quinta-feira, novembro 01, 2007

Notas de reflexão crítica IX - a propósito de Slobodan Milosevic e da secessão jugoslava

Alphonse van Worden - 1750 AD




- A despeito de todo o implacável e sistemático processo de satanização levado a efeito nos últimos 15 anos pela mídia mainstream ocidental, Slobodan Milosevic foi uma importante liderança antiimperialista, tendo especialmente lutado contra as deletérias, deveras criminosas, injunções germânicas na península balcânica, mormente sobre as ex-repúblicas iugoslavas da Croácia e Eslovênia, às quais Berlim tencionava ver sob sua esfera de influência política e econômica. Destarte, Milosevic foi obrigado a recorrer à força das armas para tentar manter a unidade da federação iugoslava, processo em que, como de sobejo sabemos, não teve sucesso.

- Vale também recordar a selvagem agressão militar sofrida pela então já mutilada federação iugoslava em 1999, quando forças da OTAN, 'Grande Satã' à testa, brutalmente bombardearam o país entre 24 de março e 10 de junho, assassinando milhares de civis e envenenando o meio-ambiente com armas de destruição em massa, mediante o emprego de 31 mil projéteis recobertos com urânio empobrecido durante a guerra (e cerca de 10 mil nos ataques preliminares em 1995) através de jatos A-10 Thunderbolt e tanques M1A1 Abrahms. Estima-se que o bombardeio de Kosovo causou pelo menos 10 mil mortes por câncer nos Bálcãs nos anos seguintes, e não só nas áreas diretamente atingidas; vale assinalar, aliás, que na Sérvia, bombardeada por milhares de projéteis recobertos com urânio empobrecido, a radiação era 30 vezes superior ao normal, e mesmo ao Norte da Grécia, a mais de 100 quilômetros da área de conflito, a radioatividade aumentou 25%.

- Convém também sublinhar que a morte de Milosevic ocorreu em circunstâncias sumamente suspeitas, tendo inclusive Borislav Milosevic, irmão mais velho do ex-presidente, culpado o atual governo sérvio e o tribunal das Nações Unidas pelo sucedido.

- A mídia ocidental difundiu a quimérica narrativa de que a Sérvia 'invadiu' a província de Kosovo, levando a cabo por conseguinte um ato de agressão contra a população local. Ocorre que o Kosovo é parte integrante da Sérvia desde prístinas eras, de maneira que não poderia ter sido 'invadido'; saliente-se, outrossim, o facto de que constitui um lugar sagrado para os de fé cristã-ortodoxa, destarte revestindo-se de grande força simbólica para a maioria dos sérvios. Tratava-se, pois, não de uma invasão estrangeira seguida de ocupação militar, mas sim de uma guerra civil travada entre o governo central e uma província separatista. Ademais, vale também lembrar que esta mesma mídia, tão escrupulosa e implacável na denúncia das 'atrocidades' perpetradas pelos sérvios, nunca demonstrou em interesse em divulgar o contínuo processo de intimidação e coerção da minoria sérvia pela maioria albanesa, sobretudo a partir de meados da década de 70, quando Tito teve a infeliz idéia de reformar a constituição jugoslava, concedendo maior autonomia às províncias de Kosovo e Vojvodina.

- É mister, outrossim, enfatizar que a gestão Milosevic não atendia aos interesses do capital internacional: além de não liderar um governo neoliberal como o de Franjo Tuđman na Croácia, por exemplo, o presidente sérvio privilegiava as relações econômicas com a Rússia, tradicional aliada dos sérvios, o que desagradava sumamente a Alemanha, sequiosa para converter todo o Leste Europeu em feudo exclusivo para seus conglomerados industriais e financeiros, no imo do processo de 'recolonização' econômica do Leste Europeu sob os auspícios da nação teutônica. Que fique, portanto, bem claro e assente: quem açulou o quanto pode os nacionalismos croata e esloveno foram os governos de Helmut Kohl e Gerhard Schröder, que possuem enorme responsabilidade em relação aos trágicos eventos ocorridos nas ex-repúblicas jugoslavas.

- O pragmatismo, desafortunadamente tão necessário em política, não raro nos obriga a optar pelo 'mal menor': Milosevic foi, sim, um líder político autoritário, até mesmo cruel, mas a Jugoslávia, sob sua égide, era um obstáculo para o projeto de 'reconquista' colonial do leste europeu pela UE, Alemanha à testa; nesse sentido, portanto, a meu juízo desempenhou um papel positivo.

- Por fim, uma observação de índole pessoal: conheço alguns brasileiros que viveram em Belgrado nos anos 70 e 80, e de facto tais pessoas atestam que a Sérvia efetivamente era uma sociedade multi-étnica harmoniosa e pacífica, ao passo que vicissitudes a esse respeito eram palpáveis nas demais províncias jugoslavas; de resto, a manipulação midiática denunciada por analistas isentos como o norte-americano Michael Parenti, segue o velho padrão 'orwelliano' que pauta a grande mídia soi disant democrática: satanizar ao máximo o inimigo, imputando-lhe crimes imaginários ou hiperdimensionando os existentes, na mesma medida em que se ocultam as atrocidades perpetradas pelos aliados. Assim sendo, Franjo Tuđman, notório criminoso de guerra e nostálgico do governo pró-nazi de Ante Pavelić e sua Ustaše, é cantado em prosa e verso como amante da paz e promotor de privatizações, ao passo que Slobodan Milosevic, governante de legado não mais violento que, por exemplo, um Fidel Castro, se converte numa espécie de Pol Pot eslavo.



Brevíssima nota sobre a estupidez anticlerical

Alphonse van Worden - 1750 AD






Excelsos irmãos d'armas!

Amiúde vemos, aqui e alhures, psitacídeos anticlericais que, faltos d’uma argumentação minimamente consistente e coerente, vivem a trouxe-mouxe atacando a Igreja por dá cá aquela palha; disparando toda sorte de estultícias e parvoíces, e não raro recorrendo aos mais grosseiros chistes e patranhas, chegam às raias do mais rompante irracionalismo e da mais solerte ignorância ao torpemente negarem o óbvio ululante: a ingente, decisiva importância da Igreja para a civilização ocidental! Destarte, o móvel desta breve nova é demonstrar quão estólidas e disparatadas são tais cavilações.

A importância e influência da Igreja são de tal monta que não há, com efeito, sequer como propriamente mensurá-las com precisão, que dirá avaliá-las em detalhe... basta assinalar, creio eu, que o próprio 'Ocidente' (ou, caso prefiram, a 'civilização' / 'cultura' ocidental), essa grande síntese dialética entre as tradições greco-romana e cristã, é obra forjada pela Igreja.

Na medida, pois, em que a Igreja forjou a grande síntese entre as tradições greco-romana e cristã, e com isso criou a própria noção de 'Ocidente', bem como os alicerces de nossa civilização, ela fatalmente condiciona e determina todo o nosso universo conceitual. De maneira que o indivíduo ocidental, mesmo rompendo com a Igreja, permanece nos marcos do processo civilizacional que a Igreja instaurou. Ou seja, até mesmo para se posicionar contra a Igreja, o sujeito provavelmente terá de recorrer a um aparato conceitual que, em larga escala, foi gestado sob a égide da própria Igreja... ou seja, não há escapatória: mesmo contra a Igreja, estais inelutavelmente dentro dela! Aliás, vale também relembrar que ao longo dos séculos a Igreja tem acompanhado, em irônica e silente contemplação, as exéquias de inúmeros de seus pretensos coveiros...

De resto, a influência da Igreja é de tal modo multifacetada e abrangente, de tal maneira complexa e pervasiva, que se manifesta mesmo nos contextos aparentemente mais insuspeitos... desejais um exemplo? Sabeis qual foi uma das maiores influências de Lenin em sua concepção de partido revolucionário? Ninguém mais ninguém menos que Íñigo López de Loyola (1491 - 1556), mais conhecido como Santo Inácio de Loyola, fundador da Societatis Iesu, a celebérrima Ordem Jesuíta, assombrai-vos! Lenin tinha grande admiração pelos métodos de Loyola, que serviram como modelo de organização e código de conduta para a Companhia de Jesus, sem dúvida a mais disciplinada, aguerrida e eficaz ordem da história da Igreja Católica, os 'soldados da Igreja'. Assim sendo, Ullianov modelou o regimento interno do Partido Bolchevique, sobretudo em seu aspecto de máquina partidária monolítica e disciplinada, bem como integrada por revolucionários 'profissionais', a partir dos ordenamientos de Loyola.

Vede, portanto, diletos confrades, que esplêndida e emblemática ironia: o ínclito 'santo guerreiro' exerceu significativa influência sobre a obra mais importante do famígero ateu materialista que fundou o bolchevismo e liderou a primeira revolução proletária da História!

Rock'n'roll - 'sempre igual e, ainda assim, sempre diferente'




Amiúde observo, em numerosos veículos de informação dedicados à crítica musical, certa tendência crítica que altissonante proclama, como primado d'uma operação analítica 'séria', a necessidade de nos atermos exclusivamente à 'música' que estamos a escutar, sem atentarmos para a carga simbólica que lhe é adjacente; ora bem: tal clivagem é de todo inexeqüível e, de resto, indesejável, por duas razões muito simples.


1)
Em primeiro lugar, tal perspectiva não leva em consideração uma cabal evidência: toda manifestação da subjetividade humana (esfera em que, claro está, se incluem as obras de arte) comporta uma dimensão simbólica que lhe é indissociável. Tal carga simbólica é constituída pelos diferentes códigos de valores (ou 'contravalores', caso nadem contra a corrente) transmitidos socialmente de geração em geração através de culturas distintas; destarte, toda manifestação artística comporta, em caráter inalienável , um cariz simbólico, uma 'atitude', um acervo de valores, uma determinada visão de mundo.

Isto posto, é possível identificar 3 'fases' sucessivas na apreensão individual de uma obra de arte:

a) A primeira fase corresponde à intuição sensível imediata da obra, fenômeno de todo refratário a qualquer operação analítica; em outras palavras, trata-se, recorrendo aqui a um termo kantiano, de um 'juízo sintético a priori, por intermédio do qual estabelecemos, sem mediações e injunções paralelas, nossa primeira e insofismável impressão 'positiva' ou 'negativa' a propósito de uma determinada manifestação, impressão que poderá ser ratificada ou reformulado no decurso das etapas seguintes da apreciação estética.

b) A segunda fase, que inaugura a operação analítica propriamente dita, se instaura sob a égide da dimensão simbólica conjurada pela obra em tela. É, pois, o momento em que a 'personalidade' da obra, em cotejo com nosso quadro de valores, irá condicionar parcialmente nossa atitude em relação a mesma, reforçando ou enfraquecendo a impressão inicial.

c) A terceira fase, por fim, é aquela em que consideramos a excelência 'técnica' da obra, isto é, o nível de realização dos elementos que lhe são específicos em termos de puro labor técnico; observe-se que, malgrado seja de todas as fases mais puramente 'consciente' e racional, ela tão somente se faz presente num quadro já previamente condicionado e determinado pelas fases anteriores. Assim sendo, é apenas o remate da operação analítica, mas não seu fundamento.


2) Conforme assinalamos acima, "toda manifestação da subjetividade humana comporta uma dimensão simbólica que lhe é indissociável". Ora, esta característica está particularmente presente no objeto que aqui mais nos interessa e apaixona, o rock'n'roll; com efeito, creio ser de sobejo IMPOSSÍVEL pensar o rock'n'roll sem levar em conta sua inserção atávica num movimento contracultural muito mais amplo e profundo, que deita raízes nas vanguardas históricas do século XX, na explosão da cultura de massas nos 40/50, na literatura beat, d'entre outros influxos. Desta maneira, não seria irrazoável afirmar que as dimensões sociológica e simbólica do rock assumem uma importância que rivaliza com sua relevância como fenômeno puramente musical.

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Consideremos agora a frase que dá nome ao tópico: "o rock'n'roll é sempre igual e, mesmo assim, é diferente"; trata-se, creio, de uma reflexão que se estriba em dois fatores precípuos:

a) Existiria, perguntou eu, alguma 'unidade estética' no rock? Em outras palavras: há parâmetros, constantes musicais SEMPRE presentes em todas as vertentes do rock em seus mais de 50 anos de existência? A meu juízo, NÃO. Trata-se, desde o berço, de um gênero musical que nasce sob o signo d'uma intensa miscigenação estética, incorporando elementos das mais distintas fontes; não há, destarte, uma corrente principal dando unidade formal ao rock'n'roll, que surge, cresce e se difunde como voragem antropofágica a agregar / deglutir / reprocessar toda sorte de informação possível, modus operandi que, aliás, se faz presente na cultura pop como um todo. De modo que, de Elvis Presley a Orthrelm, passando por Kinks, Neu!, Kiss, Nurse With Wound e Arctic Monkeys, não há como identificar um unidade formal discernível.

b) Não obstante, há, assim acredito, a nítida presença de uma 'unidade ética' no âmbito do rock'n'roll, isto é, de um ethos que perpassa, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos consciente, de modo mais ou menos autêntico, toda a multiforme galáxia do gênero. Tal modo de ser pode ser sintetizado, a meu ver, numa única palavra: INSATISFAÇÃO. Rock'n'roll, portanto, é 'desarrumar o arrumado'; dar murro em ponta de faca; nadar contra a corrente; apostar no 'errado' quando tudo está 'certo'; é desassossego, dissintonia, descompasso, dissonância, desarmonia; é, enfim, a sensação de que algo está fora de lugar, de que as coisas não encaixam, de que o que presentemente 'é' não necessariamente precisa 'ser'.

Unindo a agora as duas pontas da argumentação proposta, explica-se pq o rock'n'roll é "sempre igual e, mesmo assim, é diferente": é sempre igual pq é SEMPRE epifenômeno de insatisfação e desacerto com o mundo; e, por outro lado, é SEMPRE diferente, pois de Little Richards a Mainliner, de Carl Perkins a The Heads, de Rolling Stones a Merzbow, vive em permanente reinvenção estética, sempre incorporando novos elementos, ou a 'velhos' formatos nova configuração, simbiose contínua e dialética entre 'o que foi', 'o que é' e 'o que pode vir a ser', caleidoscópio em perpétua metamorfose.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros