quarta-feira, janeiro 07, 2009

'That's Right, the Mascara Snake, Fast and Bulbous!'




Não há muito que ainda se possa dizer a propósito d'um álbum submetido a décadas de minucioso escrutínio crítico; nem tampouco algo de relevante a acrescentar sobre o legado de seu criador, o genial compositor, vocalista, multi-instrumentista e artista plástico norte-americano Don Van Vliet, aka Captain Beefheart. Todavia, não seria justo que uma obra-prima da magnitude de Trout Mask Replica, um dos raríssimos discos legitimamente PROGRESSISTAS na história do rock, ficasse sem menção neste nosso espaço; isto dito, vamos à liça.

Se calhar o aspecto que mais aprecio na música do Capitão é que ela sempre parece um trem prestes a descarrilar, mas afinal d'algum modo mantendo-se nos trilhos; ou então um trapezista arriscando-se seriamente a se esborrachar no solo com suas temerárias acrobacias, mas sempre encerrando a performance com um ar triunfal de precisão e segurança. Assim ocorre com o saudoso Capitão: o ouvinte pensa que tudo está sempre à beira da catástrofe, quase desmoronando, a sensação de caos iminente e imanente, mas a complexa e admiravelmente a estrutura se mantém intacta. 

E tal aspecto se demonstra particularmente notável em TMR, até hoje um disco deveras impressionante, sobretudo como originalíssimo exercício de uma fusão não só meticulosamente concebida e executada, mas também milagrosamente orgânica e estruturada, dos mais díspares elementos: do R&B ao acid rock, do free jazz ao country, do blues tradicional à música eletroacústica, tudo se faz presente no grande 'forno alquímico' de mistáh Beefheart, de uma forma a um só tempo alucinatória e coerente, pois se em cada música o ouvinte tem a insólita impressão de estar escutando simultaneamente várias peças, há um assombroso senso de unidade formal em todas as faixas do disco. Tal impressão é acentuada, vale dizer, pela circunstância de a maior parte da banda estar solando simultaneamente em várias faixas do álbum; não há, aliás, uma diferença marcante entre 'base' e 'solo' na estética proposta por Vliet, mas sim a postulação d'uma massa sonora de admirável coesão formal. Destarte, temos em Trout Mask Replica um triunfo veramente assombroso: trata-se, pois, d'uma obra prenhe d'um esplêndido senso de liberdade e improvisação, mas onde todos os procedimentos são milimetricamente calculados e levados a efeito de forma deliberada. Para tanto, é mister lembrar Beefheart exigiu da Magic Band um grau de dedicação e disciplina realmente jesuítico: seus integrantes passaram 8 meses confinados, ensaiando exaustivamente as composições de Beefheart, em jornadas de trabalho que não raro chegavam a 12 / 14 horas por dia.

Alicerçando esse primoroso trabalho de composição e organização do material sonoro, temos um instrumental simplesmente soberbo, com destaque para o notável senso de fluidez rítmica de John 'Drumbo' French (a meu ver o grande destaque da banda, e sem dúvida um dos bateristas mais subestimados da história do rock); as agulhadas ácidas das guitarras elétricas da dupla Zoot Horn Rollo / Antennae Jimmy Semens; e, é claro, o verdadeiro jazz from hell desencadeado pelo 'Capitão' e seu primo Mascara Snake. Coroando tudo, temos os inacreditáveis vocais de Vliet, com seu escalafobético arsenal de recitativos, imprecações, soluços, uivos e interjeições.

Não é tarefa das simples apontar os pontos culminantes numa obra de tamanha complexidade e riqueza, mas a meu ver, diria eu que a espinha dorsal do disco consiste d’uma memorável série de dada blues meets schizo jazz in the land of Thomas Pynchon: Dachau Blues, Ella Guru, Moonlight in Vermont, Pachuco Cadaver, My Human Get's Me Blues e When Big Joan Sets Up; são igualmente credoras de menção especial as instrumentais Hair Pie: Bake 1 e 2, onde a esmerilhação free se desdobra em arrojado exercício de música contemporânea de vanguarda; a impagável The Blimp (mousetrapreplica), com seu maníaco impromptu verbal gravado via conversa telefônica; e por fim Sugar 'N Spikes, que se não é especialmente marcante per si, a meu juízo registra a mais inspirada performance de Drumbo no álbum.

A produção, a cargo de Frank Zappa, é absolutamente revolucionária para a época, ao incorporar vários 'defeitos especiais' (quedas de áudio, faux finales não-intencionais, erros de execução, etc.) de forma ousada e criativa, assim gerando toda uma ambiência de desorientação aleatória essencial para a atmosfera 'dadaísta' pretendida por Beefheart; para tanto também contribui, há que frisar, o facto de as faixas de TMR serem provenientes de diversas fontes, desde gravações caseiras até registros profissionais em estúdio, e ainda o uso de numerosos fragmentos de conversas, risadas, monólogos e 'intervenções poéticas' de Beefheart e seus asseclas.

Por fim, por despretensiosa que seja, uma resenha de TMR não poderia deixar de dizer uma ou duas palavras sobre o universo poético de Beefheart, que é absolutamente único: à moda de um Lewis Carroll on acid, Vliet desencadeia vertiginosos feux d’artifices de jogos de palavras, assonâncias mirabolantes, alusões crípticas, estranhíssimos seres metafóricos, private jokes, delírios surreais e observações hilariantes, conjurando assim toda uma galáxia de referências que seria impossível de deslindar sem uma exegese crítica das mais laboriosas.

Bottom line: Trout Mask Replica é um CLÁSSICO eterno do avant rock, e um dos poucos discos na história do gênero que realmente faz jus ao epíteto de 'fundamental'.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

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