terça-feira, janeiro 22, 2008

Notas de reflexão crítica XI - a propósito da progressiva dissociação entre 'essência' e 'aparência'

Alphonse van Worden - 1750 AD





- Duas são, a meu juízo, as características emblemáticas do mundo hodierno, verdadeiras linhas de demarcação e balizamento que condicionam e delimitam o Homem na contemporaneidade: 1) a absorção de todas as esferas da ação humana pela lógica mercantil (cuja análise já levamos a cabo noutros textos presentes neste espaço), consoante a qual só possuem ‘valor’, em última instância, as pessoas, contextos e atividades passíveis de gerar renda; 2) a dissociação cada vez maior entre essência e aparência, ou seja, entre aquilo que as coisas e indivíduos de facto ‘são’, e aquilo que eles ‘aparentam ser’.

- Tal dualidade decerto não se afirma, é mister sublinhar, apenas como traço circunstancial da atualidade; trata-se, pelo contrário, d’algo inerente à ontologia do ser humano, traço inscrito, portanto, em nosso próprio aparato perceptivo, isto é, no conjunto de mecanismos mediante os quais acessamos e processamos os estímulos fenomênicos que a realidade nos envia.

- Nunca há, destarte, uma identidade total, um isomorfismo absoluto entre, de um lado, os dados concretos da natureza percebidos pela experiência humana, e, de outro, as representações (sejam elas de cariz gráfico, visual, sonoro ou de qualquer outro gênero) que deles fazemos; existe, pois, sempre uma décalage entre as coisas ‘em si’ (recorrendo aqui a um termo kantiano) e a transcrição mental que delas fazemos mediante os dados empíricos captados pelos sentidos. Há, portanto, uma ‘correspondência’ mais ou menos exata entre o que pensamos / lembramos / sentimos e a Realidade, mas nunca uma identidade completa.

- Isto irá refletir-se também, claro está, no âmbito de nossa psicologia e vivência social. Parece, pois, algo evidente, para qualquer um, a distância existente entre a ‘imagem mental’ que formamos de alguém, e aquilo que a pessoa em tela realmente ‘é’. A esse respeito, vale mencionar aqui o romance SOLARIS (Solaris - 1961), do polonês Stanislaw Lem, que ilustra à perfeição a questão em pauta: Solaris, o ‘planeta-oceano’, é uma espécie de organismo vivo dotado de inteligência e vontade própria. Um de seus mais miríficos poderes é a capacidade de materializar até mesmo o mais evanescente devaneio ou reflexão dos astronautas e cientistas que habitam a base espacial nele instalada. Assim sendo, a partir das lembranças do protagonista Kelvin, Solaris acaba por corporificar sua mulher Hari, que se suicidara anos antes; não obstante, algo de ainda mais inusitado ocorre: Kelvin não ‘reconhece’ sua falecida esposa naquele ente redivivo, que lhe parece ser tão somente uma espécie de cópia imperfeita, de caricatura do ‘original’; e aos poucos percebemos, leitores e personagens, que a figura materializada pelo planeta inteligente não é exatamente Hari, mas sim o conjunto de reminiscências, sentimentos e sensações ou, em outras palavras, o multiforme feixe de representações mentais que a memória de Kelvin designava como ‘Hari’. Há, por conseguinte, não apenas no tocante aos fenômenos naturais e objetos inanimados, mas também no que concerne às relações humanas, uma enorme diferença entre um ente tal como ele é, e a percepção que dele formamos. Kelvin descobre, por fim, ao verificar que não consegue amar a ‘nova’ Hari (malgrado ela lhe suscite atração física e até mesmo certa afeição), algo deveras paradoxal e inquietante: amava não o ente idealizado que fabricara a partir das impressões sensíveis fornecidas por Hari, mas sim a incognoscível pessoa ‘real’, mesmo sendo incapaz de acessar sua essência.

- A supracitada dissintonia , muito embora responsável por toda sorte de ilusões e equívocos cognitivos, nunca atingira antes o estágio de cisão esquizofrênica, uma vez que o Homem sempre manteve, em maior ou menor nível, uma consciência relativa do descompasso existente entre suas representações conceituais e os objetos e fenômenos da natureza. Entretanto, essa derradeira e crucial barreira de sanidade parece estar perigosamente oscilando nos tempos que correm: com o advento da chamada ‘realidade virtual’, bem como de todo gênero de dispositivos de simulação e reprodução serial cada vez mais sofisticados, o homem está construindo uma espécie de ‘universo paralelo’, com coordenadas, características, códigos e signos específicos – e até mesmo, de certo modo, uma sensibilidade própria - estabelecendo, portanto, certo ordenamento intencional e uma dada estrutura aparente de realidade, sem que esta apresente, contudo, efetiva tangibilidade; e tal contexto obviamente reflete a progressiva abstração da atividade econômica. Se a forma-mercadoria já se afirmava, desde sempre, como célula básica do Capital, convertendo os produtos do labor humano em coisas dotadas valor meramente abstrato, alienadas de suas qualidades sensíveis, tal dinâmica de abstração agudizou-se sobremaneira nas últimas décadas: com atividade industrial perdendo sua centralidade como locus privilegiado de onde o sistema extrai os recursos para sua auto-reprodução ampliada, o eixo de sustentação do Sistema desloca-se aceleradamente para o setor financeiro, supino reino do ‘automovimento tautológico’ do dinheiro, desdobrando-se ad infinitum em espirais de rentabilidade artificial, desprovidas, por conseguinte, de lastro real.

- A título de ilustração, lançaremos mão uma vez mais da notável imagística de Stanislaw Lem. Em O INCRÍVEL CONGRESSO DE FUTUROLOGIA (Kongres futurologiczny - 1971), o autor polaco concebe uma sociedade onde o ‘reino da aparência’ logra absoluta autonomia em relação à realidade física, sobrepondo-se por completo a ela, de modo que o homem, sob a égide do ilusionismo absoluto, já não mais pode distinguir entre dados objetivos e subjetivos. Através de sofisticados alucinógenos, maciçamente pulverizados na atmosfera e em todos os ambientes, o Estado não apenas controla a subjetividade de seus cidadãos, mas se torna capaz de ‘produzir’ o próprio 'Universo' físico e mental de seus súditos, evocando de certa forma, malgrado em termos mais puramente fantasistas, a tão caracteristicamente kafkiana atmosfera de ominosa, claustrofóbica alienação espiritual, de brumas e ameaças espectrais onde a realidade sensível se dissolve na oscilação inquietante do inefável. Todavia, em amarga e quiçá profética ironia, o mundo urdido por Lem começa a entrar em colapso: na medida em que recorre continuamente, e em escala sempre crescente, à produção e fumigação de substâncias alucinógenas, o próprio aparato estatal começa a perder o controle do processo, de maneira que a distinção entre objetos, mercadorias e dispositivos reais e ‘virtuais’ começa a se tornar cada vez mais difusa e problemática, com previsíveis e catastróficas conseqüências na esfera econômica. Hoje constatamos, estupefatos, que o sistema produtor de mercadorias começa a reproduzir tal estado de coisas: os ativos financeiros que, circulam por todo o globo terrestre entrelaçando mercados em tempo real, já não mais correspondem a ganhos reais, e os próprios agentes econômicos, assim como bancos, instituições multilaterais e mecanismos estatais de controle e regulação, começam a perder o controle de toda essa incessante dinâmica.

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