a música, a pintura, a gravura e o teatro expressionistas estão pejados de imagens recorrentes de decomposição, desintegração, putrefação, corrupção, depravação, cinismo, brutalidade, crueldade e aniquilamento, não raro evocadas com uma espécie de prazer sádico, de exaltação mórbida (considere-se, a esse respeito, o ominoso universo poético de autores como Georg Tralk (este de nacionalidade austríaca), August Stramm e Gottfried Benn.
Benn, constitui, aliás, um exemplo emblemático da contínua simbiose e interpenetração entre o expressionismo e o romantismo: a princípio um dos grandes nomes da poesia expressionista, afastou-se paulatinamente de seus horizontes iniciais e, no decorrer da década de 30, imbuído d’uma perspectiva inequivocamente romântica, gravitou em torno do Nacional-Socialismo, pois cria que o regime seria capaz de criar uma ‘Nova Esparta’, habitada por um povo de heróis (não devemos nos esquecer, há que ressaltar, que a própria ideologia nazista, que sem dúvida constitui uma manifestação de romantismo político, tampouco estava isenta de contradições – na Conferência de Bamberg (1926), por exemplo, a maioria do partido, sob a liderança de Hitler, adotou uma perspectiva mais conservadora, rejeitando a orientação mais nitidamente socialista e revolucionária que os irmãos Otto e Georg Strasser tencionavam imprimir ao movimento; a ‘Noite das Facas Longas’ (1934), com o expurgo de Ernst Rohm e da cúpula dirigente das SA, etc.).
Percebe-se, também, o influxo d’uma ‘antilógica’ do sonho – ou, mais especificamente falando, do pesadelo, no tocante ao expressionismo alemão -, onde as fronteiras entre passado, presente e futuro se desintegram, convertendo-se num fluxo subterrâneo e contínuo de espectros, penitências, temores, tormentos. Trata-se, enfim, não seria irrazoável sublinhar, d’uma lôbrega, sinistra celebração da MORTE, bem como de todas as angústias, terrores e maldições que assaltam o ser humano. Assim sendo, a arte e a literatura expressionistas conjuram uma atmosfera claustrofóbica, sufocante e soturna, sempre permeada por um enigmático senso de catástrofe iminente; e o homem, outrossim, é descrito/percebido como joguete inerme e impotente nas mãos do Destino, sempre insondável e ameaçador.
Por fim, é mister assinalar outra distinção fundamental entre as visões de mundo expressionista e romântica: o expressionismo, mergulhado num horizonte de trevas e desesperança, não é passível de ‘politização’, ou seja, de plasmar-se em ‘combustível’ ideológico para qualquer forma de ação política. O romantismo, por seu turno, ao acalentar a possibilidade de transformação radical da Realidade, torna-se, pois, plenamente permeável à ação e pensamento políticos, fenômeno amiúde verificável, saliente-se, tanto no que tange à sua vertente restitucionista, quanto no que concerne à sua faceta revolucionária (dimensões que não raro se interpenetram, registre-se).
Assim sendo, poderíamos aqui mencionar autores como o alemão Ernst Jünger, a um só tempo predicando, de um lado, nostalgia da
gemeinschaft (comunidade) orgânica do medievo germânico, o primado d’uma ‘Aristocracia do Espírito’, formada por guerreiros, pensadores e poetas; e, de outro, e a premente necessidade, de maneira a proteger a nação de qualquer ameaça externa, de um Estado de ‘Mobilização Total’ ("Die Totale Mobilmachung" - 1930) da sociedade industrial em prol de um esforço de guerra permanente.
A esse respeito, destaca-se, como emblemático exemplo inicial de sua capacidade de trabalhar a partir de diferentes linhas de fuga, na obra de Jünger o extraordinário "In Stahlgewittern" (Tempestades de Aço - primeira edição em 1920 / edição definitiva em 1961). O supracitado volume constitui tanto um relato de vigoroso e implacável realismo (e, ao mesmo tempo, pejado de êxtase delirante) sobre suas experiências como tenente do exército alemão na I Guerra Mundial, quanto um dionisíaco ensaio sobre a guerra como veículo de sublimação ascética e realização espiritual.
O escritor alemão encara a experiência bélica, portanto, como derradeira oportunidade para o homem contemporâneo, ser avesso ao substrato mítico e religioso que lastreia seus alicerces históricos e culturais, livrar-se do pragmatismo medíocre e conformista, para então alçar-se à olímpica esfera das virtudes de um legítimo
Kshatrya (o arquétipo védico do Guerreiro), para quem o combate tem sua recompensa em si mesmo, ainda que não seja coroado pela vitória; ou, em outras palavras: um homem para quem a guerra é uma esfera que vai muito além das causas e circunstâncias que condicionam cada conflagração em particular, estabelecendo-se, ao contrário, como dimensão cósmica que se projeta na ETERNIDADE, onde os autênticos kshatriya não podem ser derrotados pelos escravos do 'Reino da Quantidade' (Guenón), das sombras voláteis e fugidias do ‘Agora’, submetidos ao fluxo errático e transitório do TEMPO.
Para Jünger, portanto, mesmo que a vertiginosa evolução tecnológica da arte da guerra na modernidade acabe, ao fim e ao cabo, por minimizar a iniciativa individual do guerreiro, sua glória o projeta nos páramos da Eternidade. O mesmo acervo de idéias seria retomado mais tarde, vale dizer, n’outro ensaio do autor, "A Guerra como experiência interior" (1922), onde Jünger, à luz do "Bhagavad Gita", reafirma sua concepção da guerra como transfiguração coletiva do conflito primordial entre o BEM e o MAL, dimensões presentes no espírito de cada ser humano.
Mencionemos também, ainda no campo restitucionista, o filósofo italiano Julius Evola (1898 - 1974), senhor d’um estilo inigualável em sua épica majestade e estratosférico arrebatamento, com sua defesa do retorno aos arcanos da Tradição como alimento espiritual para a ‘revolta contra o mundo moderno’ (título, aliás, de seu trabalho mais importante, publicado em 1934), ainda que tal revolta conduza o ‘aristocrata do espírito’ ao desterro e isolamento no seio da sociedade burguesa (consoante enfatiza o autor siciliano, "uma única coisa deve importar ao Homem: permanecer de pé entre as ruínas."). É mister salientar o significado do conceito de Tradição engloba, em sentido lato, os fundamentos, os alicerces espirituais der cada civilização. Em sentido mais restrito (tal como o que podemos identificar, por exemplo, no pensamento de autores como o chileno Miguel Serrano e a francesa Savitri Devi - nascida Maximine Julia Portaz), trata-se na crença na ‘Idade de Ouro’ durante a existência da Hiperbórea, país mítico que, consoante a mitologia grega, localizava-se no extremo norte da Grécia, na região da Trácia (que hoje corresponde áreas da própria Grécia, da Turquia e da Bulgária), onde reinava Bóreas, o semideus do Vento Norte, súdito de Apolo.
Para Evola, trata-se, sobretudo, da revolta sagrada do sentido atávico da existência (simbolicamente encarnado nas tradições culturais caudatárias do ethos hiperbóreo) contra os falsos ídolos da razão, cujo móvel seria aniquilar qual sede de realização espiritual na alma do homem contemporâneo. Tal perspectiva, que predica a nobreza do espírito ascético do ‘Aristocrata de Espírito’ em meio à desintegração política, moral e cultural, sob a égide das ideologias iluministas, da civilização ocidental é, vale dizer, sintetizada à perfeição num dos mais incisivos ensaios de Evola, "Orientações" (1971):
"No sentido espiritual, existe efetivamente algo que pode servir como orientação para as nossas forças de resistência e de revolta: este algo é o espírito legionário. É a atitude de quem sabe escolher o caminho mais duro, de quem sabe combater ainda que sabendo que a batalha está materialmente perdida, de quem sabe reviver e revalidar as palavras da antiga saga nórdica: «A fidelidade é mais forte do que o fogo»."
Por fim, no que concerne à faceta revolucionária do romantismo político, há que mencionar o engenheiro e sociólogo francês Georges Sorel (1847 - 1922), que em sua obra magna, "Reflexões sobre a Violência" (1908), estabelece uma distinção entre as noções de 'mito' - numa acepção político-ideológica do termo - e 'utopia / ideal', com o 'mito revolucionário' funcionando como 'profecia auto-realizável', no sentido de não depender de fatores transcendentes para ser levado a efeito; ou ainda o militante político e ensaísta peruano José Carlos Mariátegui (1894 -1930), que advogava, sob a influência do supracitado Sorel e de Charles Péguy, que "O mito move o homem na história. Sem um mito a existência do homem não tem nenhum sentido histórico. A história, fazem-na os homens possuídos e iluminados por uma crença superior, por uma esperança sobre-humana; os demais constituem o coro anônimo do drama. A crise da civilização burguesa mostrou-se evidente desde o instante em que esta civilização constatou a carência de um mito.(...) a força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. E uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito.” ("O Homem e o Mito" - 1925)
Mariátegui ressaltava, assim, a profunda emoção messiânica inerente a qualquer processo revolucionário, bem como seu caráter decididamente voluntarista e romântico; concebe, pois, o pensamento marxista não como tola pseudociência desprovida de fundamento epistemológico, mas como creación heroica da sociedade revolucionária. Destarte, o autor peruano insere-se inequivocamente na perspectiva de uma espécie de 'teologia messiânica' da ação revolucionária, onde, por um lado, o fervor religioso engendra a transformação política, e a consciência política, por outro, desperta a fé religiosa para a realidade concreta do Homem. É, em última análise, a concepção da política revolucionária como Mito e Mística, fome do Absoluto, construção mítica d’uma Nova Humanidade.
O expressionismo, por seu turno, renunciando a qualquer possibilidade de intervenção política, mergulha num turbilhão de pesadelos e aspirações caóticas.
Reparem, por exemplo, neste emblemático desígnio entranhado no imo do
ethos expressionista: por um lado, celebra-se / exalta-se a ‘Ditadura do Espírito’ sobre a Matéria, ou, n’outros termos, a brutal disposição do Eu totalitário que, negando a realidade objetiva, molda o Universo a sua imagem e semelhança; e, por outro lado, tal visão de mundo revolta-se
in limine contra qualquer autoridade socialmente constituída, justo porque tais autoridades emanam d’um ‘contrato coletivo’ objetivamente formulado, mas que não é sancionado por todos os indivíduos, e que vai especialmente de encontro às aspirações e desígnios daqueles que estão fora da esfera de convenções e procedimentos-padrão do ‘homem médio’. Percebe-se, pois, na cosmovisão expressionista, um inexorável sentimento de desconfiança, e mesmo de aversão, a qualquer forma de autoridade que não surja do livre jogo das subjetividades do EU.
A incapacidade de formular uma perspectiva transformativa do mundo radica na convicção de que o expressionista já não 'vê', mas tem 'visões'. Ou seja, a realidade não é mais contemplada segundo os dados dos sentidos, mas o homem consegue tão somente projetar visões subjetivas e interiorizantes do Real. A cadeia de fatos já não mais existe, existindo tão somente a visão interior que provocam. É preciso aprofundar sua essência, discernir o que há além de sua forma acidental. É o artista que, trespassando-os, se apodera da forma real que há por trás deles, e permite o conhecimento de sua essência verdadeira. O artista expressionista procura, em lugar de um efeito passageiro, o significado eterno dos fatos e objetos. Devemos - dizem os expressionistas -, nos desligar da natureza e tentar resgatar a “expressão mais expressiva de um objeto”, pois somente assim sua aura visível pode ser atravessada.
É preciso tratar ainda de outro ponto do expressionismo: a questão da abstração da realidade. O historiador Wilhelm Worringer, em seu "Abstraktion und Einfühlung" (1907), antecipa muitos preceitos do expressionismo, o que prova a que ponto esses axiomas estéticos estão próximos da
weltanschauung alemã.
A abstração, argumenta Worringer, nasce da grande inquietação que experimenta o homem aterrorizado pelos fenômenos que constata a seu redor e dos quais é incapaz de decifrar as relações, os misteriosos contrapontos. Essa inquietação primordial diante do ilimitado faz com que o homem tenha o desejo de ‘arrancar’ o objeto de seu contexto original, libertá-lo de sua teia de relações com os demais objetos, com o objetivo de, tornando-o único, atingir seu absoluto. Consoante tal perspectiva, o homem nórdico sempre sentirá a presença de “um véu entre ele e a natureza”, e por isso aspira a uma arte abstrata. Os povos germânicos, atormentados por uma discordância interior, que encontra obstáculos quase insuperáveis, precisam desta patética agonia que conduz à enigmática “animação do inorgânico”, tema que, aliás, é central na produção literária do romantismo alemão, e que pode ser visto em alguns dos melhores relatos de E.T.A Hoffmann, tais como "O Homem de Areia" e "Os Autômatos", bem como desempenhará um papel fundamental em um filme como "O Gabinete do Dr. Caligari". A energia vital presente no inorgânico, o estado de animação suspensa em que se encontram os objetos, são o caminho para atingir a essência de seu absoluto, que independe do estabelecimento de quaisquer relações transitórias.
Worringer considera que o homem mediterrâneo, tão perfeitamente harmônico, jamais conhecerá esse êxtase da “abstração expressiva”; Edschmid, por seu turno, enfatiza ainda que tudo deve permanecer na condição de esboço e vibrar de tensão imanente, para que sejam salvaguardadas a efervescência e a excitação perpétuas. Trata-se, pois, d'um mundo paralelo, povoado por visões subjetivas,
misteriosas agitações do inorgânico e profecias inquietantes sobre uma nova
era, a aurora de milagres cruéis.