Alphonse van Worden - 1750 AD
Encerrada a leitura de dois compêndios que compilam os principais pronunciamentos e manifestos de autoria de Sheykh Osama Bin Muhammad Bin Laden entre 1994 e 2006, pretendo avançar aqui algumas considerações, não tanto a propósito das questões pontuais abordadas pelo líder saudita, mas sim a respeito do universo espiritual e ideológico mais abrangente em que as idéias e perspectivas esposadas por Bin Laden a meu juízo se inserem.
Isto posto, gostaria preliminarmente de fazer uma observação de cunho estilístico: na medida em que é possível avaliar a excelência literária de qualquer autor através d'uma tradução em que a 'língua de partida' e a 'língua de chegada' são tão díspares (árabe e inglês), é mister salientar as óbvias qualidades de estilo presentes nos textos de Bin Laden. Sua escrita é altaneira, altissonante e majestosa, espraiando-se por períodos límpidos e cristalinos, a um só tempo caracterizados pela imagética exuberante recorrente nos clássicos da literatura islâmica, bem como pela concisão epigramática dos melhores textos de agitação política do Ocidente (cf. Robespierre, Saint-Just, Lenin, Mussolini, etc.). Trata-se, portanto, d'uma escritura que hipnotiza tanto pela beleza flamejante de suas audaciosas metáforas quanto por sua invejável capacidade de síntese; por fim, há que salientar o hábil emprego d’um vasto arsenal de estratégias de persuasão psicológica, bem como o impressionante senso de oportunidade que o comandante mujahid demonstra ao escolher o tom exato para cada parcela da opinião pública que tenciona atingir em suas diferentes intervenções.
*
As perspectivas advogadas por Bin Laden, não exatamente no que se refere a seu conteúdo específico, mas, sobretudo, no que tange o ethos arcano que encarnam, reverberam inequivocamente o universo do Traditionswelt descrito por autores como o italiano Julius Evola. Trata-se, com efeito, da visão de mundo de um homem que vai decididamente de encontro ao caráter utilitário, pragmático e 'quantificável' da modernidade, em nome dos valores perenes d'uma Ordem transcendente, atemporal. É, portanto, a contraposição essencial, transfigurada em conflito político, entre a dimensão contingente, transitória, cambiável e finita do TEMPO e a esfera necessária, permanente, imutável e infinita da ETERNIDADE; ou então, nos termos d'uma belíssima declaração do líder taliban, Mullah Omar ("Não tememos a morte, pois já estamos mortos; assim sendo, combatemos no Tempo, mas vivemos na Eternidade"), do confronto entre 'guerreiros santos' sublimados pela lux aeterna da Tradição, e vacilantes 'homens ocos' (TS Eliot) sob a égide do materialismo espiritual do Ocidente contemporâneo, seres avessos ao substrato mítico e religioso que lastreia seus alicerces históricos e culturais, em ruptura flagrante com as raízes mais atávicas de sua própria existência. Poderíamos aqui recorrer, confirmando a hipótese evoliana a propósito da unidade vital entre as diversas esferas da Tradição, às palavras de um guerreiro proveniente d'um universo cultural de todo distinto do de Bin Laden, o samurai Yamamoto Tsunetomo (1659 - 1719): “Todos os dias, sem falta, devemos nos considerar mortos. Existe um ditado dos antigos: ‘Saia de baixo do beiral do telhado, e você é um homem morto. Saia pelo portão e o inimigo está esperando’. Não é questão de ser cuidadoso. É considerar-se morto de antemão”. Em outras palavras: aqueles que combatem na Eternidade, isto é, cuja guerra assume uma dimensão cósmica, destarte transcendendo todos os limites do espaço-tempo, não podem ser derrotados pelos escravos do 'Reino da Quantidade', das sombras voláteis e fugidias do ‘Agora’, submetidos ao fluxo errático e transitório do Tempo. Consoante Evola a define, trata-se, sobretudo, da revolta sagrada do sentido atávico da existência contra os falsos ídolos da razão, cujo móvel seria aniquilar qualquer anseio por realização espiritual na alma do homem contemporâneo. Tal perspectiva, que predica a nobreza do espírito ascético do ‘Aristocrata de Espírito’ em meio à desintegração política, moral e cultural, sob a égide das ideologias iluministas, da civilização ocidental é, vale dizer, sintetizada à perfeição num dos mais incisivos ensaios do autor italiano, Orientações (1971): "No sentido espiritual, existe efetivamente algo que pode servir como orientação para as nossas forças de resistência e de revolta: este algo é o espírito legionário. É a atitude de quem sabe escolher o caminho mais duro, de quem sabe combater mesmo sabendo que a batalha está materialmente perdida, de quem sabe reviver e revalidar as palavras da antiga saga nórdica: «A fidelidade é mais forte do que o fogo»."
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Não seria desarrazoado especular que ínclitos apóstolos da 'Revolução Conservadora', tais como Julius Evola, Gottfried Benn ou Ernst Jünger, fossem incapazes de compreender a real dimensão d'uma figura histórica como Bin Laden; afinal de contas, mesmo homens de gênio são permeáveis aos condicionamentos ideológicos de seu tempo. Não obstante, ouso afirmar que um pensador como Aleksandr Dugin, por exemplo, livre do reducionismo conceitual gerado por uma clivagem ideológica que hodiernamente não faz mais sentido - a dicotomia clássica entre 'esquerda' / 'direita' -, está apto a entender que Bin Laden é hoje um elemento axial na articulação política d'uma nova síntese dinâmica entre, por um lado, as sempiternas e vivificantes raízes da Tradição e, por outro, a miríade de perspectivas, à ‘esquerda’ e à ‘direita’, do antilberalismo e anticapitalismo. Vale sublinhar, aliás, que o próprio líder mujahid percebe com clareza, ainda que por vias distintas (notadamente em sua virulenta crítica à adoção, por parte de certos ulema e imams na Arábia Saudita e outros países muçulmanos, de esquemas conceituais oriundos da mentalidade laica da intelligentsia ocidental pós-iluminista), a essência primordial da tragédia política moderna: o conflito entre capitalismo e comunismo, liberalismo e marxismo, é a guerra fratricida entre dois 'grandes irmãos', incontrastável manifestação da contenda ancestral entre as duas cabeças de Janus, as duas grandes emanações da razão iluminista convertida em deidade secular, enquanto a Tradição, verdadeira inimiga de ambos, ausentava-se da ribalta histórica a partir de fins do século XVIII. A esse respeito, a famosa tese advogada pelo cientista político norte-americano Samuel Huntington a propósito da natureza do conflito central da contemporaneidade, cujo locus privilegiado seria a dicotomia Ocidente / Oriente, não passa de um espantalho, um 'cavalo de tróia', a ocultar, se calhar deliberadamente, a natureza essencial do conflito em tela, ou seja, que envolve o ressurgimento do ethos tradicional como força política atuante. Assim sendo, o antagonismo não é geográfico, nem tampouco político ou cultural; é, ao contrário, de índole ESPIRITUAL, no sentido mais profundo do termo.
*
Tendo em vista o quadro de referência acima esboçado, o célebre '11 de Setembro' constitui, quero crer, uma manifestação concreta e inequívoca da 'revolta contra o mundo moderno' evoliana; e tal 'revolta' não é de forma alguma apanágio exclusivo do Oriente, tal como pretendem certos intérpretes ‘culturalistas’, mas se inscreve na esfera universal da TRADIÇÃO. Com efeito, a crença de que há uma dimensão superior ao mero devir temporal, de que o tempo, como diria Platão no Timeu, é apenas "a imagem móvel da Eternidade", alimenta o fulgor sagrado daqueles que se vêem investidos nas lides da guerra santa contra a pseudoconsciência fugaz e fragmentária da modernidade. Por um lado, a magnífica operação de jihad capitaneada por Sheykh Bin Laden demonstrou que a força impertérrita duma convicção ancestral pode superar o poder temporal do 'Reino da Quantidade', ou seja, que o pretensamente inexpugnável moloch não é invencível; e por outro, que é possível atuar politicamente no mundo contemporâneo sem submeter-se aos desígnios perecíveis do TEMPO, mas sim estando sob a égide rutilante da ETERNIDADE. O '11 de Setembro' é, portanto, uma demonstração cabal e insofismável de que toda a potência tecnológica e militar do 'Império’, onde a guerra é encarada tão somente como instrumento de acumulação de poder material, não pôde resistir à sempiterna e serena força daqueles que compreendem a guerra como esfera de realização espiritual e sublimação do que há de mais nobre e heróico na natureza humana. E mesmo que por ora tal pureza de convicção seja eventualmente apanágio de poucos, vale aqui rememorar a supina divisa de Santo Atanásio: “Se o mundo estiver contra a verdade, então Atanásio estará contra o mundo!”. Destarte, ao homem plenamente plena e visceralmente convicto da divina sabedoria das Leis Eternas não importa o vozerio fátuo e volúvel das multidões, pois ele detém o Caminho, enquanto todos os demais, plenos de orgulhosa insensatez e fátuas, ‘certezas’ fátuas, em verdade vagueiam perdidos por um orco de trevas.
*
Impõe-se, neste momento, a seguinte indagação: por que as emproadas ‘democracias’ ocidentais manifestam tamanho temor em relação a movimentos como a Al Q’aida, o Hamas ou o Hizbollah? A resposta não passa apenas, como soem proclamar os corifeus da ‘guerra ao terror’ (pouco importa se ‘republicanos’ ou ‘democratas’), por meras questões de segurança e estratégia, mas atinge, na verdade, um plano muito mais recôndito e fatal, vale dizer, a terrível e generalizada crise que o Ocidente atravessa em praticamente todos os seus sistemas de crença. Decerto não falo aqui das hordas ignaras de sequazes do televangelismo, por exemplo, ou de outros opiáceos pseudoespirituais do mesmo jaez, mas sim das elites políticas e intelectuais do Ocidente, ou seja, daqueles que efetivamente têm nas mãos as rédeas de nossas 'democracias'. Ora, sabemos todos que nossas elites estão cada vez mais céticas, cada vez mais destituídas de qualquer convicção profunda, cada vez menos seguras de si mesmas; em contraposição à essa dinâmica, temos em figuras como Osamma Bin Laden um estado de certeza plena, peremptória e inexorável a propósito de seus mais recônditos desígnios. A modernidade vacilante, descrente de si mesma, irreversivelmente submetida à precariedade da lógica temporal, incapaz de gerar qualquer estratégia discursiva nova de legitimação, não pode vencer os que "combatem na Eternidade". Como diria mestre Dugin: "É o retorno dos Arcanjos, a ressurreição dos Heróis, a revolta do Coração contra a ditadura da Razão."
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É forçoso também fazer uma consideração sobre as eventuais ressalvas que certos vetustos senhores, muito ciosos da ‘pureza’ imaculada dos valores perenes da Tradição, levantam a propósito da ‘heterodoxia’ das concepções religiosas de Bin Laden... sejamos francos, meus caros: que importa se a 'teologia política' de Bin Laden é ou não 'ortodoxa'? O que importa é que ela reverbera, sim, valores tradicionais, sobretudo no que se refere à perspectiva de agir politicamente não em nome de circunstâncias transitórias, reivindicações conjunturais (de ordem classista, nacionalista ou regionalista) ou de valores puramente 'ideológicos', mas sim em nome d'uma esfera de transcendência que ultrapassa a História e o próprio Tempo para consubstanciar-se na Eternidade. Assim sendo, o exemplo de Bin Laden é válido como demonstração da força d'uma convicção transcendente contra os imperativos pragmáticos de poderes políticos em crise terminal de legitimidade. Seria, pois, de bom alvitre que os supracitados ‘custódios’ da Tradição lessem, ao menos por ora, mais Dugin e menos Guénon...
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Por fim, uma observação a propósito d’um aspecto pouco abordado, mas de grande relevância, a propósito de nosso personagem: muito embora o eixo de gravidade da formação ideológica de Bin Laden seja a leitura do Islã político feita por pensadores wahabbitas ‘heterodoxos’ (mormente os irmãos egípcios Sayyid e Muhammad Qutb, bem como o palestino Abdallah Azzam, todos militantes da Fraternidade Muçulmana), depreende-se claramente da leitura de seus textos que o Sheykh saudita está muitíssimo bem informado a respeito do pensamento político contemporâneo no Ocidente; destarte, através do emprego de certos termos, bem como da natureza de certas reflexões, encontramos os ecos d'uma ampla plêiade de pensadores: de Noam Chomsky a Samuel Huntington, passando por Francis Fukuyama, Anthony Giddens, Michael Parenti, Antonio Negri, Michael Hardt, etc. Bin Laden está plenamente equipado, portanto, para uma análise em alto nível da geopolítica mundial, lide a que amiúde se dedica com grande clareza, lucidez e descortino crítico, surpreendendo assim os que o têm na conta de um 'fanático' religioso primitivo.
Encerrada a leitura de dois compêndios que compilam os principais pronunciamentos e manifestos de autoria de Sheykh Osama Bin Muhammad Bin Laden entre 1994 e 2006, pretendo avançar aqui algumas considerações, não tanto a propósito das questões pontuais abordadas pelo líder saudita, mas sim a respeito do universo espiritual e ideológico mais abrangente em que as idéias e perspectivas esposadas por Bin Laden a meu juízo se inserem.
Isto posto, gostaria preliminarmente de fazer uma observação de cunho estilístico: na medida em que é possível avaliar a excelência literária de qualquer autor através d'uma tradução em que a 'língua de partida' e a 'língua de chegada' são tão díspares (árabe e inglês), é mister salientar as óbvias qualidades de estilo presentes nos textos de Bin Laden. Sua escrita é altaneira, altissonante e majestosa, espraiando-se por períodos límpidos e cristalinos, a um só tempo caracterizados pela imagética exuberante recorrente nos clássicos da literatura islâmica, bem como pela concisão epigramática dos melhores textos de agitação política do Ocidente (cf. Robespierre, Saint-Just, Lenin, Mussolini, etc.). Trata-se, portanto, d'uma escritura que hipnotiza tanto pela beleza flamejante de suas audaciosas metáforas quanto por sua invejável capacidade de síntese; por fim, há que salientar o hábil emprego d’um vasto arsenal de estratégias de persuasão psicológica, bem como o impressionante senso de oportunidade que o comandante mujahid demonstra ao escolher o tom exato para cada parcela da opinião pública que tenciona atingir em suas diferentes intervenções.
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As perspectivas advogadas por Bin Laden, não exatamente no que se refere a seu conteúdo específico, mas, sobretudo, no que tange o ethos arcano que encarnam, reverberam inequivocamente o universo do Traditionswelt descrito por autores como o italiano Julius Evola. Trata-se, com efeito, da visão de mundo de um homem que vai decididamente de encontro ao caráter utilitário, pragmático e 'quantificável' da modernidade, em nome dos valores perenes d'uma Ordem transcendente, atemporal. É, portanto, a contraposição essencial, transfigurada em conflito político, entre a dimensão contingente, transitória, cambiável e finita do TEMPO e a esfera necessária, permanente, imutável e infinita da ETERNIDADE; ou então, nos termos d'uma belíssima declaração do líder taliban, Mullah Omar ("Não tememos a morte, pois já estamos mortos; assim sendo, combatemos no Tempo, mas vivemos na Eternidade"), do confronto entre 'guerreiros santos' sublimados pela lux aeterna da Tradição, e vacilantes 'homens ocos' (TS Eliot) sob a égide do materialismo espiritual do Ocidente contemporâneo, seres avessos ao substrato mítico e religioso que lastreia seus alicerces históricos e culturais, em ruptura flagrante com as raízes mais atávicas de sua própria existência. Poderíamos aqui recorrer, confirmando a hipótese evoliana a propósito da unidade vital entre as diversas esferas da Tradição, às palavras de um guerreiro proveniente d'um universo cultural de todo distinto do de Bin Laden, o samurai Yamamoto Tsunetomo (1659 - 1719): “Todos os dias, sem falta, devemos nos considerar mortos. Existe um ditado dos antigos: ‘Saia de baixo do beiral do telhado, e você é um homem morto. Saia pelo portão e o inimigo está esperando’. Não é questão de ser cuidadoso. É considerar-se morto de antemão”. Em outras palavras: aqueles que combatem na Eternidade, isto é, cuja guerra assume uma dimensão cósmica, destarte transcendendo todos os limites do espaço-tempo, não podem ser derrotados pelos escravos do 'Reino da Quantidade', das sombras voláteis e fugidias do ‘Agora’, submetidos ao fluxo errático e transitório do Tempo. Consoante Evola a define, trata-se, sobretudo, da revolta sagrada do sentido atávico da existência contra os falsos ídolos da razão, cujo móvel seria aniquilar qualquer anseio por realização espiritual na alma do homem contemporâneo. Tal perspectiva, que predica a nobreza do espírito ascético do ‘Aristocrata de Espírito’ em meio à desintegração política, moral e cultural, sob a égide das ideologias iluministas, da civilização ocidental é, vale dizer, sintetizada à perfeição num dos mais incisivos ensaios do autor italiano, Orientações (1971): "No sentido espiritual, existe efetivamente algo que pode servir como orientação para as nossas forças de resistência e de revolta: este algo é o espírito legionário. É a atitude de quem sabe escolher o caminho mais duro, de quem sabe combater mesmo sabendo que a batalha está materialmente perdida, de quem sabe reviver e revalidar as palavras da antiga saga nórdica: «A fidelidade é mais forte do que o fogo»."
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Não seria desarrazoado especular que ínclitos apóstolos da 'Revolução Conservadora', tais como Julius Evola, Gottfried Benn ou Ernst Jünger, fossem incapazes de compreender a real dimensão d'uma figura histórica como Bin Laden; afinal de contas, mesmo homens de gênio são permeáveis aos condicionamentos ideológicos de seu tempo. Não obstante, ouso afirmar que um pensador como Aleksandr Dugin, por exemplo, livre do reducionismo conceitual gerado por uma clivagem ideológica que hodiernamente não faz mais sentido - a dicotomia clássica entre 'esquerda' / 'direita' -, está apto a entender que Bin Laden é hoje um elemento axial na articulação política d'uma nova síntese dinâmica entre, por um lado, as sempiternas e vivificantes raízes da Tradição e, por outro, a miríade de perspectivas, à ‘esquerda’ e à ‘direita’, do antilberalismo e anticapitalismo. Vale sublinhar, aliás, que o próprio líder mujahid percebe com clareza, ainda que por vias distintas (notadamente em sua virulenta crítica à adoção, por parte de certos ulema e imams na Arábia Saudita e outros países muçulmanos, de esquemas conceituais oriundos da mentalidade laica da intelligentsia ocidental pós-iluminista), a essência primordial da tragédia política moderna: o conflito entre capitalismo e comunismo, liberalismo e marxismo, é a guerra fratricida entre dois 'grandes irmãos', incontrastável manifestação da contenda ancestral entre as duas cabeças de Janus, as duas grandes emanações da razão iluminista convertida em deidade secular, enquanto a Tradição, verdadeira inimiga de ambos, ausentava-se da ribalta histórica a partir de fins do século XVIII. A esse respeito, a famosa tese advogada pelo cientista político norte-americano Samuel Huntington a propósito da natureza do conflito central da contemporaneidade, cujo locus privilegiado seria a dicotomia Ocidente / Oriente, não passa de um espantalho, um 'cavalo de tróia', a ocultar, se calhar deliberadamente, a natureza essencial do conflito em tela, ou seja, que envolve o ressurgimento do ethos tradicional como força política atuante. Assim sendo, o antagonismo não é geográfico, nem tampouco político ou cultural; é, ao contrário, de índole ESPIRITUAL, no sentido mais profundo do termo.
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Tendo em vista o quadro de referência acima esboçado, o célebre '11 de Setembro' constitui, quero crer, uma manifestação concreta e inequívoca da 'revolta contra o mundo moderno' evoliana; e tal 'revolta' não é de forma alguma apanágio exclusivo do Oriente, tal como pretendem certos intérpretes ‘culturalistas’, mas se inscreve na esfera universal da TRADIÇÃO. Com efeito, a crença de que há uma dimensão superior ao mero devir temporal, de que o tempo, como diria Platão no Timeu, é apenas "a imagem móvel da Eternidade", alimenta o fulgor sagrado daqueles que se vêem investidos nas lides da guerra santa contra a pseudoconsciência fugaz e fragmentária da modernidade. Por um lado, a magnífica operação de jihad capitaneada por Sheykh Bin Laden demonstrou que a força impertérrita duma convicção ancestral pode superar o poder temporal do 'Reino da Quantidade', ou seja, que o pretensamente inexpugnável moloch não é invencível; e por outro, que é possível atuar politicamente no mundo contemporâneo sem submeter-se aos desígnios perecíveis do TEMPO, mas sim estando sob a égide rutilante da ETERNIDADE. O '11 de Setembro' é, portanto, uma demonstração cabal e insofismável de que toda a potência tecnológica e militar do 'Império’, onde a guerra é encarada tão somente como instrumento de acumulação de poder material, não pôde resistir à sempiterna e serena força daqueles que compreendem a guerra como esfera de realização espiritual e sublimação do que há de mais nobre e heróico na natureza humana. E mesmo que por ora tal pureza de convicção seja eventualmente apanágio de poucos, vale aqui rememorar a supina divisa de Santo Atanásio: “Se o mundo estiver contra a verdade, então Atanásio estará contra o mundo!”. Destarte, ao homem plenamente plena e visceralmente convicto da divina sabedoria das Leis Eternas não importa o vozerio fátuo e volúvel das multidões, pois ele detém o Caminho, enquanto todos os demais, plenos de orgulhosa insensatez e fátuas, ‘certezas’ fátuas, em verdade vagueiam perdidos por um orco de trevas.
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Impõe-se, neste momento, a seguinte indagação: por que as emproadas ‘democracias’ ocidentais manifestam tamanho temor em relação a movimentos como a Al Q’aida, o Hamas ou o Hizbollah? A resposta não passa apenas, como soem proclamar os corifeus da ‘guerra ao terror’ (pouco importa se ‘republicanos’ ou ‘democratas’), por meras questões de segurança e estratégia, mas atinge, na verdade, um plano muito mais recôndito e fatal, vale dizer, a terrível e generalizada crise que o Ocidente atravessa em praticamente todos os seus sistemas de crença. Decerto não falo aqui das hordas ignaras de sequazes do televangelismo, por exemplo, ou de outros opiáceos pseudoespirituais do mesmo jaez, mas sim das elites políticas e intelectuais do Ocidente, ou seja, daqueles que efetivamente têm nas mãos as rédeas de nossas 'democracias'. Ora, sabemos todos que nossas elites estão cada vez mais céticas, cada vez mais destituídas de qualquer convicção profunda, cada vez menos seguras de si mesmas; em contraposição à essa dinâmica, temos em figuras como Osamma Bin Laden um estado de certeza plena, peremptória e inexorável a propósito de seus mais recônditos desígnios. A modernidade vacilante, descrente de si mesma, irreversivelmente submetida à precariedade da lógica temporal, incapaz de gerar qualquer estratégia discursiva nova de legitimação, não pode vencer os que "combatem na Eternidade". Como diria mestre Dugin: "É o retorno dos Arcanjos, a ressurreição dos Heróis, a revolta do Coração contra a ditadura da Razão."
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É forçoso também fazer uma consideração sobre as eventuais ressalvas que certos vetustos senhores, muito ciosos da ‘pureza’ imaculada dos valores perenes da Tradição, levantam a propósito da ‘heterodoxia’ das concepções religiosas de Bin Laden... sejamos francos, meus caros: que importa se a 'teologia política' de Bin Laden é ou não 'ortodoxa'? O que importa é que ela reverbera, sim, valores tradicionais, sobretudo no que se refere à perspectiva de agir politicamente não em nome de circunstâncias transitórias, reivindicações conjunturais (de ordem classista, nacionalista ou regionalista) ou de valores puramente 'ideológicos', mas sim em nome d'uma esfera de transcendência que ultrapassa a História e o próprio Tempo para consubstanciar-se na Eternidade. Assim sendo, o exemplo de Bin Laden é válido como demonstração da força d'uma convicção transcendente contra os imperativos pragmáticos de poderes políticos em crise terminal de legitimidade. Seria, pois, de bom alvitre que os supracitados ‘custódios’ da Tradição lessem, ao menos por ora, mais Dugin e menos Guénon...
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Por fim, uma observação a propósito d’um aspecto pouco abordado, mas de grande relevância, a propósito de nosso personagem: muito embora o eixo de gravidade da formação ideológica de Bin Laden seja a leitura do Islã político feita por pensadores wahabbitas ‘heterodoxos’ (mormente os irmãos egípcios Sayyid e Muhammad Qutb, bem como o palestino Abdallah Azzam, todos militantes da Fraternidade Muçulmana), depreende-se claramente da leitura de seus textos que o Sheykh saudita está muitíssimo bem informado a respeito do pensamento político contemporâneo no Ocidente; destarte, através do emprego de certos termos, bem como da natureza de certas reflexões, encontramos os ecos d'uma ampla plêiade de pensadores: de Noam Chomsky a Samuel Huntington, passando por Francis Fukuyama, Anthony Giddens, Michael Parenti, Antonio Negri, Michael Hardt, etc. Bin Laden está plenamente equipado, portanto, para uma análise em alto nível da geopolítica mundial, lide a que amiúde se dedica com grande clareza, lucidez e descortino crítico, surpreendendo assim os que o têm na conta de um 'fanático' religioso primitivo.