sábado, agosto 01, 2009

Notas de reflexão crítica XXI - a propósito da distinção central entre as cosmovisões OCIDENTAL e ORIENTAL

Alphonse van Worden - 1750 AD





- A distinção entre as visões de mundo OCIDENTAL e ORIENTAL consiste essencialmente da relação que ambas estabelecem a respeito do 'Problema do EU': o ethos ocidental caracteriza-se pela centralidade existencial do EU como sujeito agente e cognoscente, mesmo que, no plano das perspectivas transcendentes, à luz da inspiração e da inteligência divinas. Já nas metafísicas não-dualistas do Oriente, a própria existência material (o que obviamente inclui os indivíduos) é descrita como ilusão, e o objetivo precípuo da realização espiritual é o ‘esquecimento absoluto de si mesmo’ e a fusão no TODO.

- A tradicional distinção entre CONHECIMENTO e SABEDORIA já sublinha alguns aspectos dessa cisão oriente / ocidente, mas não esgota a questão. Vejamos: o mainstream, digamos assim, em termos de teoria do conhecimento na filosofia ocidental, contempla basicamente duas modalidades de cognição humana:


a) o conhecimento adquirido através da EXPERIÊNCIA, posteriormente sistematizado via generalização indutiva; é a forma de cognição que gera os enunciados sintéticos (ou apofânticos), ou seja, aqueles enunciados que afirmam ou negam alguma coisa sobre a realidade sensível, tal como as proposições científicas. Sua validade é determinada, pois, por intermédio de verificação empírica;

b) o conhecimento de conceitos abstratos via dedução racional. É essencialmente a modalidade de conhecimento que gera os enunciados analíticos, de índole tautológica (isto é, proposições verdadeiras por definição, cujo sentido permanece o mesmo sob diferentes arranjos de palavras ou símbolos). É, portanto, o conhecimento que corresponde ao universo lógico-matemático, cuja veracidade das proposições prescinde de verificação empírica.


- Outras 'formas' de conhecimento, claro está, foram abordadas por diversos autores através dos tempos: Aristóteles, por exemplo, afirma que a catarse trágica é uma experiência cognitiva; Spinoza sustenta que as paixões humanas também geram conhecimento; Bergson, por seu turno, que o ‘verdadeiro’ conhecimento surge a partir da ‘apreensão imediata do objeto’, vale dizer, do que irá denominar como ‘intuição do Absoluto’ de cada objeto, ou seja, do que ele possui de ‘único’, e que lhe é absolutamente intrínseco; e por aí vai, com 'n' outras perspectivas.

- Muito bem: no âmbito de uma cosmovisão transcendente, contudo, há algo que está além do conhecimento proporcionado pelo exercício da razão, bem como da cognição gerada por meio da experiência sensível; é, portanto, uma dimensão inalcançável tanto através da razão humana, quanto por intermédio de nossa experiência concreta. Trata-se exatamente da SABEDORIA, ou seja, daquilo que está além do intelecto e dos sentidos, é que só pode ser atingido sob os auspícios da inteligência divina; ou, em outras palavras, através da razão humana iluminada pela inspirada por Deus.

- Por outro lado, a leitura de QUALQUER texto-chave no âmbito das grandes tradições de índole não-dualista revela, de forma inequívoca e incontrastável, que o processo de 'realização espiritual' tem como meta derradeira a dissolução do EGO, que nada mais é que um feixe de ilusões, no UNO, que constitui a única e verdadeira REALIDADE.

- Considerem, por exemplo, o notável poema alegórico O Colóquio dos Pássaros (1177), de autoria do persa Farid al-Din Attar. Trata-se d'uma das obras clássicas da Irfan ('Sabedoria', 'Gnose') xiita, que é precisamente a tradição esotérica em que o ínclito Ayatullah Ruhollah Khomeini está inserido. O enredo é bem resumido pelo escritor Jorge Luis Borges:


O remoto rei dos pássaros, o Simurg, deixa cair no Centro da China uma esplêndida pluma; os pássaros resolvem buscá-lo, fartos de sua antiga anarquia. (...); sabem que seu castelo está em Kaf, a montanha circular que rodeia a Terra. Acometem a infinita aventura: transpõem sete vales, ou mares; o nome do penúltimo é 'Vertigem'; o último se chama 'Aniquilamento'. Muitos peregrinos desertam; outros perecem. Trinta, purificados pelos trabalhos, pisam a montanha do Simurg. Contemplam-no, finalmente; e percebem que eles são o Simurg, e que o Simurg é cada um deles e todos."


- Reparem: a transposição de cada Vale constitui uma etapa no processo de depuração / purificação do espírito; e o último Vale, o do 'Aniquilamento', é justamente o ápice de tal processo, quando ocorre o derradeiro e definitivo esquecimento de si mesmo ou, em outras palavras, a obliteração final de todas as ilusões do EGO. E enfim, quando já de todo despojados de sua consciência individual (que nada mais é, em última instância, que o somatório de seus enganos), os 30 pássaros que lograram 'realizar-se espiritualmente' enfim descobrem que o Simurg (ou seja, o TODO, o UNO) é "CADA um deles e TODOS" e, analogamente, que cada um deles verdadeiramente não EXISTE (no sentido mais recôndito do termo) como 'parte', mas sim como TOTALIDADE.

- Trata-se, enfim, recuperando aqui uma bonita metáfora de Attar, um "perder-se de si mesmo" completa e definitivamente. É a consciência absoluta da UNIDADE, algo que de certo modo podemos até 'representar' conceitualmente, mas não propriamente 'CONHECER', e sim 'SABER', como experiência visceral, incomunicável e intransferível.

- Eis, portanto, para o esoterismo xiita (bem como para as doutrinas metafísicas não-dualistas do Vedanta, por exemplo), o que seria a essência da SABEDORIA: "perder-se de si mesmo" em caráter absoluto e definitivo, para então se dissolver na UNIDADE SUPREMA, na TOTALIDADE UNIVERSAL.





2 comentários:

Rafael Reinehr disse...

Prezado Alphonse, apesar de não compartilhar de nenhum tipo de supertição mística ou religiosa instituída, tenho sincera e verdadeira afinidade com a busca transcendental que acabaste de descrever. O "perder-se de si mesmo", o aniquilamento do Ego para atingir uma fusão ao Uno, e Indivisível, nasceu em mim por volta de 1999, curiosamente, após a leitura de O Tao da Física, de Fritjof Capra. Naquele ano, passei a entender um pouco mais do misticismo e da filosofia orientais e comecei a deixar de lado - a partir de então conscientemente - a crença cristã luterana na qual havia sido inserido pelo costume de minha família. Confesso que tenho pouco conhecimento acerca do islamismo e, nas últimas duas semanas, tenho lido com particular apreço alguns dos teus escritos aqui neste blog e em alguns dos que recomendas na barra lateral. Fiquei positivamente impressionado com tua cultura e erudição e, de fato, gostaria de saber mais sobre a sua pessoa real: suas convicções, suas buscas e seu trabalho e objetivos para esta vida. Para tanto, gostaria de saber como posso encontrá-lo, além do espaço deste weblog. Não gosto de deixar e-mail , mas deixo uma forma de contato para o caso de aceitares dialogar: http://reinehr.org/contato/contacts/rafael-reinehr

Um abraço fraterno e parabéns pelos escritos estimulantes.

Alphonse van Worden disse...

O Tempo e o Espaço são ilusões; destarte, os quase onze anos que separam o comentário inicial desta réplica no fundo são uma mistificação urdida por nossa limitada percepção da Realidade. Portanto, sr. Reinehr, onde quer que estejas, aceita meu preito de gratidão por tuas gentis palavras.