Alphonse van Worden - 1750 AD
Ignorar a importância da decisão individual no bojo da História constitui um erro desafortunadamente usual entre certos marxistas; soem asseverar, com efeito, que o processo histórico forja-se tão somente no bojo de fenômenos coletivos em larga escala espaço-temporal. Todavia, se um determinado agente ocupa tal ou qual posição estratégica em função, é verdade, das lides d'um processo histórico coletivo, não é menos verdade que no momento preciso e infinitesimal de uma tomada de decisão as forças históricas que desencadearam o processo estão ausentes. O instante da decisão é, portanto, um ato de jaez essencialmente solitário e intransferível para o indivíduo que ocupa o local exato na hora exata; e mesmo nos casos em que o rumo a ser tomado está a cargo d'um colegiado, podemos afirmar que o grupo de homens responsáveis por aquela está no momento da decisão isolado das instâncias coletivas que porventura o engendraram; cabe falar, destarte, de uma sutil e complexa dialética coletiva/individual como força motriz da História. O processo histórico é, com efeito, um movimento de contínua retroalimentação dialética, onde as esferas individual e coletiva 'intercondicionam-se' mutuamente.
Não se pode, portanto, negar a existência patente da consciência individual, cujas opções podem sim aportar guinadas de rumo para o transcurso dos acontecimentos.há, por conseguinte, que admitir que a História não se processa somente por intermédio de processos coletivos de transformação, reconhecendo o caráter igualmente vital das decisões individuais dos agentes que ocupam posições chave em determinados momentos. Assim sendo, podemos, por exemplo, nos inquirir: o nazismo existiria sem Hitler? É bem provável que sim, mas assumiria uma conformação distinta, o que sem dúvida significa que teria outra trajetória; e isto vale para todo e qualquer evento histórico, que nunca pode ser reduzido a um fator monocausal, mas sim creditado a uma miríade de causas espaço-temporais.
O problema radica, pois, exatamente numa interpretação ultradeterminista do materialismo histórico, onde a subjetividade humana nada mais seria que um epifenômeno mecânico da articulação de forças materiais. Fica-se com a impressão, destarte, de que certos marxistas consideram o que se convencionou chamar de ‘processo histórico', que é uma abstração conceitual, como uma espécie de misteriosa entidade concreta e de caráter volitivo no espaço-tempo. . Tal concepção advém, como já tive oportunidade de aqui ressaltar, do facto de que o marxismo permanece inserido no quadro das filosofias que concedem estatuto de realidade concreta aos 'Universais', ou seja, que tomam representações conceituais como se impressões sensíveis fossem, para usarmos aqui uma terminologia de sabor humeano.
O que efetivamente acontece envolve, de facto, uma dialética deveras complexa e sutil... ocorre-me agora que o contexto onde ela se manifesta de forma mais cabal é no âmbito de uma batalha ou campanha militar. Suponhamos o Marechal X, comandante-geral das forças terrestres de Y, no átimo infinitesimal em que, debruçado sobre pilhas de mapas, gráficos e informes do front,deve decidir-se pelo deslocamento do grosso de seus efetivos para os pontos A e B, de modo a envolver o inimigo Z num movimento de pinça pelos flancos, ou para o ponto C, cortando as linhas de suprimento do inimigo e formando uma reserva estratégica, na expectativa de que Z tome a iniciativa, para só então desfechar um contra-ataque.
Pois muito bem: a meu juízo, a interferência do processo histórico multitudinário e anônimo, que eventualmente colocou X naquela posição naquele exato momento, é assaz irrelevante. Naquele instante preciso do espaço-tempo, a tomada de decisão será individual, refletindo as qualidades pessoais de X: sua inteligência, percepção, sensibilidade, formação técnica, cultura histórica e estratégica. Não há como, portanto, ignorar o vastíssimo acervo de decisões essencialmente solitárias embutidas em qualquer processo macro; outrossim, as probabilidades existentes no âmbito da análise combinatória de todas as decisões individuais envolvidas em qualquer processo macro certamente tende ao infinito, de modo que estabelecer um cálculo preciso seria sumamente difícil.
Examinemos agora um exemplo concreto, vale dizer, as dissensões políticas na URSS durante as décadas de 20 e 30. Caso Trotsky e Bukharin, a meu juízo os mais importantes líderes revolucionários soviéticos depois de Lenin, houvessem cometido, por exemplo, menos erros de avaliação tática do processo político no âmbito interno partidário, decerto teria sido possível vencer a facção staliana entre 1924-1928. O próprio Bukharin chegou a reconhecer, tragicamente tarde demais, que suas divergências programáticas com a esquerda trotsko-preobhazenskiana eram muito menos sérias que suas diferenças no tocante ao grupo de Stalin; outrossim, não teria sido impossível, por um lado, que Trotsky avaliasse com mais acuidade a real dimensão e importância da smychka campo/cidade para a viabilidade empírica ulterior do processo socialista soviético e, por outro, que Bukharin compreendesse melhor a relevância axial da democracia partidária para salvaguardar a revolução de intentonas termidorianas e/ou bonapartistas. Há, por conseguinte, que admitir que a História não se processa somente por intermédio de processos coletivos de transformação, reconhecendo o caráter igualmente vital das decisões individuais dos agentes que ocupam 'posições-chave' em determinados momentos fundamentais.
'Idealismo positivista', é o que de certeza diria certa estirpe de marxistas a respeito do que acima foi dito... e com isto incidiriam no mais irredutivelmente mecanicista dos materialismos; nada, diga-se de passagem, poderia estar mais próximo do idealismo que o materialismo hipertrofiado. O que fizemos, por conseguinte, foi raciocinar especulativamente a partir de hipóteses perfeitamente plausíveis, de opções que estiveram à mão dos agentes históricos que estamos aqui a considerar; e é de facto erro corriqueiro entre certos marxistas ignorar a importância de decisão individual no bojo da História. Não se pode, todavia, negar a existência patente da consciência individual, cujas opções podem aportar guinadas de rumo para o transcurso dos acontecimentos; além disso, o questionamento sobre o que poderia 'ter sido' possui também um aspecto dos mais oportunos: alertar-nos para os equívocos cometidos por nossos predecessores.
As questões adrede aludidas parecem-me ser, enfim, da maior importância importante para os marxistas, uma vez que as correntes liberais e conservadores costumam arrogar-se o primado da reflexão sobre o papel da decisão individual na História e demais processos humanos.
Ignorar a importância da decisão individual no bojo da História constitui um erro desafortunadamente usual entre certos marxistas; soem asseverar, com efeito, que o processo histórico forja-se tão somente no bojo de fenômenos coletivos em larga escala espaço-temporal. Todavia, se um determinado agente ocupa tal ou qual posição estratégica em função, é verdade, das lides d'um processo histórico coletivo, não é menos verdade que no momento preciso e infinitesimal de uma tomada de decisão as forças históricas que desencadearam o processo estão ausentes. O instante da decisão é, portanto, um ato de jaez essencialmente solitário e intransferível para o indivíduo que ocupa o local exato na hora exata; e mesmo nos casos em que o rumo a ser tomado está a cargo d'um colegiado, podemos afirmar que o grupo de homens responsáveis por aquela está no momento da decisão isolado das instâncias coletivas que porventura o engendraram; cabe falar, destarte, de uma sutil e complexa dialética coletiva/individual como força motriz da História. O processo histórico é, com efeito, um movimento de contínua retroalimentação dialética, onde as esferas individual e coletiva 'intercondicionam-se' mutuamente.
Não se pode, portanto, negar a existência patente da consciência individual, cujas opções podem sim aportar guinadas de rumo para o transcurso dos acontecimentos.há, por conseguinte, que admitir que a História não se processa somente por intermédio de processos coletivos de transformação, reconhecendo o caráter igualmente vital das decisões individuais dos agentes que ocupam posições chave em determinados momentos. Assim sendo, podemos, por exemplo, nos inquirir: o nazismo existiria sem Hitler? É bem provável que sim, mas assumiria uma conformação distinta, o que sem dúvida significa que teria outra trajetória; e isto vale para todo e qualquer evento histórico, que nunca pode ser reduzido a um fator monocausal, mas sim creditado a uma miríade de causas espaço-temporais.
O problema radica, pois, exatamente numa interpretação ultradeterminista do materialismo histórico, onde a subjetividade humana nada mais seria que um epifenômeno mecânico da articulação de forças materiais. Fica-se com a impressão, destarte, de que certos marxistas consideram o que se convencionou chamar de ‘processo histórico', que é uma abstração conceitual, como uma espécie de misteriosa entidade concreta e de caráter volitivo no espaço-tempo. . Tal concepção advém, como já tive oportunidade de aqui ressaltar, do facto de que o marxismo permanece inserido no quadro das filosofias que concedem estatuto de realidade concreta aos 'Universais', ou seja, que tomam representações conceituais como se impressões sensíveis fossem, para usarmos aqui uma terminologia de sabor humeano.
O que efetivamente acontece envolve, de facto, uma dialética deveras complexa e sutil... ocorre-me agora que o contexto onde ela se manifesta de forma mais cabal é no âmbito de uma batalha ou campanha militar. Suponhamos o Marechal X, comandante-geral das forças terrestres de Y, no átimo infinitesimal em que, debruçado sobre pilhas de mapas, gráficos e informes do front,deve decidir-se pelo deslocamento do grosso de seus efetivos para os pontos A e B, de modo a envolver o inimigo Z num movimento de pinça pelos flancos, ou para o ponto C, cortando as linhas de suprimento do inimigo e formando uma reserva estratégica, na expectativa de que Z tome a iniciativa, para só então desfechar um contra-ataque.
Pois muito bem: a meu juízo, a interferência do processo histórico multitudinário e anônimo, que eventualmente colocou X naquela posição naquele exato momento, é assaz irrelevante. Naquele instante preciso do espaço-tempo, a tomada de decisão será individual, refletindo as qualidades pessoais de X: sua inteligência, percepção, sensibilidade, formação técnica, cultura histórica e estratégica. Não há como, portanto, ignorar o vastíssimo acervo de decisões essencialmente solitárias embutidas em qualquer processo macro; outrossim, as probabilidades existentes no âmbito da análise combinatória de todas as decisões individuais envolvidas em qualquer processo macro certamente tende ao infinito, de modo que estabelecer um cálculo preciso seria sumamente difícil.
Examinemos agora um exemplo concreto, vale dizer, as dissensões políticas na URSS durante as décadas de 20 e 30. Caso Trotsky e Bukharin, a meu juízo os mais importantes líderes revolucionários soviéticos depois de Lenin, houvessem cometido, por exemplo, menos erros de avaliação tática do processo político no âmbito interno partidário, decerto teria sido possível vencer a facção staliana entre 1924-1928. O próprio Bukharin chegou a reconhecer, tragicamente tarde demais, que suas divergências programáticas com a esquerda trotsko-preobhazenskiana eram muito menos sérias que suas diferenças no tocante ao grupo de Stalin; outrossim, não teria sido impossível, por um lado, que Trotsky avaliasse com mais acuidade a real dimensão e importância da smychka campo/cidade para a viabilidade empírica ulterior do processo socialista soviético e, por outro, que Bukharin compreendesse melhor a relevância axial da democracia partidária para salvaguardar a revolução de intentonas termidorianas e/ou bonapartistas. Há, por conseguinte, que admitir que a História não se processa somente por intermédio de processos coletivos de transformação, reconhecendo o caráter igualmente vital das decisões individuais dos agentes que ocupam 'posições-chave' em determinados momentos fundamentais.
'Idealismo positivista', é o que de certeza diria certa estirpe de marxistas a respeito do que acima foi dito... e com isto incidiriam no mais irredutivelmente mecanicista dos materialismos; nada, diga-se de passagem, poderia estar mais próximo do idealismo que o materialismo hipertrofiado. O que fizemos, por conseguinte, foi raciocinar especulativamente a partir de hipóteses perfeitamente plausíveis, de opções que estiveram à mão dos agentes históricos que estamos aqui a considerar; e é de facto erro corriqueiro entre certos marxistas ignorar a importância de decisão individual no bojo da História. Não se pode, todavia, negar a existência patente da consciência individual, cujas opções podem aportar guinadas de rumo para o transcurso dos acontecimentos; além disso, o questionamento sobre o que poderia 'ter sido' possui também um aspecto dos mais oportunos: alertar-nos para os equívocos cometidos por nossos predecessores.
As questões adrede aludidas parecem-me ser, enfim, da maior importância importante para os marxistas, uma vez que as correntes liberais e conservadores costumam arrogar-se o primado da reflexão sobre o papel da decisão individual na História e demais processos humanos.
10 comentários:
O seu “A propósito do papel da decisão individual no âmbito da História”, meu caro Alfredo, toca em ponto sobejamente ignorado quando se trata de analisar processos históricos: a terrível solidão que se sente quando dos momentos cruciais em que se deve decidir o mais rapidamente possível o que fazer.
Nesse sentido, o exemplo do general que deve decidir por que estratégia escolher a fim de subjugar o general inimigo o ilustra primorosamente! Com efeito, a partir dele, depreende-se o quão mais fácil é o papel do historiador, que consistindo, basicamente (não apenas, é certo, mas basicamente) de julgar ações que não se podem mais reverter, porque irremediavelmente presas ao passado, tem à sua disposição o distanciamento físico e temporal necessários a uma análise que se pretenda minimamente razoável e o que lhe legaram as gerações de historiadores que o precederam quando houveram por abordar o mesmo assunto.
Dir-se-ia, porém, que malgrado não possuir o distanciamento físico e temporal, o que, por si só, já implicaria brutal diferença, também o general contaria com vasto acervo de estratégias que lhe foi legado pelos generais do passado, de maneira que não se veria totalmente insulado no momento mesmo em que deve decidir-se sobre que estratégia utilizar. Ademais, dir-se-ia também que conta com ajuda de seu staff militar, homens sulcados na experiência de muitas batalhas já vistas e/ou estudadas.
Tal seria totalmente verdadeiro não fosse o fato de que, no caso do general, além do calor da batalha ser onipresente, como é óbvio, batalhas e mesmo guerras são sempre eventos imponderáveis onde nem sempre as ações concretas refletem exatamente o que se pretendeu na teoria.
Em suma, parece-me, em princípio, que seu texto pretende resgatar a dignidade de dois personagens que foram defenestrados pelo estruturalismo, o marxismo, o freudismo e tantas outras correntes de pensamento havidas no recente século passado: o herói e o vilão.
Pois, com efeito, assim me parece, falar de decisão individual no momento mesmo em que a História concretamente desenvolve-se é falar de sujeitos que nela entrarão, quer queiramos, quer não, ou como heróis, ou como vilões, não havendo, porém, nenhum maniqueísmo nisso, mas ao contrário, muito de sangue, suor, lágrimas, nervos, músculos, cérebro e coração: em suma, nisso havendo muito disso que chamamos de vida, o palco mesmo em que a História acha de encenar-se a si mesma...
Agradeço pelo alentado e percuciente comentário, confrade!
Gostaria de comentar um ponto em particular:
"também o general contaria com vasto acervo de estratégias que lhe foi legado pelos generais do passado, de maneira que não se veria totalmente insulado no momento mesmo em que deve decidir-se sobre que estratégia utilizar. Ademais, dir-se-ia também que conta com ajuda de seu staff militar, homens sulcados na experiência de muitas batalhas já vistas e/ou estudadas."
De facto o comandante em tese dispõe de tal acervo de informações históricas, bem como de toda uma entourage de auxiliares; ou seja, dispõe de alguns elementos condicionantes, em princípio. Não obstante, o átimo da decisão permanece terrivelmente solitário, pois a ele caberá a palavra final naquele momento.
Claro está que hoje, com todo o desenvolvilmento das telecomunicações e da informática, a interface entre o comando militar e o comando político é muito mais eficaz e veloz, tornando quiçá menos solitárias tais decisões; contudo, ainda assim permanece, creio, um considerável quanta de decisão individual em qualquer processo como o acima aludido.
A consciência individual é moldada historicamente dentro de determinada ideologia, quase nada possuindo de "original". Todo discurso é parte de um hipertexto, e é formado por outros discursos, que perpassam a noção de "sujeito".
Não concordo, Maya: isso é mecanicismo marxista da pior espécie, pois ignora que o momento infinitesimal da decisão depende exclusivamente da consciência individual.
Não há consciência individual.
Discordo: SÓ há consciência individual, a noção de 'consciência coletiva' é um mito.
Maya, não se subestime. Nós fazemos nosso próprio destino. Há um contexto, é evidente, mas negar a autonomia dos indivíduos em momentos de indefinição é relegar-se a muito pouco.
Limito-me a esses breves comentários, por certo incompletos, certo que muito educados diante de suas certezas tão estruturantes mas, enfim, recuso-me a ser dirigidos por forças outras que não minha consciência, ainda que ela seja moldada pelo passado, pelo meio, pela grana ou pelo poder.
Eu quero mais.
“O homem razoável adapta-se ao mundo; o desarrazoado insiste em tentar adaptar o mundo a si mesmo.
Por isso, todo progresso depende do homem desarrazoado.”
George Bernard Shaw
Hahaha, muito bom... Shaw era incrível! :-)
Shaw era mesmo fantástico. Amigo, parabéns pelo blog. Parei aqui após procurar pelo google algo que não me lembro exatamente o que era. Faz tempo. Marquei o endereço e de vez em nunca passo por aqui.
Lembro-me de um post seu sobre a questão do mito, de sua importância política, das limitações do conceito de populismo, etc... Como deve se recordar, faz tempo.
abraços e sigamos em frente
Agradeço imenso, confrade.
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