quinta-feira, novembro 01, 2007

Rock'n'roll - 'sempre igual e, ainda assim, sempre diferente'




Amiúde observo, em numerosos veículos de informação dedicados à crítica musical, certa tendência crítica que altissonante proclama, como primado d'uma operação analítica 'séria', a necessidade de nos atermos exclusivamente à 'música' que estamos a escutar, sem atentarmos para a carga simbólica que lhe é adjacente; ora bem: tal clivagem é de todo inexeqüível e, de resto, indesejável, por duas razões muito simples.


1)
Em primeiro lugar, tal perspectiva não leva em consideração uma cabal evidência: toda manifestação da subjetividade humana (esfera em que, claro está, se incluem as obras de arte) comporta uma dimensão simbólica que lhe é indissociável. Tal carga simbólica é constituída pelos diferentes códigos de valores (ou 'contravalores', caso nadem contra a corrente) transmitidos socialmente de geração em geração através de culturas distintas; destarte, toda manifestação artística comporta, em caráter inalienável , um cariz simbólico, uma 'atitude', um acervo de valores, uma determinada visão de mundo.

Isto posto, é possível identificar 3 'fases' sucessivas na apreensão individual de uma obra de arte:

a) A primeira fase corresponde à intuição sensível imediata da obra, fenômeno de todo refratário a qualquer operação analítica; em outras palavras, trata-se, recorrendo aqui a um termo kantiano, de um 'juízo sintético a priori, por intermédio do qual estabelecemos, sem mediações e injunções paralelas, nossa primeira e insofismável impressão 'positiva' ou 'negativa' a propósito de uma determinada manifestação, impressão que poderá ser ratificada ou reformulado no decurso das etapas seguintes da apreciação estética.

b) A segunda fase, que inaugura a operação analítica propriamente dita, se instaura sob a égide da dimensão simbólica conjurada pela obra em tela. É, pois, o momento em que a 'personalidade' da obra, em cotejo com nosso quadro de valores, irá condicionar parcialmente nossa atitude em relação a mesma, reforçando ou enfraquecendo a impressão inicial.

c) A terceira fase, por fim, é aquela em que consideramos a excelência 'técnica' da obra, isto é, o nível de realização dos elementos que lhe são específicos em termos de puro labor técnico; observe-se que, malgrado seja de todas as fases mais puramente 'consciente' e racional, ela tão somente se faz presente num quadro já previamente condicionado e determinado pelas fases anteriores. Assim sendo, é apenas o remate da operação analítica, mas não seu fundamento.


2) Conforme assinalamos acima, "toda manifestação da subjetividade humana comporta uma dimensão simbólica que lhe é indissociável". Ora, esta característica está particularmente presente no objeto que aqui mais nos interessa e apaixona, o rock'n'roll; com efeito, creio ser de sobejo IMPOSSÍVEL pensar o rock'n'roll sem levar em conta sua inserção atávica num movimento contracultural muito mais amplo e profundo, que deita raízes nas vanguardas históricas do século XX, na explosão da cultura de massas nos 40/50, na literatura beat, d'entre outros influxos. Desta maneira, não seria irrazoável afirmar que as dimensões sociológica e simbólica do rock assumem uma importância que rivaliza com sua relevância como fenômeno puramente musical.

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Consideremos agora a frase que dá nome ao tópico: "o rock'n'roll é sempre igual e, mesmo assim, é diferente"; trata-se, creio, de uma reflexão que se estriba em dois fatores precípuos:

a) Existiria, perguntou eu, alguma 'unidade estética' no rock? Em outras palavras: há parâmetros, constantes musicais SEMPRE presentes em todas as vertentes do rock em seus mais de 50 anos de existência? A meu juízo, NÃO. Trata-se, desde o berço, de um gênero musical que nasce sob o signo d'uma intensa miscigenação estética, incorporando elementos das mais distintas fontes; não há, destarte, uma corrente principal dando unidade formal ao rock'n'roll, que surge, cresce e se difunde como voragem antropofágica a agregar / deglutir / reprocessar toda sorte de informação possível, modus operandi que, aliás, se faz presente na cultura pop como um todo. De modo que, de Elvis Presley a Orthrelm, passando por Kinks, Neu!, Kiss, Nurse With Wound e Arctic Monkeys, não há como identificar um unidade formal discernível.

b) Não obstante, há, assim acredito, a nítida presença de uma 'unidade ética' no âmbito do rock'n'roll, isto é, de um ethos que perpassa, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos consciente, de modo mais ou menos autêntico, toda a multiforme galáxia do gênero. Tal modo de ser pode ser sintetizado, a meu ver, numa única palavra: INSATISFAÇÃO. Rock'n'roll, portanto, é 'desarrumar o arrumado'; dar murro em ponta de faca; nadar contra a corrente; apostar no 'errado' quando tudo está 'certo'; é desassossego, dissintonia, descompasso, dissonância, desarmonia; é, enfim, a sensação de que algo está fora de lugar, de que as coisas não encaixam, de que o que presentemente 'é' não necessariamente precisa 'ser'.

Unindo a agora as duas pontas da argumentação proposta, explica-se pq o rock'n'roll é "sempre igual e, mesmo assim, é diferente": é sempre igual pq é SEMPRE epifenômeno de insatisfação e desacerto com o mundo; e, por outro lado, é SEMPRE diferente, pois de Little Richards a Mainliner, de Carl Perkins a The Heads, de Rolling Stones a Merzbow, vive em permanente reinvenção estética, sempre incorporando novos elementos, ou a 'velhos' formatos nova configuração, simbiose contínua e dialética entre 'o que foi', 'o que é' e 'o que pode vir a ser', caleidoscópio em perpétua metamorfose.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

3 comentários:

filosonia disse...

Obrigado pelo post.

Aquela canção na voz de Nina Simone:
"Will you run to the rock? Please hide me rock, but the rock cried out I can't hide you the rock cried out"

Alphonse van Worden disse...

E eu agradeço pelo comentário. :-)

Em tempo: belo hlog o teu!

Anónimo disse...

Bem, ser "igual e diferente", no sentido que tu deste a tais termos em teu texto, não é privilégio do Rock. Usando a tua argumentação podemos dizer o mesmo do samba, do funk e de qualquer tipo de manifestação musical.