Alphonse van Worden - 1750 AD
É cada vez mais premente, preclaros confrades, a necessidade de regenerar espiritualmente a Cristandade; e, para tanto, a Europa é o princípio de tudo: à leste, sob o primado do Patriarca de Moscou; à oeste, sob a égide do Sumo Pontífice de Roma.
E tal mister não é uma preocupação recente, saliente-se: autores como TS Eliot e Chesterton, por exemplo, no século XX; Solovyov e Dostoyevsky, na segunda metade do século XIX; e anteriormente, homens como Joseph de Maistre e Donoso Cortés, e outros mais, já haviam atentado para este importante tópico.
Não obstante, creio que o alemão Novalis, consoante já asseveramos n’outra feita, se calhar foi o autor que melhor sintetizou a essência da questão. Em
A Cristandade ou a Europa (1799), notável peça de apologética cristã, Novalis advoga um retorno à Idade Média, cuja unidade harmônica poderia regenerar uma Europa convulsionada por dissensões políticas e religiosas; seria, pois, o caminho para o ‘reencantamento’ do mundo moderno, fragmentado e desprovido de um sentido maior. A noção de um ‘todo’ uno e coerente, ou seja, de uma cosmovisão capaz de articular de forma convergente e coesa as instâncias política, econômica, cultural e religiosa, bem como de conferir transcendência à vida social, é a perspectiva dominante neste escrito, consoante sua notável abertura nos revela: “Belos, esplêndidos tempos: a Europa era terra cristã, e a Cristandade habitava una este recanto de mundo humanamente configurado...”.
Assim sendo, o autor crê que a Europa deixara de ser um paraíso sobre a terra devido à evolução das relações comerciais, que gerou o esfacelamento do continente em vários estados nacionais beligerantes; e enquanto o continente não retornar à unidade transcendente em Cristo, Novalis, deveras sombrio, assevera que “o sangue correrá através da Europa”, sublinhando que apenas "a religião será capaz de ressuscitar a Europa, bem como de dar segurança a seu povo... e o resto do mundo aguarda pela ascensão e reconciliação da Europa, de maneira a somar-se a ela e assim ingressar no Paraíso”.
Destarte, a pergunta que se impõe é a seguinte: seria o ideal de Novalis, e de tantos outros ilustres autores, ainda plenamente realizável no mundo contemporâneo...? Decerto que não, mormente em termos de organização econômica, dada a extrema complexidade operacional dos mecanismos de gestão na atualidade, bem como o entrelaçamento dinâmico dos ativos financeiros em escala global; quero crer, todavia, que é algo parcialmente exeqüível como movimento cultural, e que, portanto, é possível pugnar por tal iniciativa, que seria não apenas sobremaneira salutar para o continente europeu, mas também para todos nós que, cultural e espiritualmente, somos herdeiros do Velho Mundo.
O grande busílis radica, contudo, na trágica incompreensão, por parte de muitos cristãos, de que tanto o socialismo quanto o liberalismo são tão somente as 'duas cabeças de Janus' do maior inimigo histórico da fé cristã: o iluminismo.
O movimento que tenho em mente deveria partir d'um esforço concreto, verdadeiramente efetivo, de convergência entre ortodoxos e católicos. Ora, as razões que conduziram ao Cisma de 1054 são hoje, em sua esmagadora maioria, questões históricas inteiramente mortas, ou então sutis bizantinismos teológicos que, sejamos francos, hoje só interessam à 'meia dúzia de três' doutíssimos nefelibatas.
Mesmo havendo um legado de incompreensões mútuas, de arestas a serem aparadas, é mister superar tais contenciosos em nome d'um móvel infinitamente mais importante: a preservação da Cristandade, isto é, do pilar central de nossa fé, de nossa cultura, de nosso próprio destino. O báratro em que estamos mergulhados, há que ter plena ciência disto, é profundo demais para ficarmos agora, com o perdão da rude expressão, a perder tempo com filigranas teológicas. Católicos e ortodoxos deveriam, de facto, marchar juntos, quer estejam 'formalmente' unidos ou não, contra o deletério legado iluminista.
Isto posto, é de meu talante discorrer a propósito das tribulações que envolvem , no que concerne ao móvel em tela, mais e especificamente a Igreja Católica.
Muito bem: a Igreja Católica parece ter paulatinamente perdido, a partir da segunda metade do século XIX, sobretudo, tanto a capacidade quanto a CORAGEM (o que é ainda pior!) de organizar-se e atuar politicamente de forma integrada, abrangente, incisiva. A Igreja está intimidada, acovardada... e o que é mais grave: assumiu compromissos obscuros e inconfessáveis com forças que vão inteiramente de encontro à essência da cosmovisão cristã. A Igreja sabe muito bem o quanto a modernidade lhe é hostil; não obstante, ao mesmo tempo, já foi cooptada pela 'Hidra Iluminista' em vários aspectos, os quais teme olhar de frente.
Assim sendo, as piores vicissitudes ocultam-se no âmago, no ventre da própria Igreja, que parece não ter mais genuína fé em si mesma. E se a Igreja tivesse noção da capacidade que, apesar de tudo, ainda detém, no imo de sua mais recôndita e primordial substância, de sacudir os alicerces do 'Reino da Quantidade'...!
No intuito, contudo, de tentar reverter tal tendência , de todo perniciosa, a Igreja deveria, em primeiríssimo lugar, reafirmar de forma cabal, visceral, inequívoca, incontrastável e insofismável, a
absoluta incompatibilidade existente entre a essência da doutrina católica e as ideologias da Modernidade, ou seja, o liberalismo e o socialismo; o que, em outras palavras, significa dizer:
'capitalismo e comunismo, liberalismo e marxismo, não nos servem, não refletem a nossa fé, a nossa índole profunda, a nossa orientação moral, a nossa missão, o nosso destino!’.
Claro está que isto a princípio teria um efeito tão somente 'conceitual' em termos de ação política, algo d’alcance mormente doutrinário; tal iniciativa, porém, constituiria, tenham certeza, um grande ponto de inflexão, um verdadeiro divisor d'águas em termos de simbolismo político, filosófica e espiritual.
Não obstante, o que venho percebendo nos últimos lustros, mormente entre algumas seara de ‘tradicionalistas católicos', é uma notável disposição e galhardia na hora de condenar o marxismo, o socialismo, o comunismo, o anarquismo, etc... pois bem: mas e na hora de 'descer o sarrafo', em bom e castiço português, nas perversões do liberalismo, nas iniqüidades espirituais, morais e sociais do capitalismo, o que acontece com toda essa valentia e determinação? Simplesmente
DESAPARECE, evapora , desintegra-se, e a grande maioria passa a portar-se como carneirinhos dóceis e submissos! Ora, que significa isso, se não uma desprezível manifestação de hipocrisia?!?
Prossigamos, contudo: em segundo lugar, ou seja, reiterada e proclamada, em alto e bom som, a
TOTAL e
DEFINITIVA ruptura da Igreja em relação às ideologias iluministas, deveria a Santa Madre dar início a um amplo, intenso processo de preparação para a ação política efetiva. Tal dinâmica passaria, claro está, pela releitura da vasta tradição da teologia política católica; pelo exame do catolicismo enquanto 'forma política' (Carl Schmitt) através dos séculos; pela retomada de velhas idéias ora olvidadas e, conseqüentemente, pela formulação de novas propostas a partir d'um saber acumulado
per saecula saeculorum.
Que se repense, pois, em novas bases, isto é, tendo em vista o contexto hodierno, as idéias de Santo Agostinho, Eusébio de Cesaréia, Savonarola, Marsilio da Padova, William of Ockham, S. Tomás de Aquino e outros grandes teólogos que refletiram a propósito das relações entre
IGREJA e
ESTADO ou seja, entre os 'braços' espiritual e secular; a doutrina social da Igreja; a virilidade marcial dos gibelinos; a admirável 'engenharia administrativa' implementada por Santo Inácio de Loyola na
Societas Iesu; o modelo 'distributivista' de Chesterton e Belloc; o 'princípio de subsidiariedade' proposto por Pio XI; etc., etc., etc., em suma, todo o riquíssimo legado de perspectivas teóricas e experiências históricas da Igreja na esfera da política, de maneira a descortinar novos horizontes de organização social que de facto encarnem legitimamente as doutrinas da Igreja. Enfim, há que 'colocar a cabeça para funcionar', ‘meter as mãos na massa’, envidar todos os esforços para salvar / restaurar o que for possível no que tange ao
VERDADEIRO Ocidente.
E acrescento: hoje, mais do que nunca em sua História, a Igreja precisa ter a sabedoria incorporar o que houver de proveitoso nas grandes tradições gnósticas ocidentais (antes tão vilipendiadas e perseguidas), sobretudo pelo facto de terem acumulado um profundo legado de revolta messiânica contra a '
REALIDADE'.
Desnecessário sublinhar, creio eu, que há no mundo contemporâneo uma galáxia de transformações, deformações e disfunções irreversíveis; miríades de circunstâncias incontornáveis; que '"falar é fácil"; que "o papel aceita tudo"; etc., etc., etc... estamos, pois, plenamente cientes de todas as dificuldades, vicissitudes, obstáculos e ameaças em nossa jornada, sem dúvida... mas d'uma coisa, não obstante, temos plena certeza: o que em absoluto não mais pode ser tolerado é ver a Igreja assistir, de braços cruzados, inerte, se calhar já em estado de quase catatonia, à desintegração da civilização que Ela gerou. Há que recuperar, da maneira e na proporção em que for possível, a férrea disposição para a ação política que a Igreja já teve . Onde está, por exemplo, o fervor militante, o ímpeto marcial, a 'ira santa' de Santo Inácio de Loyola e sua excelsa ordem, os gloriosos 'soldados da Igreja'? É mister retomar esse espírito, mesmo que a princípio em plano meramente simbólico.
À guisa de encerramento, há que ainda tecer uma consideração: enganam-se, profunda e tragicamente, os que vêem na ascensão do Islã xiita uma ameaça à sobrevivência da civilização cristã; a verdade caminha precisamente em sentido contrário, aliás: uma Igreja revigorada, confiante, pejada de ânimo combativo, teria no Islã xiita um precioso aliado na revolta contra o mundo moderno. Devemos buscar um agir político que emerja do próprio imo da consciência religiosa; ou, melhor dizendo, um impulso de transformação social, cultural e espiritual que nasça não da razão política, mas dos postulados transcendentes da fé, que faça da religião um agir político, e vice-versa. Portanto, a despeito de quaisquer dissensões de âmbito doutrinário (que são múltiplas e inexoráveis, seria uma estultícia negá-lo), penso que a Igreja deveria estudar atentamente o eloqüente exemplo da Revolução Islâmica iraniana: com efeito, a liderança de Khomeini, a um só tempo demonstrando extrema sagacidade e fidelidade aos cânones de sua religião, não canalizou politicamente o Islã para fazer a revolução iraniana, ou seja, não fez uso da religião para agir politicamente, mas sim lançou mão da política para atuar religiosamente em prol da regeneração espiritual e moral de seu país.
Eis, enfim, ó irmãos d’armas, o cerne, o
Alpha e o
Omega de toda a questão!